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Francisco Beltrão
quinta-feira, 29 de maio de 2025

Edição 8.214

29/05/2025

Minha “bomba” virou um cisco de nada

Beltrão

A Jornalista Cristiane Sabadin Tomasi lembra de seu relacionamento com o irmão Vadeson Sabadin, médico beltronense que faleceu no trânsito, aos 28 anos, 19 anos atrás.

Sabe quando a notícia que você tem pra contar é boa, mas a situação é ruim?

Ou melhor dizendo: sabe quando você tem uma bomba pra contar à família, mas, de repente, uma tragédia surge pra te mostrar que não era nada daquilo que você imaginava? Sua bomba se torna um cisco, e a vida te ensina que não temos o controle de absolutamente nada que realmente importa?

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Em setembro de 2001 eu engravidei do João Pedro, meu primeiro filho. Em outubro fiz o teste, e sim, estava mesmo grávida. No começo de novembro, não me recordo o motivo, viajei para Francisco Beltrão – nessa época eu estudava em Chapecó (SC).

 Encontrei o meu irmão e batemos aquele papo. Já fazia alguns meses que a gente não se via e a saudade era grande. O Deco, também conhecido como Vadeson, era médico pediatra e meu melhor amigo. Tínhamos uma cumplicidade incrível.

 Bom. Resumindo, neste dia eu já estava com o João na barriga e ainda era segredo para todos da família – até pra ele. Eu não namorava sério, estava no meio da faculdade e sabia que aquela notícia ia mexer com tudo que meus pais tinham planejado pra mim. Mas eu estava disposta a contar ao meu irmão, afinal, eu tinha certeza que ele poderia me ajudar.

Ele era o filho preferido da dona Neide, era aquele cara que sempre ouvia, sempre apoiava, sempre motivava, sempre escolhia as palavras com cuidado. E era pediatra. Eu pensei: tô feita. Pelo menos vou dizer pra mãe que o meu filho terá consultas vitalícias. Olha a economia. Tinha um ponto positivo nessa história toda.

 Mas eu não falei. Mesmo sendo tão próxima do Deco, mesmo sabendo que podia confiar nele e que seria mais fácil lidar com este dilema juntos, ficamos algumas horas conversando como se o João não estivesse ali dentro. Lembro que era um jogo de futsal na quadra do Sesc – eu fiquei na arquibancada vendo ele jogar com os amigos, e pensando: será que falo?

 Meio louco isso, né. Deixei passar a chance de conversar pessoalmente e na última vez em que nos vimos. Eu não sabia, porque se soubesse teria feito diferente naquele dia. Mais uma prova de que a vida nem sempre nos dá uma segunda oportunidade.

 Mas voltando à história, depois disso voltei a Chapecó, para a semana de provas que finalizaria o ano letivo do curso de Jornalismo. E então chegou dezembro. Era dia 2, essa data eu não esqueço. Liguei pro Deco. Olha só: foi a vida me dando a tal segunda chance e eu, novamente, joguei fora. No telefone falamos sobre o aniversário da Ana e do Mino – era dali a exatos três dias. Ele contou sobre os presentes que havia comprado, e pediu se eu achava que eles iriam gostar. Disse que sim.

Entre uma fala e outra, pensei: “é hora de contar sobre o meu presente de Natal”. Só que travei de novo.

Naquele tempo as ligações duravam até o cartão telefônico cair e faltavam poucos minutos pra eu ser obrigada a dar tchau. Foi nesse momento que eu disse exatamente com essas palavras: “Deco, vou precisar de você quando chegar em casa. Tenho que contar uma novidade pra mãe e pro pai”.

 Nem eu disse o motivo, nem ele perguntou. Só lembro dele dar uma risada, de ficar um silêncio e em seguida dizer: “Tudo bem, aqui a gente conversa”.

Por alguns segundos eu me senti segura e tive vontade de contar tudo pra ele de uma vez. Mas como eu sabia que teríamos todo tempo do mundo pra isso, me limitei a dar um até logo e coloquei o telefone no gancho.

 Alguns dias se passaram e eu fui acordada na manhã do dia 10 de dezembro com uma daquelas notícias que ninguém quer ouvir. E que ninguém também gostaria de dar.

 O Deco sofreu um acidente automobilístico indo pro trabalho. Não resistiu aos ferimentos. Perdemos a conexão aqui na terra, nesta existência. Meu plano de contar tudo a meus pais com ele ao meu lado já tinha ido pro ralo.

 Na hora, não conseguia pensar em outra coisa, porque no fundo eu acho que ele entendeu meu recado na última ligação e sabia que teria que ser meu conciliador. Não disse, mas aquela risada foi como um sinal me dando o recado: “Cris, eu sei o que você aprontou em vez de estar estudando (hehe) e deixa pra mim que vamos amolecer o coração do povo lá em casa”.

E agora?

Só que dezembro chegou colocando as cartas na mesa. Avisando que a vida não se programa, se vive. Eu tive que entrar no carro, viajar e encarar duas realidades de uma vez só: vida e morte.

Sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que contar sozinha sobre a gravidez. O Deco já não poderia me ajudar. Eu não tinha mais o pediatra pra me socorrer nos momentos de dúvida e sufoco. E meu melhor amigo, meu irmão, de uma hora pra outra, partiu.

Aos poucos, o povo descobriu a gestação, afinal a barriga estava crescendo. Minha mãe e meu pai ficaram sabendo numa manhã improvável, sem ensaios ou discursos prontos. Simplesmente saiu: tô grávida. Uma tia querida estava lá em casa nesse dia – tipo aqueles anjos que aparecem do nada.

Eles tinham acabado de enterrar um filho e um neto estava a caminho. Nem lembro direito da cara deles. Nem o que falaram. Uma notícia que eu ensaiei tanto para contar, simplesmente passou quase que despercebida no meio de um furacão de sentimentos.

 Hoje, em dezembro de 2020, o João tem 18 anos. Passou muito tempo depois desse dia.

Passou a tristeza, passaram planos e até algumas lembranças se foram. Só ficou a certeza que o Deco sempre soube de tudo. Desde a última vez que nos vimos. Ele me olhou diferente. Sorriu de um jeito estranho. No telefone puxou um papo do tipo: “conte comigo”.

 Sabe aquelas besteirinhas que a gente não se liga porque vive preocupado demais com outras coisas? Então. É isso que eu sinto hoje. Meu irmão me fortaleceu muito mais do que eu possa imaginar.

A notícia da minha gravidez era só um cisco.

Que bom que agora, Deco, nossas ligações não dependem do tempo do cartão telefônico.

Estão eternizadas para sempre.

Te amo além da vida, meu irmão.

Saudades de toda sua família.

Com amor.

Cristiane Sabadin

Casa na rua Vadeson Sabadin

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