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Na linha de frente na luta contra a covid, outro maior receio das profissionais era se contaminar ou levar o vírus para suas casas. Desde o início, quando souberam da doença e da sua transmissão, elas receberam inúmeros protocolos que, se seguidos, garantiriam a proteção das profissionais que estavam diariamente na luta contra um inimigo invisível e perigoso.
Na Policlínica São Vicente de Paula, o hospital preparou equipes de pessoas jovens, saudáveis e que não tivessem filhos pequenos ou morassem com pessoas idosas para essa batalha. Por se encaixar no perfil, a enfermeira Vanessa Rossoni, de 31 anos, foi destacada para a função e participou junto dos colegas de cursos intensivos para aprender a lidar com o novo vírus.
À família, Vanessa foi enfática: “O dia que eu suspeitar que tiver com covid, eu não volto mais pra casa, vou ficar aqui no hospital”, disse ainda em março. A última vez que tinha visto seus pais era em janeiro de 2020 e sabia que demoraria para ter esse encontro novamente, sobretudo pela função que passaria a exercer.
O hospital também foi adaptado. No início foram destacados cinco leitos para UTI covid, que estavam na então chamada Ala A do hospital. Mas logo precisou ser ampliado, deixando todos os leitos da ala A, inclusive berçário e o auditório do hospital, para leitos.
“Os plantões aqui dentro do covid, não são plantões iguais na ala ou dentro da UTI. A gente trabalha o dia inteiro com medo, medo de fazer alguma coisa errada, de encostar a mão em algum lugar ou mesmo se contaminar na hora que você tá comendo. A gente come só uma vez e toma água também só uma vez, nessa hora a gente aproveita pra fazer xixi, por causa da paramentação, é uma vez só, tem que aproveitar pra fazer xixi, comer e tomar água”, detalha a situação que vivem os profissionais da saúde neste setor.
E todo o cuidado para se montar permanece ao retirar o equipamento, momento onde pode ocorrer a contaminação, caso seja feita de forma errada. Vanessa mantinha o cuidado de, após retirar a roupa, ao final dos plantões, tomar banho no hospital e, ao chegar em casa, tomar outro.
“O meu marido fez um banheiro fora de casa pra mim, eu tomava banho na calçada da minha casa. Eu saía, desparamentava a primeira camada, saía no corredor e vinha aqui tomar banho [fora da ala covid] e passava clorexidine alcoólico. Aí ele [marido] estofou todo o banco com papel filme no carro, a fechadura onde eu pegava, e aí quando eu saía de dentro do carro higienizava tudo com álcool, e aí chegava por trás da casa, sem encostar nem no portão. Ao chegar, ele abria tudo para mim. Ele também colocou um chuveiro na calçada da minha casa, nos fundos da casa, fechou tudo com uma cortina de box e eu tomava banho lá”, detalha.
Apesar dos cuidados extremos, ela acabou se contaminando em setembro de 2020. Mas, diferente da posição que defendia no início, de preferir ficar no hospital em vez de ir para casa, ela se isolou com a família. A escolha foi por ter acompanhado diversos pacientes que, após a internação, não tinham a chance de rever sua família novamente. Caso seu caso agravasse, Vanessa sabia que possivelmente isso ocorreria com ela também. Felizmente, ela passou bem pela covid. Nem seu esposo e nem sua filha se contaminaram.

Manter a saúde mental nesses processos também foi desafiador. Não só uma vez, Vanessa disse que chegou a pensar que não daria conta e temeu diante do avanço da doença e do avanço de ondas negacionistas, que colocavam em xeque a existência da própria pandemia.
Enquanto fora dos muros dos hospitais pessoas se aglomeravam, burlavam o toque de recolher e as medidas de isolamento, eram as profissionais que se dividiam e lutavam para seguir salvando vidas.
Em dezembro, Vanessa acreditou que a UTI não daria conta. “A gente tinha medo de alguém chegar e não ter o que a gente fazer. Eu lembro que eu conversava com a minha equipe. Eu tinha medo de algum paciente chegar e a gente simplesmente colocar no leito e não poder fazer nada. Eu rezava pra que nunca acontecesse isso. Então, sempre tentava melhorar e melhorar. Teve uma noite que eu não tinha vaga em nenhuma das alas, estava tudo cheio e a UTI também estava cheia, e passamos o plantão inteiro torcendo pra que não chegasse mais nenhum paciente covid, isso foi em agosto, mas em dezembro também a mesma coisa, a nossa UTI tem dez leitos e a gente tinha 11 pacientes”, conta.
A chegada da vacina, em fevereiro deste ano, foi um acalento para todos os profissionais. Mas Vanessa não foi vacinada. Ela descobriu uma gravidez e, devido à falta de pesquisas sobre a reação do imunizante em mulheres gestantes, ela não recebeu a dose, mas também foi afastada da ala covid. Porém, o que foi vivido segue em sua memória como uma realidade que ela não vê a hora que seja superada.
“Eu acho muito triste quando vejo pessoas que não se cuidam, fico muito triste de ver os nossos jovens, principalmente, nas baladas. Eu fui outro dia na rua União da Vitória, numa farmácia, e eu fiquei chocada. Falei para meu esposo: Será que tá todo mundo vacinado e eu não sei? Será que tá tudo normal? Porque tem muita gente que tem na cabeça que essa doença foi criada pelo Governo, que não tem nada a ver, que é só tomar cloroquina que tá tudo certo e que ela não existe, que é uma invenção. ‘Ah porque todo mundo que morre agora morre por covid’. Eu gostaria que as pessoas soubessem o que acontecesse aqui, gostaria que todo mundo um dia pudesse ver como que é um paciente de covid aqui, que é muito triste, eles sofrem demais, não é que nem o covid que você pega e é leve e passa em casa. Graças a Deus tem gente que fica muito bem, mas os nossos pacientes aqui é triste, eles ficam muito mal, sabem que a morte tá do lado deles e essa é a pior parte”, pondera.
A reportagem foi apurada no início de março, quando a região vivia uma ligeira queda nos casos. Ao ser finalizada, a região já estava em uma situação diferente: o colapso na saúde obrigou que todos os hospitais mencionados e mais a UPA ampliassem sua capacidade de atendimento. Apesar disso, foi insuficiente para evitar que pessoas morressem nas filas de espera.
De forma unânime, todas as profissionais ouvidas reconhecem a gravidade da doença e, como em uma prece, pedem para que o cuidado seja mantido por todos: “A pandemia não acabou”.
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