Será que eu posso ser freira?
Sexta-feira, 25, a administração municipal de Francisco Beltrão inaugurou o Centro de Atenção Psicossocial para Dependentes de Álcool e Drogas — Caps AD Irmã Álix. Ao discursar, o prefeito Antônio Cantelmo Neto lembrou de uma vez que perguntaram à Irmã Álix por que ela havia decidido morar numa casa simples, no meio dos pobres do bairro Padre Ulrico. Ela respondeu que “Cristo também viveu no meio dos pobres”. O discurso do prefeito foi interrompido por aplausos de todos os presentes. Havia ali muita gente que conheceu Irmã Álix, alguns, inclusive, foram seus alunos. Nesta página está parte de uma entrevista com a Irmã Álix, publicada pela revista Gente do Sul em junho de 2000.
Era uma garotinha tão humilde que, mesmo desejando muito, perguntava: mas e eu posso ser freira? Pioneira de Francisco Beltrão, já soma 50 anos de doação à vida religiosa, tendo como preocupação maior as famílias pobres.
Pouca gente ficou sabendo, porque a comemoração foi discreta, uma missa, celebrada pelo bispo dom Agostinho Sartori, numa homenagem da Diocese, a Concatedral N.S. da Glória e o Colégio N.S. da Glória -, a Irmã Álix já completou 50 anos de vida religiosa e a maior parte deste tempo de sua vida foi dedicado a Francisco Beltrão, cidade que ela adotou desde 1952, ano da instalação do município, quando vieram para cá as Irmãs Escolares de Nossa Senhora.
Aqui ela fez seu nome, e mais. Muitas moças ou já mulheres daqui se chamam Álix, porque seus pais se inspiraram no nome da religiosa.
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Maria Bento, que ao assumir a vida religiosa adotou o nome de irmã Álix, é paulista de Pirajuí. Nascida dia 2 de outubro de 1928, teve somente mais uma irmã e um irmão, porque sua mãe, Maria da Conceição, morreu, de pneumonia, quando ela estava com apenas seis anos. O pai, João, também morreu cedo, Maria tinha 11 anos. Eram agricultores, trabalhavam em cafezais. Órfã de pai e mãe, viveu uns tempos com a avó, mas logo acabou num orfanato, das Irmãs Escolares de Nossa Senhora. No orfanato é que lhe veio o desejo de tornar-se religiosa. Quando o padre quis saber se ela não queria ser irmã, muito tímida, ciente de sua condição de menina pobre, perguntou: Mas eu posso? Claro que pode. Como pôde, para a sorte de muita gente. Maria Bento, que adotou o nome de Alix, queria mais do que ser freira, queria ser missionária. Não conseguiu vaga para o Mato Grosso, como imaginava, mas realizou em Francisco Beltrão o seu sonho. Em 1952 aqui estava tudo começando, as Irmãs Escolares não só eram bem-vindas como lhes estava reservado importante papel a cumprir na formação dos beltronenses e de todo o povo da região que queria uma educação melhor para seus filhos. Álix era jovem, mas ela se deu bem aqui. Teve períodos que foi chamada pela congregação para trabalhar em São Paulo, chegou a ser vigária de uma paróquia do interior de Minas Gerais, mas sempre retornou.
Há pouco mais de um ano de seu último retorno, continua instalada no Colégio N.S. da Glória, no centro da cidade, mas seu local de trabalho é o Bairro Padre Ulrico, onde ela recebeu a reportagem de Gente do Sul para esta entrevista.
GS – O que a senhora lembra da infância, como era o dia a dia com seus pais e seus irmãos?
Álix – Olha, é aquela vida porque a vida do colono paulista é diferente do nosso pessoal daqui da roça. Como a vida de um povo simples, de manhã, na roça eu nunca fui porque era muito fraquinha, então ficava em casa cuidando das crianças, isso depois que o meu pai morreu, quando fui morar com a minha vó, e tínhamos nós, meus irmãozinhos e os filhos da minha avó também, ela era jovem, tinha crianças, inclusive um filho dela, meu tio, era da idade da minha irmãzinha. Depois teve mais outro, e tinha um que era dois anos mais velho que eu. Era uma criançada em casa. Os adultos iam pra roça e eu ficava com a criançada. Com seis anos, quando a minha mãe morreu, a minha vó não ia na roça, ela ficava pra cuidar de nós. Mas quando o meu pai faleceu, ela passou a ir pra roça e eu ficava com o bando em casa.
