
Leonora Sandrin Ratier é uma das poucas pessoas que restam para falar sobre a Cango dos anos 50 e 60. Viúva de Francisco Ratier (4-10-1940 a 22-10-2001), ela relata com emoção o período que acompanhou a história do órgão federal que prestou grandes serviços para o desenvolvimento de Beltrão e região.
Leonora ficava indignada quando ouvia gente dizendo que os funcionários públicos federais ganhavam muito e trabalhavam pouco.
Francisco Ratier, o Chiquinho da Cango, trabalhou desde 1954. Foi registrado em 1º de setembro de 1958. Motorista, operava tratores, caminhão e veículos leves. Nos últimos anos, estava registrado como auxiliar operador agropecuário. Faleceu com apenas 61 anos, pouco tempo depois de se aposentar.
Uma das máquinas que o Chiquinho operou é a patrola que está exposta na Praça da Cango. Sua casa ficava em frente, do outro lado da Avenida General Osório. Quando o Incra iria desmanchar a velha casa de madeira para reconstruir em alvenaria, ele comprou uma casa na Rua São João, do mesmo bairro, onde dona Leonora ainda reside.
Leonora e Francisco Ratier tiveram quatro filhos: Otomar (aposentado como funcionário público federal e professor, três filhos: Otávio, Emanuele e Ana Júlia), Idelmar (falecida), Adriana (engenheira civil, mãe do Lucas) e Juliano (solteiro).
Nesta entrevista, especial para este caderno do Jornal de Beltrão sobre os 80 anos da Cango, dona Leonóra (assim é a pronúncia de quem a conhece) fala de sua vida com o Chiquinho da Cango e a apaixonada vivência dela e o marido com a Cango, que depois foi sucedida pelo Incra.
A senhora tem boas lembranças do seu marido, né?
– Olha, a gente viveu junto mais de 40 anos. Ele foi muito humilde, muito honesto, muito trabalhador, inclusive eu tenho uma placa de honra ao mérito quando ele se aposentou, porque ele não escolhia hora, trabalhava onde fosse, sempre foi muito bem-mandado. Tanto que dá pra ver ali na foto, sabe? Mesmo doente, que ele já tava debilitado porque ele fez aquela, como é que diz, radiação na garganta por causa do cigarro que foi entupindo as veias tudo, foi ficando debilitado, mas mesmo doente ele ia pro campo. O pessoal do Incra ainda poupava, dava o serviço melhor pra ele, pra não judiar muito dele. Mas ele não pedia aposentadoria, não queria se aposentar, ele se aposentou porque não aguentava mais.
E como era o trabalho dele nos primeiros anos, com estrada de chão?
– Os primeiros anos do trabalho do Incra foi sofrido, estrada de chão, carregava esses caminhão de madeira, ia lá pro interior, ficava atolado. Daí o que ele fazia? Pedia pros colonos uma junta de boi pra ajudar a tirar o caminhão do atoleiro, pra poder viajar, mas não dava, daí tinha que ficar lá e ele dormia dentro da cabine do caminhão, esperando sair o sol pra enxugar, pra poder vir embora, e era assim, exatamente. Eu ficava hiper preocupada. Ele foi num dia com uma carga, era só descarregar e voltar e não veio, mas daí começou chuva, chuva, chuva, teve que ficar parado, esperar vim o sol. Foi sofrido, mas venceu esse caminhão de reboque, um caminhão pesado, comprido, de madeira tudo, mas com a maior paciência, com a maior calma, nunca sofreu um acidente, nunca sofreu nada de estragar o carro, bater, tombar, coisa assim que com outros acontecia.
A senhora via toda dedicação do marido e tinha gente que falava mal…
– Muita gente, porque era assim: na segunda feira, todos os funcionários, os motoristas, todos ficavam na frente do escritório do Incra, esperando cada um seguir a sua ordem do chefe. Tinha vários carros, picape, Rural, dois jipes, caminhão. Daí o chefe falava o Algair vai carregar o caminhão pra levar madeira pra fazer a ponte lá no Cotegipe, o Chico vai carregar o caminhão em Marmeleiro que lá tem uma madeira pra construir a igreja lá, outro vai carregar o caminhão pra levar madeira pra fazer a ponte do Rio Cotegipe. Era tudo determinado pelo chefe, cada um com o seu trabalho, e eles ficavam esperando a ordem do chefe. Daí o pessoal passava na rua, via todos eles lá na frente e eles todos fumavam. Sim, sim, aqueles tropa de vagabundo ali na frente do escritório do Incra, fazem o quê? Tão, só pegando dinheiro do governo e fumando e não fazem nada, é uma tropa de vagabundos aqueles funcionários do governo. Mas eu ficava tão queimada! Tu não sabe a história deles. Tu não sabe o quanto que eles estão trabalhando e sofrendo, arriscando até a vida. Hoje os funcionários do Incra têm mais condições, é mais moderno pra trabalhar, porque tem asfalto, tem caminhão e carro novo. Mas aqueles petroleiro, motorista e aquele dos trator que trabalhavam, que tem as máquina ali na praça, que era máquina antiga, que trabalhava com aquilo lá, vocês não sabem o que eles sofreram pra fazer tudo, modernizar pros funcionário de agora. E ainda vocês vêm chamar de vagabundo, por favor! Vocês nem sabem a história desse pessoal aí pra chamar de vagabundo, os antigos, porque esses contratados que entraram agora pegaram tudo pronto, ficou bem melhor. Carro novo, tudo, ganhando diária. Naquele tempo não tinha diária. Quem saía pro campo ganhava diária, mas o meu velho era o salário e só, ele ganhava só o dinheiro pra ele comer lá, ficava fora, né? E pra gasolina, pro óleo, essas coisas aí o Incra dava, mas ele não ganhava recompensa nenhuma a não ser o salário do mês.
