Depois da cegueira, Maria concluiu que a condição não a limitava. Começou a praticar esportes, voltou a estudar e até crochê aprendeu a fazer.
Leandro Czerniaski – Dezesseis de setembro de 2003. “Foi o dia em que me deitei enxergando e amanheci no escuro”, relembra Maria Gritti, na época com 37 anos. Ao acordar naquele dia, quase nem se deu conta de que a visão lhe faltava, acreditou ser um mal-estar passageiro e se levantou. A vista escurecia e clareava, nas palavras dela, e percebeu que o problema era mais grave do que parecia. Desde então está cega – termo que, avisamos, não é depreciativo; é a forma correta de se referir a pessoas com perda total da visão.
O diagnóstico inicial foi de uma inflamação no nervo ótico, mas até hoje não se descobriu ao certo o que provocou a cegueira. Maria tinha a saúde em dia e trabalhava em uma fábrica de conservas em Francisco Beltrão. Precisou deixar o emprego enquanto buscava tratamento para a visão.
Ficar cego é diferente de nascer cego. Quem perde a visão geralmente atravessa um processo de negação e luto até aceitar a permanência da nova condição. Uma queixa que não é fruto da cegueira em si, mas devido à dependência e adaptação.
No começo eu não queria nem sair de casa, mas tive muito apoio. Minha mãe me ensinou a andar de novo e era bem difícil reaprender tudo, um dia entrei numa poça d’água, fiquei atolada, e me deu um desespero por não saber onde eu tava.
Maria Gritti, aposentada.
Maria é dessas mulheres criadas no interior e cuja disposição não esmorece fácil. Católica, voltou a frequentar a igreja e duvidou do padre que lhe sugeriu voltar a estudar. Aprendeu a ler pelo tato e descobriu que a cegueira não a limitava.
Hoje, é ela quem cuida da casa no dia a dia, usando joelheiras para limpar o chão; faz o próprio almoço de vez em quando e até prepara o chimarrão. Viúva há alguns anos, mora nos fundos do lote da mãe. Casa pequena, mas impecável. Duas vezes por semana o ônibus da prefeitura passa buscar para ir aos treinos de goalball. Outras duas vezes, bate ponto no Centro de Apoio Pedagógico, uma iniciativa da Secretaria de Estado da Educação que é referência no Paraná no atendimento às pessoas com deficiência. Foi lá que ela teve acesso a material de apoio para aprender, conheceu outras pessoas cegas e ainda participou de projetos de inclusão. Até crochê ela aprendeu a fazer.

#pracegover Imagem de mulher sentada em sofá; ela segura agulhas e linhas, confeccionando tapete em crochê.
“Quando eu tava na roça [era vidente] tinha feito um curso de crochê, mas não peguei o jeito. E agora aprendi bem, faço até com a linha 4, que é mais fina”, relata, orgulhosa. “O segredo é a paciência e a coordenação. Se não dá certo, a gente desfaz e começa de novo”, completa, enquanto crocheteia, como se cada ponto dado com as mãos organizasse também o emaranhado da memória. Maria ostenta no sofá a colcha que fez: um metro e meio de largura e mais de 90 “bicos”.
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A cozinha abre portas para o mundo
O crochê tem sido usado para atividades com cegos e pessoas com baixa visão por contribuir com as funções cognitivas, de percepção e coordenação. Desde que aprendeu a técnica, a Maria sentiu recuar as dores que tinha nas mãos, melhorou a memória e, claro, a autoconfiança.