GS – Como seus pais morreram tão jovens?
Álix – Olha, o meu pai morreu por ignorância da medicina daquele tempo. O próprio médico que a gente encontrou não faz muito tempo, confirmou, vocês perderam o pai por erro nosso, da medicina, foi uma pneumonia. A minha mãe foi a mesma coisa, pneumonia também. Foram assim mortes rápidas
GS – E as crianças do seu tempo brincavam de quê?
Álix – Nós brincávamos de casinha, os meninos faziam seus carrinhos de tabuinha, a gente que era pobre, fazia boneca de sabugo, de milho verde, catava os milhos embonecados. A gente era pobre mas era feliz. Muita harmonia na família, graças a Deus. Eu tinha uma tia que era uma moça de uns 20 anos, trabalhava na roça também, e à noite ela nos reunia e contava histórias, lia o catecismo pra nós, lia porque também não sabia explicar. E nós decorávamos o catecismo com ela, aprendíamos os cantos, não sei de onde ela aprendeu, até hoje não sei como ela sabia aqueles cantos. Eu sempre gostei muito de cantar, tanto assim que as vizinhas da roça, muitas vezes quando tinha muito serviço, iam me buscar pra cantar e fazer os nenês dormir. Foi assim nossa infância.
GS – As crianças iam para a escola?
Álix – Não tinha escola, pra vocês terem uma idéia de como era o interior de São Paulo, mesmo agora quando nós estávamos trabalhando no interior de São Paulo, tínhamos uma casa em Guarantã, e as irmãs trabalhavam nas fazendas. Só que agora tem uma coisa, que os padres cuidam as fazendas, vão fazer visitas, tem irmãs que cuidam.
GS – Antigamente não?
Álix – Antigamente não, a fazenda era abandonada. Olha, nunca na minha vida eu vi um padre na fazenda. Nunca tive uma catequese. Naquele tempo, pro pessoal era normal, ninguém reclamava que não tinha.
GS – Não tinha nem uma capela?
Álix – Nada. Agora já tem umas capelinhas, que a gente vê quando viajamos pro interior de São Paulo, passa-se por fazendas, lá está a capelinha. Naquela fazenda que nós morávamos agora tem capela. Eu visitei essa fazenda, depois de 60 anos, esse ano eu visitei. Fazia 60 anos que eu não voltava mais lá, só que já está bem diferente, foi transformada em pastos, não tem mais o cafezal.
GS – Encontrou alguém do seu tempo?
Álix – Eu vi uma senhora, a única que mora na fazenda, ela morava numa fazenda vizinha que era do mesmo patrão. Mas eu não conhecia, eu era pequena, nem ela me conheceu, mas ela é daquele tempo, era menina quando o meu pai faleceu, a gente conversou um pouquinho, lembramos dos nomes do patrão, do administrador, isso ela sabia pra contar alguma coisa daquele tempo. Lembrava mais do que eu. Foi muito boa essa conversa.
GS – Como a senhora conseguiu sair daquele meio e estudar? Quem custeou tudo?
Álix – Olha, os caminhos de Deus na minha vida foram maravilhosos, e continuam sendo maravilhosos, e imagino naquela simplicidade, e me vejo hoje e penso como vivi antes, sem religião nenhuma, sem um padre.
GS – Sem nada, nada?
Álix – As vezes a gente ia na cidade (Garça), distante 13 quilômetros de onde nós morávamos. O pessoal da nossa fazenda fazia compra lá. De vez em quando a gente ia até a cidade. Criança, ia a pé, era meio longe, mas a gente ia de vez em quando. Eu me pergunto como cheguei até aqui. Não me canso de louvar, de agradecer a Deus pelo carinho dele na minha vida. Quando morreu a minha mãe, fui morar com a minha vó, um ano depois meu pai se casou novamente, e mais uma vez vejo a benção de Deus. Eu tive uma madrasta maravilhosa, ela era crente. Ela tinha 18 anos e meu pai uns 27 anos quando a minha mãe morreu. Entre mil você encontra uma daquele tipo como madrasta, então aqui também teve a proteção divina.