E nas confraternizações, como eram? A senhora lembra bem do tempo do chefe Osvaldo Aranha.
– Ai, o tempo do Aranha. Que saudade! Aquele pátio do Incra ali, tudo cercado e tinha brinquedos pras crianças brincar, reunia todos os funcionários no Natal. Eles faziam uma arrecadação na cidade, nas lojas, pra dar presente pras crianças, carrinho, bola, essas coisas, né? No dia de Natal ele fazia janta ou um almoço, e nós passava o dia inteiro naquela festa, no pátio do Incra, tinha a casa que faziam a festa, enfeitavam um funcionário, chamavam de Idelfonso Ratier, eu acho que era, enfeitaram ele de Papai Noel, reunia todas as crianças e dava presentinho pra cada um. E na festa do Incra, lá era churrasco, era bolo. Passava o dia inteiro, fazia aquela festas maravilhosas e daí o doutor Aranha dizia: Olha, nas festas, eu sou funcionário igual vocês, vocês só têm que me respeitar e aceitar o meu comando no trabalho, não quero fuxico de ninguém, não quero encrenca de ninguém. Na hora do trabalho todos têm que obedecer a função que eu tou mandando, daí eu sou o executor. Mas nas festas eu sou funcionário igual vocês, vamos festejar. Numa festa de Natal, ele disse: Eu vou mandar vir um barril de vinho lá do Rio Grande do Sul, um vinho bom. Chegou a hora da festa, esqueceram. Porque muitas vezes ele fazia a festa do Incra, no Natal, lá no Quilômetro Oito, Santa Rosa, perto de um rio, lá tem bastante árvore, um gramado limpo. Os funcionários que não tinham carro iam com o carro do Incra. Tanto levar como trazer de volta. Então, como nós também não tinha carro, era só com o carro do Incra. O funcionário fulano, fulano, fulano vai levar a família desse, daquele e daquele. Não pode beber. É proibido beber um gole de vinho, um gole de cerveja, nada. Esse funcionário tá encarregado pra levar as famílias dos funcionários lá na festa em Santa Rosa. E lá ele fazia aquelas festas, enfeitava o carro de Papai Noel, dava presente tudo porque às vezes fazia aqui na sede do Incra. Mas lá porque tinha rio e coisa, era mais à vontade, ele fazia lá. Tá, daí nós passava a festa tudo lá o dia todo, as crianças ganhavam presente, brincava tudo. Na hora de vim embora ele ia ver. Não pode beber. O funcionário que tem a responsabilidade pelas famílias não pode beber. Chegou a hora do almoço, cadê o vinho? Esquecemos de trazer o vinho. O doutor Aranha disse assim: Aguarde ali, uma hora o vinho vai tá aqui. E venham dois funcionários comigo pra ajudar a segurar o barril. Ele pegou uma picape, veio e disse pros funcionários: Se agarrem bem, porque agora eu vou buscar esse vinho pro almoço. Veio ali, diz que ele vinha ããn, sabe? E chegou a hora do almoço ele voltou com o vinho. O Chico tava junto e um tal de Neco, Manoel Gonzaga e um outro Nego Adelino também falava, vieram os três segurando o barril e ele vinha. Passou a festa, um dia maravilhoso. Chegava o dia das mães, daí tinha a tal de Santina não sei do que, uma que fazia os bolos, daí na festa do Incra, aqui na cidade, aqui na sede do Incra: Vamos fazer a homenagem do dia das mãe, todas as mães tem que comparecer nessa festa. E daí faziam arrecadação também pra dar presentes pra mãe. E o doutor Aranha deixava todos à vontade. Ele dizia assim: A mãe que tem mais filho e a mais idosa vai ganhar o melhor presente. É verdade, mas daí distribuía um pedaço de bolo, bebida, tudo. Pra todas as outras mães também. Ele era assim, muito humano, muito humano. Tanto do meu tempo teve o doutor Glauco antes de eu conhecer o Chico. Quando eu conheci ele, que nós casamos em 62, era o doutor Ciro. Eu participei muito no Incra e junto com meu velho, o tempo da administração do doutor Ciro, depois do doutor Osvaldo Aranha. Mas olha, eu só tenho que agradecer a Deus e a essas pessoas e ao meu velho que ficou todos esses anos dentro do Incra pelo recebimento, me senti uma família, sabe?
