Sancionada em junho, A Lei Aldir Blanc parecia dar luz a artistas que ficaram sem renda na pandemia. Mas, sem nenhum repasse, eles não ficaram imunes à informalidade e buscaram alternativas para se manter ativos em tempos de peste.
Nada melhor que uma boa sátira. Essa era a proposta da peça Corpo, montada ainda no ano de 2012 por encomenda do Centro Universitário Vale do Iguaçu, de União da Vitória, que brincava com o comando da estrutura humana após o cérebro tirar férias. Só havia sido apresentada duas vezes. A terceira seria em setembro de 2019. A atriz Cris Particheli, junto do escritor e diretor da peça, Anselmo Hofstatter, e o colega Anthoni Cruz, da Companhia Théspis de Teatro, ensaiaram por meses. Apresentação única em Francisco Beltrão e restrita a maiores de 16 anos. Cris só não sabia que aquela seria a última. Poucos meses depois do fechar das cortinas daquela noite não voltou ao palco, mas foi a uma máquina de costura produzir máscaras de proteção facial a fim de substituir a renda que não viria mais do teatro.
“Todos os nossos contratos foram suspensos e cancelados”, conta Cris, única artista do grupo Théspis que não vive apenas do lucro das peças, sobre o impacto da pandemia na renda. “Agora minha rotina tem sido estudos, casa, acompanhando os estudos dos filhos on-line. Comecei a cursar uma pós EAD e estou confeccionando máscaras para ajudar nas despesas da família. Vejo que na pandemia as pessoas perceberam a cultura presente em tudo que buscaram para entretenimento, desde o bebê à terceira idade. As pessoas puderam usufruir do trabalho dos artistas, daquilo que se tinha pronto. Mas os artistas em si, muitos, neste momento, estão passando fome. O cenário artístico é triste para os que vivem da sua arte. O que salvou a gente foi o fato de eu ter assumido no início do ano as aulas de teatro por PSS do município e as máscaras.”
A partir de 2020, a pandemia da Covid-19, uma doença nova e da qual pouco ou nada se sabia, golpeou a saúde do mundo e desmoronou uma a uma as estruturas de diversos setores. A cultura não passou imune. Juntou-se a ela uma crise política que culminou com a saída da então secretária especial da Cultura, Regina Duarte, em maio, sem ela deixar um legado à categoria.
O cenário, como uma peça dramática, mexeu com os artistas, exigindo reinvenção da categoria, e desnudou a precariedade de políticas públicas para artistas brasileiros, que passaram à informalidade. Sem palcos, sem shows e sem exposições, a internet se tornou o meio de divulgação da arte e por onde era possível capitalizar algum recurso. E ainda que a pandemia tenha exigido as primeiras medidas rigorosas já em março, foi só no final de junho que o Governo Federal sancionou a Lei Aldir Blanc — compositor brasileiro que morreu em maio, vítima da Covid — para apoio a artistas. Mas, de forma morosa, a lei ainda não está em pleno vigor.

Lei Aldir Blanc
Publicada no Diário Oficial da União no dia 30 de junho, a Lei Aldir Blanc determinou as ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública causado pela pandemia.
O texto define a disponibilização de R$ 3 bilhões para estados e municípios, a serem distribuídos por meio de três frentes: renda emergencial mensal de R$ 600 a trabalhadores; subsídio para manutenção dos espaços e cooperativas; e no fomento e criação de editais e prêmios que permitam apresentações on-line.
Primeiros recursos
Em Francisco Beltrão, foi em julho que se iniciaram os trâmites para a aplicação da lei. Mas até sexta-feira, dia 9 de outubro, ninguém havia recebido o recurso e artistas ainda estavam se inscrevendo no programa. O Departamento de Cultura do município explicou que a lentidão se dava pelos trâmites legais, que são burocráticos.
Apesar disso, o Parana´ foi um dos primeiros estados a receber o primeiro lote de recursos repassados pelo Governo Federal. Eles foram regulamentados em dois editais em Francisco Beltrão, alinhados com a política de distribuição desses valores. O primeiro, que está com inscrições abertas até o dia 14 de outubro, tinha, até sexta-feira, dia 9, 275 inscrições de artistas e 70 inscrições de instituições e espaços culturais.
O segundo edital ainda estava sendo concluído. Por divisão, fica determinado que artistas que tiverem o cadastro aprovado receberão três parcelas de R$ 600 de auxílio, pagas de uma única vez, retroativamente, pelo Estado. Já as instituições receberão os recursos após uma análise de um comitê e de uma comissão municipal, que definirão os valores a serem repassados.
Produção cultural afetada
Roniedson Rebelatto solicitou o auxílio, mas em 29 de setembro não sabia se os recursos chegariam a tempo de fazer as ações que propunha com a Cooperativa de Arte e Cultura do Sudoeste do Paraná (Coperarte), da qual é diretor-presidente.