GS – Sua madrasta vive ainda?
Álix – Não sei, porque nos separamos, nós nunca mais nos encontramos. Eu só sei que ela não se casou mais, foi morar com os pais. Deve estar muito velhinha porque eu já estou com 72, ela deve ter quase 90, talvez nem viva mais.
GS – Daí a senhora ficou com quem?
Álix – Depois que o meu pai faleceu, quatro anos depois da morte da minha mãe, nós voltamos pra minha vó, mas o período foi curto, porque papai morreu em outubro e quando foi fevereiro morre o meu avô. Como a minha avó ia ficar cuidando de gente nova ali, se a titia mais velha tinha se casado? Mas ela estava firme pra tocar o barco pra frente. Eu não sei se teria mais sorte, acho que não, eu teria sido adotada por uma família riquíssima, que foi lá em casa, uma mulher boa, era a dona de uma grande fazenda que era vizinha da nossa. Ela quis que a minha avó me desse pra ela, que iria me cuidar com muito carinho, nós sabíamos que a mulher era católica, naquela fazenda tinha uma capela. Ali sempre havia missa, eu nunca fui na missa lá, que a gente era pequeno e era longinho. Às vezes a família ia, quando tinha festa, uma vez por ano. Essa mulher conhecia o meu pai, ele era o carroceiro da fazenda, ele andava pelas vizinhanças também, todo mundo conhecia e quando ela soube que meu pai morreu, ela foi lá. Ficou sabendo que tinha uma menina de 11 anos, seria a herdeira dela. Ela disse: “A senhora pode me dar porque eu não tenho filhos, ela vai ser minha herdeira”. A minha vó falou: “Olha, depende dela.” E eu disse “não quero, mas não vou mesmo, não adianta”. Aí eles me agradaram e a minha vó disse você que sabe, ela estava torcendo pra eu não aceitar, eu percebi. Falei pode ficar sossegada que eu não vou, e eu não fui.
GS – Não?
Álix – Não. Deus tinha outros planos no meu caminho. Depois da morte do meu avô, nesta época nós tínhamos um tio que morava em Pirajuí, irmão da minha vó, ele era contador velho da cidade, e ele ia muitas vezes lá em casa. Ele tinha muita pena de nós, sem pai e sem mãe. Ele falou pra minha vó: “O que você vai fazer com essas crianças, você também não é mais novinha”. Ela disse eu vou lutar e vou criar. Até que com os meninos daria. Nós éramos em duas meninas, a minha irmãzinha e eu, era preciso uma educação diferente. Então ele falou: “Lá em Pirajuí as irmãs acabam de fundar um orfanato, as irmãs estavam recém-chegando da Alemanha”. Eu falei não vou, não saio daqui, não vou deixar a senhora. Aí ela falou você que sabe, Maria, eu não vou forçar você. Meu tio me chamou e me agradou, explicou-me o que era irmã. “Olha, Maria, é uma coisa muito bonita. As irmãs cuidam dos órfãos”, tinha só três lá com as irmãs, três meninas de 6, 7 anos, uma de 14 e uma de 15. Mas eu disse eu não vou, eu não vou, e chorei. Já não queria ir mesmo. Aí ele falou “olha, você vai pensar, pense bem, lá você vai crescer, vai estudar, você vai aprender a bordar, você gosta de cantar, vai aprender a cantar”. Mas e a madrinha? “A madrinha se vira com os meninos, ele dizia. Então resolvi, eu vou.
GS – Quantos anos tinha?