Seu pai morreu de acidente, aos 63 anos?
– Acidente. Sabe o que aconteceu? Ele bebia muito e ele era muito violento. Aí ele foi morar em Pato Branco, na casa da minha irmã. Ele atravessava a rodovia pra ir beber, o bar era pro lado de lá. E daí foi de noite, meio bêbado, alta hora que ele saiu do bar pra vir pra casa. Foi atravessar o asfalto, uma carreta pegou, jogou ele do outro lado da rua, quebrou o osso, quebrou, teve morte instantânea. Foi isso que aconteceu, tudo por causa da bebida. Mas com 63 anos e ele era bem saudável, ele não tinha problema de saúde, nada, nunca era doente, nada e ele trabalhava com serraria, com madeira, com coisa assim. A minha família até hoje ainda tem, morava na Vila Nova, ali perto do CTG, tinha um alqueire de terra ali. Aquela casa de formação dos padres que lá em cima, no morro, era terreno do meu pai. Ali toda aquela região.
Como foi que a senhora conheceu o Chiquinho?
– Num matinê, de tarde, uma dança que tinha no salão de um tal de Luís Coser, e o velho Galeazze, era um tocador de gaita. Nós se reunia, todas moças da Vila Nova, os rapazes, tudo. E o Chico, como era da Cango, eu não conhecia. Eu conheci ele naquele matinê, sabe? Daí quando eu namorei com ele, que ele começou a passear em casa, meu pai disse: “Sacramenha, a Leonora tá namorando esse rapaz aí, a gente não conhece, ele não é aqui do nosso bairro, é estranho, eu quero saber quem que ele é pra ela namorar.” Sabe que antigamente era assim, a gente era tudo debaixo de ordem. Daí o pai disse: “Ela que traga ele aqui que eu quero conhecer, quero conversar com ele primeiro de ela se envolver com esse rapaz”. Daí o Chico, como era muito humilde, ele fumava e o pai também fumava, começou a dar carteira de cigarro pro pai, começou a agradar tudo, dai: “Sacramenta. O senhor é Italiano?” Vou saber de que família que tu é, tu se assina Ratier, mas esse sobrenome não é de italiano não. Ratier não é italiano, quero saber de que família que tu veio e quero que tu traga teu pai e tua mãe aqui, que eu quero conhecer e conversar com ele. Eu quero saber com quem que a Leonora tá se envolvendo.” Eu tinha dezessete, dezoito anos, daí o que o Chico fez, tadinho. Pagou um táxi, pegou os dois, o pai Ernesto Ratier e a mãe Olídia Ratier, levou os dois lá em casa pro pai conversar com eles. Olha como que era. E eu acho bom isso dos pais ficar em cima pra saber com quem que tá se envolvendo, não é verdade? Tá, daí ele levou os velhos Ratier lá, o velho Ratier disse: Olha, seu Luiz, o Chiquinho não é meu filho legítimo. Eu peguei ele com três aninhos pra criar. Porque o pai do Chico era agregado do velho Ratier em Jacutinga (RS) que o velho Ratier tinha sítio, terra, roça, fazia grande plantação de milho, de feijão, tudo. Daí ele pegava os pião pra trabalhar. Daí ele disse: E eu criei o Chiquinho desde os três anos de idade que ele mora comigo, que eu criei ele. Mas ele é muito bem-mandado, é de uma família muito pobre, que trabalha de agregado no meu sítio, tem bastante irmão. É uma família muito numerosa e muito pobre, muito humilde. Eu que mandei o Chiquinho na escola, eu que estou educando, eu que tou ensinando. Mas ele é muito bem-mandado, de respeito, pode deixar o dinheiro em cima da mesa, a quantia que for, ele não mexe. Daí o pai: Santo dio, eu vi que ele é muito assim, muito bonzinho.
E a senhora gostava do Chiquinho?
– Eu gostava e o Chico era carinhosoE ele já tava trabalhando no Incra, ele ficou efetivo antes de eu conhecer ele. Daí o pai disse assim: Bom, ele trabalha. Ah, daí o velho Ratier disse: E nós arrumamos trabalho pra ele trabalhar num órgão federal, é um órgão que não paga lá aquele salário, mas dá muita assistência, médico, dentista, casa de morar, dá muita assistência. E o Chiquinho tá no Incra já há quatro anos. Ele disse: Se ele continuar no Incra, pode saber que sua filha tá muito bem encaminhada e ele também.