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Francisco Beltrão
segunda-feira, 02 de junho de 2025

Edição 8.217

03/06/2025

Cercas sertanejas

Geral

Baleeiro diante de uma cerca sertaneja em Sento Sé, Bahia (1982). Foto Pe. Marcos Tília.

Nos idos de 70, 80 e 90 andei muito pelo Nordeste. Estão aí centenas de artigos que provam minhas andanças de estudo pelo semiárido nordestino. Um dos temas que me atraíam nessas viagens pelo sertão eram as cercas sertanejas. No início imaginava que fosse tudo a mesma coisa, mas aos poucos, nos mais diversos pontos, no Ceará, no Piauí como na Paraíba, no Rio Grande do Norte como em Pernambuco, fui descobrindo as diferenças dessas cercas na sua tecitura, no uso do material, na sua função: cerca de varas, cerca de rodapé, cerca deitada e cerca de pau-a-pique, cerca de valado e cerca de ramos. E mais cercas surgiam: cerca de coivara, de espera, de lance, de forquilha e por aí vai.

Creio que Souza Barros seja o único tratadista das cercas sertanejas. Fiz dele meu mestre porque nessa matéria há que ser profissional, há que entender da madeira que será usada, há que saber da arte de trançá-la. Gustavo Barroso, em seu belo clássico “Terra do Sol”, não tratou da cerca sertaneja. Uma pena.

Em 1977, no alto do Tucuns, na Serra da Ibiapaba, divisa do Ceará com o Piauí, montado num jegue, cortei duas léguas de sertão, depois subi a serra. Nesse trecho vi muita cerca. Longas e pequenas, como vi cercas sertanejas, tempos depois, no Valado do Cariri e quando visitei Exu, em Pernambuco, hóspede de Maria Ita de Sá Barreto Ayres, dona da Fazenda Araripe, onde viveu Luiz Gonzaga, como registrei em meu livro “Os Dez Brasis”. Contou-me dona Ita que seu Januário e Santana moraram muitos anos na Fazenda Caiçara, ali pertinho, onde nasceu Luiz Gonzaga. Depois vieram para a Araripe. Fotografei a casa deles.

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 Já em Santo Sé, Bahia, fiquei na casa do padre Marcos Tília, norte-americano, piloto e dono de dois monomotores que ganhou do povo de sua terra para ajudar os sertanejos do Vale do São Francisco. Voei com ele sobre o sertão e sobre a represa de Sobradinho. 

Vi muito cercado, como o da foto em que apareço, batida em seu Sítio, perto do lago de Sobradinho.

Outro dia, falando com Anildomá William de Souza, meu amigo de Serra Talhada, Pernambuco, perguntei-lhe se sabia notícias de Luiz Gomes, pai de 22 filhos, 11 vivos, que cultivava pequena roça, protegida por primorosa cerca sertaneja. Contou-me Domá que a prefeitura de Serra Talhada está catalogando os artesãos cerqueiros, mestres na construção de cercas sertanejas. Com o arame farpado e a tela de arame ao alcance do lavrador, a cerca de sertaneja ficou em segundo plano.

Em Crateús, hóspede do saudoso Dom Fragoso, bispo que a Ditadura tinha como comunista, muito falamos sobre a vida no sertão. Disse-me ele que seu pai, paraibano de boa cepa, fez muita cerca sertaneja, trabalhando nos adjuntos, nos mutirões. Comentamos sobre a colocação de caveiras de bode, de vaca, de cabra no alto de uma vara, sobranceira em relação ao resto da cerca. É uma espécie de amuleto, de totem para espantar mau-olhado, espíritos maus. Rara é a cerca que não tem uma caveira como adorno macabro. Mestre Souza Barros nos ensina que: “As cercas se distinguem pelo material (paus, pedras, espinhos, ramos, garranchos, tocos). Há cercas vivas de avelós, macambira, gravatá-açú, alastrado, palmatória brava (quipá), cercas mistas (de arame farpado e avelós e paus grossos coroados com ramos e garranchos). Cercas de estacas e pedras, de pedras e tocos. Na sua maneira de construção, podem ser: de pau-a-pique, faxina, espera, trançado, dormente-em-pé, tesoura, forquilha, coivara, declinada, cama-no-chão, meia-cama, meia-faxina, caiçara, encosto, travessão, meia-cerca, ramada, pedra dobrada, rodapé, arame com rodapé, suspensa, deitada, camada, de lance, esbirro e de valado” (“Cercas Sertanejas”, Souza Barros – Rio de Janeiro, 1957).

Como nos ensina Souza Barros, em velho ensaio, a variedade de tipos de cercas sertanejas é grande, exigindo maestria dos cerqueiros, tipo em extinção, já que o arame-farpado tomou conta.

Confesso que me encantei, tantas vezes, e cheguei a comentar isso com Gerardo Melo Mourão, com Nertan Macedo, dois sábios do universo nordestino. Cheguei a pedir a Mourão que fizesse um livro sobre a cerca nordestina como o fez sobre o couro.

 

Vi velhas cercas sertanejas nos cafundós de São Raymundo Nonato, Piauí, como em Patos, na Paraíba. Nunca tinha escrito sobre o tema, mas minhas conversas telefônicas com o agrônomo Pedro Alberto Carneiro Mendes, de Fortaleza, despertaram-me o desejo de escrever sobre antigas visitas ao Nordeste. Tenho muitos apontamentos. Alberto Carneiro é um velho funcionário da Emater – Ceará, conhecedor profundo da caprinocultura nordestina. Seria meu guia na visita que faria à Embrapa Caprinos e Ovinos, de Sobral, em 2012.

A cerca é tão importante no sertão que gerou um adagiário. Recolhi alguns ditados, como: “Cego é quem não enxerga por uma cerca de varas”. Na política, usa-se muito o provérbio: “Trago os meus eleitores na cerca” ou “Severino tá preso pela muié como criação no cercado”.

É isso aí… cada qual cuida do seu roçado com a cerca que sabe fazer.

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