“Não temos uma noção dos valores, porque depende de cada município. E todo recurso que for recebido terá que ter uma contrapartida social, que é devolver algum produto cultural para a comunidade. Estamos com a expectativa de realizar alguma coisa em dezembro, mas tudo é expectativa ainda. Temos shows e apresentações que estão aptos a serem realizados, só que sempre naquela: aguardando para ver o que acontece”, conta, em um misto de insegurança e animosidade em relação ao retorno das atividades culturais.
Dos 52 anos de Rebelatto, 12 ele trabalha como empresário na área artística e há cinco na direção da Coperarte. De 2015 para 2020, o objetivo era ver a cooperativa crescer. O que estava dando certo. Se em 2015 a entidade passou por uma reestruturação com sementes sendo plantadas, em 2020 faltavam cestos para colher os frutos. A agenda estava cheia e a impressão era de que o calendário seria pequeno para a quantidade de eventos na região. Mas, depois de duas atividades no início do ano, tudo desmoronou.
“Ia ser uma loucura de tanta coisa que tínhamos projetado. Tanta coisa que tínhamos agendado. Projetos já aprovados e em fase de execução…”, contou Rebelatto, em agosto, com a agenda vazia e calculando um prejuízo de 100%, já que não houve entradas no caixa da cooperativa desde o início da pandemia. “Nós vínhamos até março com tudo lotado e zerou. Não fizemos mais nada, nada exatamente.”
As últimas atividades, conta Rebelatto, foram um circuito de piano que passou por escolas das cidades de Manfrinópolis, Salgado Filho, Flor da Serra do Sul, Enéas Marques e Nova Esperança do Sudeste e o projeto Uma Noite de Ópera, elaborado no estilo das óperas francesas, que circulou no Oeste e Norte do Paraná, até finalizar em Francisco Beltrão, dia 11 de março.
Como trabalham com a organização de eventos e a impossibilidade de aglomerações se tornou uma determinação de saúde para evitar o avanço do coronavírus, Rebelatto viu a sua única atividade “perder necessidade”. Ainda que fossem realizados eventos de forma on-line, a periodicidade não era a mesma. “São pontuais e pequenos”, esclarece, sobre o volume das lives. “Cada artista realiza a sua, e tudo ok. Agrega para o artista, mas não como entidade”, defende.
Com a flexibilização de várias normas, Rebelatto mira com timidez o Natal. Acredita no potencial da data e na recuperação econômica e social da região, já que a morosidade da Lei Aldir Blanc, ainda que dela tenha buscado recurso, não lhe traz conforto suficiente para projetar atividades. “As intenções são boas, mas até agora as coisas não rodaram muito bem. Não é culpa do governo. É que tudo é muito moroso. Até que se estuda como fazer, quem atingiu e como atingiu… estamos trabalhando em conjunto. Mas na prática mesmo ainda não aconteceu. E este ano a gente não tem mais expectativa, a não ser realizar alguma coisa para o Natal. Aproveitamos algumas ideias que seriam realizadas no meio do ano, mas que estão prontas para dezembro.”
Entre elas estão o Festival Internacional de Música, mas apenas com artistas locais, cursos, oficinas e apresentações na época do Natal, estilo pocket-shows (shows curtos), com inserções de 15 a 20 minutos.
Oficinas fechadas
O Natal também aparece como saída para o Departamento de Cultura de Francisco Beltrão, enquanto organiza as inscrições dos artistas na Lei Aldir Blanc. O setor precisou parar as oficinas de arte, que incluíam teatro, dança, desenho e atividade aeróbica, para evitar aglomerações. Algumas dessas atividades são impossíveis de serem realizadas de forma virtual e por isso precisaram ser canceladas. Mas, além de os alunos perderem, os professores da área também ficaram sem renda. Segundo o Departamento de Cultura de Francisco Beltrão, ao menos 11 profissionais que iriam trabalhar nessas atividades foram dispensados.
E o baque na cultura também alcançou os festivais conhecidos no município, que ficaram apenas na lembrança, como Semana Farroupilha, Rock Culture, Mostra Bel, Curta Bel, festivais de dança, teatro, Bienal do Circo e outros. Para se manterem ativos, artistas independentes se voltaram para a internet, onde conseguiram divulgar seus trabalhos, vendê-los e até arrecadar doações.
A força da internet
Apesar de ter crescido ouvindo que arte não dava dinheiro e que era coisa para sonhadores, Eliége Jachini, de 43 anos, formou-se em Escultura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap), de Curitiba, e ainda cursou pós-graduação em Arteterapia, Educação e Saúde na Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), de São Miguel do Oeste.