Álix – Isso eu tinha 11 anos, foi logo que o meu pai morreu. Fiz 11 anos dia 2 e dia 4 papai faleceu. Já era abril. O sofrimento maior foi a separação da maninha, ao deixar minha avó. Ambas sofriam muito. Minha maninha tinha seis meses quando a mãe faleceu. Foi a minha vó quem amamentou, porque ela tinha um pequeno também. Amamentava os dois juntos. Tanto assim que minha irmã tem um carinho especial por esse tio, que repartiu o leite com ela. O orfanato ficava ao lado do colégio, porque tinha um colégio externo, como aqui, para as pessoas mais ricas, caso dos fazendeiros. Era o tempo do auge dos cafezais. As filhas estudavam no nosso colégio e na cidade também. Mas o orfanato não durou muito, na cidade. As irmãs compraram uma chácara. Nós entramos em abril, em setembro as irmãs mudaram para uma chácara. E eu fiquei no colégio. Não sei o que as irmãs viram em mim, com certeza essa aqui dá pra alguma coisa. Eu fazia uns servicinhos, lavava roupa e me puseram na escola. Como eu sabia ler, porque aprendi com o meu pai, me puseram no segundo ano, isso na metade do ano. As irmãs me tratavam muito bem, eu era a queridinha delas.
GS – Como surgiu a vocação?
Álix – A minha vocação, como surgiu? Pois é, mais uma vez a mão de Deus na minha vida. Um dia eu me encantei com a irmã que cuidava de nós. Ela estava apanhando mamão no quintal. E eu sabia como ela preparava, fazia picadinho, colocava açúcar, pra dar pra nós. Eu estava acostumada com muito mamão, na roça. Mas lá em casa, quando se resolvia comer, partia o mamão e comia, em fatia, não picadinho daquele jeito. E eu, lembro como se fosse hoje, lá de longe, fiquei observando. A irmã me encantou. Pensei olha como ela apanha aqueles mamãos, prepara pra nós com todo carinho. Nós somos crianças pobres, ela tem tanto cuidado com a gente, eu quero ser uma irmã. Eu quero ser uma irmã pra trabalhar com criança pobre. Foi a primeira ideia que me veio. Quero trabalhar com criança. Bom, eu guardei aquilo, pensando imagina se vou conseguir, sou pobre. Mas ficou aqui no meu coração. Aí, um dia, depois que fiz a primeira comunhão, fui confessar e o padre, que era o diretor do orfanato, me perguntou: Escuta, Maria, você não quer ser irmã? Mas e eu posso? perguntei. Claro que pode. Então claro que eu quero. Então fala com a irmã. Aí eu criei coragem. Falei com a irmã cozinheira, que eu queria muito bem a ela. Foi a irmã da minha adolescência. Ela está muito mal, na Alemanha, agora. Mas claro que você pode ser. Aí, logo veio a madre visitar a comunidade, falei com ela e ela ficou muito feliz. Eu tinha 12 anos. Ela disse que seria já aspirante. Aspirante é o primeiro passo pra ser irmã. Eu e mais outra, que ficou trabalhando comigo lá no colégio. E foi assim que terminei o terceiro ano, o quarto ano primário, modéstia à parte com notas muito boas tanto que a irmã viu que dava pra ser freira, não era tão bobinha. Daí me levaram para Jaú (SP), onde tinha a casa provincial naquele tempo. Lá eu comecei os meus estudos e cheguei até onde estou vivendo aqui.
GS – E a sua chegada em Beltrão?
Álix – Cheguei num Sábado Santo, dia 13 de março de 52. Cheguei de noite, toda empoeirada. No domingo de Páscoa, a irmã me mandou dar catequese. Catequese? Aonde? Veio aquela história bonita que eu gosto de contar. Ali no Pedro Granzotto de hoje, eles tinham derrubado a mata. Chamei as crianças e fui lá. As crianças subiram nos galhos das árvores, num toco, uns nos galhos mais altos, olha, naquela hora eu me senti José de Anchieta com os índios. E me senti realizada. Nunca esqueço a sensação, era um domingo de Páscoa, cheio do espírito de Jesus ressuscitado, um mundo novo, realmente um mundo novo. Porque Páscoa é vida nova, Pensei, puxa vida hoje é Páscoa de verdade.