Ela já usava as redes sociais para divulgar seus trabalhos, mas na pandemia passou a usar muito mais. “Tive que me reinventar também”, conta. “Como minha mãe, pela idade, é considerada de risco e somos bem próximas, tenho feito apenas trabalhos pela internet, pinturas, ilustrações, nada que envolva muito contato com outras pessoas.”

em que vive com a mãe, em Francisco Beltrão.
Sem apoio da Cultura até a divulgação da Lei Aldir Blanc, que até o final de setembro ainda não havia feito nenhum repasse, as finanças preocuparam. Há nove anos de volta a Beltrão, Eliége tem um ateliê na sua casa onde produz quadros, aquarelas, ilustrações digitais e murais. Há dois anos também começou a tatuar, após um curso, e somava isso a sua renda.
Embora diga que tenha conseguido se manter, sentiu-se insegura até descobrir a real reinvenção para a pandemia. “Teve períodos que não conseguia produzir, dei uma travada. Mas também respeitei esse sentimento, até assimilar tudo isso que ainda enfrentamos. Desenhar sempre me ajudou em várias coisas e comecei a desenhar os amigos, fazendo retratos digitais. Tive a ideia de divulgar na internet e assim comecei a vender os retratos também, o que foi um estímulo e retorno às minhas atividades.”
Público on-line: mais de 17 mil visualizações
De forma um pouco distinta, artistas da música encontraram seu público e puderam fazer seus shows, também pela internet. Embora ali não contassem com os valores da bilheteria, puderam buscar outros recursos para garantir esse suporte, como vaquinhas on-line, e ainda usar o meio digital para ações assistencialistas.
A banda beltronense Tiregrito, por exemplo, já havia planejado para 2020, além de gravar três músicas, fazer um megaevento pelos 10 anos de história completados em janeiro. Até março, foram cinco shows, mas a pandemia mudou a agenda do grupo, que só manteve o lançamento das novas músicas (uma foi lançada em setembro e as outras estão no programa da banda) e deixou o evento de aniversário para 2021.
O último show com público foi dia 14 de março. As medidas contra o coronavírus estavam sendo tomadas de forma gradual e o baque foi sentido naquele momento. Depois dele, a agenda foi alterada. “Nós sentimos na pele a preocupação das pessoas”, lembra o guitarrista e banjista Marco Antonio Tesser Pereira. “Já estávamos na estrada e o bar manteve o show, então nós mantivemos o combinado, mas tivemos a presença de apenas 50% do público que estamos acostumados. E deu para sentir que a quarentena estava começando no Brasil nesse mesmo final de semana. Chegamos em Beltrão preocupados com nossos familiares, mas tomamos os cuidados necessários e deu tudo certo.”

Diante da pandemia, e para não cair em um hiato de produção, a alternativa, adotada também por outros artistas, foi a transmissão de uma live, dia 17 de abril, que, além de um show on-line, ajudou na arrecadação de alimentos para a Assistência Social de Beltrão. “Deu um trabalhão pra fazer! Decidimos na terça-feira que a faríamos na sexta da mesma semana! Corremos atrás de toda a infraestrutura necessária pedindo alguns favores e investindo do bolso dos integrantes. Essa dedicação teve um retorno maravilhoso e as doações ajudaram muita gente. Conseguimos manter três meses seguidos de doações com as arrecadações da live”, destacou Marco Antonio.
A apresentação de mais de três horas tinha, no final de setembro, mais de 17 mil visualizações no canal do YouTube. Como os integrantes não vivem exclusivamente da renda da música, mas a utilizam para investir na banda, uma vaquinha on-line foi lançada em julho e conseguiu arrecadar pouco mais de R$ 5 mil até setembro – o objetivo é chegar aos R$ 10 mil. O valor já ajudou a Tiregrito, que, dia 23 de outubro, lança a segunda nova música, “Voltar a ser”, em todas as plataformas digitais, e a produzir um videoclipe.
Questionados sobre outros impactos da pandemia na arte, o vocalista Rafael Barzotto disparou: “A classe artística inteira está sofrendo muito com essa situação de pandemia. Até porque as escolas, os bares e o setor de eventos, pelo visto, vão ser os últimos a reabrir. Temos muitos amigos que têm a música como principal fonte de renda e estão passando por uma grande dificuldade”.
O acordeonista Vinicius Teixeira Urbano acrescenta: “Viver de arte, no Brasil, já é um termo usado em brincadeiras em algumas rodas de conversas. Isso já demonstra a concepção geral que se tem da arte e isso ganhou força em esferas maiores, infelizmente. Mas ser artista no Brasil é ser resistente, persistente, muitas e muitas vezes a remuneração é deixada em segundo plano e a coisa anda meio que por amor à camisa”.