#pracegover Foto de grupo de pessoas, algumas com avental e touca, em pé em uma cozinha industrial, com os braços erguidos em comemoração e exibindo o bolo no pote.
A criação das peças fez parte de um projeto implementado pela Aracap, a associação criada por professores do CAP com o objetivo de expandir a atuação e conseguir parcerias. Os alunos participam de oficinas com aulas práticas e didática personalizada que vão além de ensinar a dar o ponto com agulha e linha.
O impacto dessas atividades para a vida dos participantes é gigantesco. Desde premissas básicas como o asseio pessoal, a convivência com os colegas e, principalmente, a autonomia dentro e fora de casa, porque pra vir para a oficina muitos se encorajaram em pegar um ônibus e andar pela cidade, apesar dos desafios das nossas calçadas
Lia Mara Soster, coordenadora do CAP
Junto das oficinas de crochê, outro projeto envolveu a elaboração de receitas. Já pensou como um cego sabe o que é uma pitada de sal, se o ovo está bom pra consumo, o ponto de massa, como acertar a temperatura do forno? Tudo isso foi ensinado, de forma adaptada, para os quase 20 participantes da atividade. A ideia também é combater essa noção capacitista, permitindo que deficientes tenham independência para preparar suas refeições e – por que não? – empreender.
“Ter conhecimentos sobre gestão, custos de produção, entre outros, vai ajudá-los a avaliar oportunidades e fazer as melhores escolhas. E isso é fundamental nesse caminho que eles estão trilhando de, futuramente, abrir o próprio negócio e comercializar os alimentos que produzem”, avalia a consultora do Sebrae/PR Claudineia Cabral. O Serviço foi um dos parceiros nos dois projetos, ministrando workshops voltados ao empreendedorismo para os crocheteiros e confeiteiros.
“Se enxergasse,
não teria feito
tudo o que fiz”
Além do Sebrae, várias instituições e empresas participam dessas atividades, que são viabilizadas por meio do Fundo Social do Sicredi. Nos dois últimos anos, a Aracap montou a proposta, inscreveu o projeto e foi contemplada com recursos da iniciativa social da cooperativa Sicredi Iguaçu. O dinheiro é usado para contratar os profissionais que vão ministrar as oficinas, comprar material, utensílios e ainda confeccionar itens necessários para as atividades.
A Lia torce para que a parceria entre a entidade e a cooperativa continue – neste ano, um novo projeto foi inscrito – e a Maria também, pois ainda quer resgatar um antigo sonho de aprender a tocar violão. Vai que a oficina de música seja a próxima? “Eu já enfrentei algumas batalhas bem difíceis. Primeiro a cegueira, depois perdi o meu companheiro de uma vida, mas fui em frente e hoje tenho meu cantinho, estudo, tenho um monte de medalhas do goalball e das corridas, faço meus tapetinhos e viajo. Penso que se eu tivesse enxergando talvez não teria feito tudo que fiz até aqui e o que ainda vou fazer”, finaliza.
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De grão em grão, a cooperativa gera impacto
O resultado gerado pelos projetos contemplados no Fundo Social da Sicredi Iguaçu tem surpreendido a cooperativa. Neste ano, a expectativa é ter mais de 200 projetos, a maior quantidade desde a implantação da iniciativa, dois anos atrás, quando foram executadas 92 propostas. Os valores aplicados também subiram: de R$ 951 mil para 1,8 milhão.

A proposta é ter um canal que permita acessar recursos para iniciativas nos mais variados segmentos. Mas tudo de forma transparente e com regras claras: o Conselho de Administração define o percentual dos resultados do ano anterior, que na Sicredi Iguaçu pode chegar a 3%, e o valor é “distribuído” entre as agências conforme a quantidade de associados e o resultado de cada uma. As entidades interessadas se inscrevem, apresentam seus projetos e, caso sejam contempladas, prestam contas de tudo.
Pode não parecer muito – cada projeto recebe de R$ 1 mil a R$ 15 mil – mas esse dinheiro está sendo aplicado, principalmente, no futuro. “O setor da educação é um dos que mais encaminha propostas, cerca de 70% vêm de escolas. Já repassamos recursos para compra de livros, aquisição de praças infantis, oficinas e até compra de uniformes”, detalha a assessora para a área do cooperativismo, Letycia Fossatti Testa.

#pracegover Imagem de um cômodo com armários e livros, tapete com brinquedos e sofás. O sol que entra pela janela ao fundo ilumina o ambiente.
O Fundo também tem apoiado iniciativas de cultura, esporte, saúde, meio ambiente, segurança e inclusão social, como as oficinas da Aracap. É um programa que complementa outras ações de interesse pela comunidade, sejam esporádicas ou permanentes, e que estabelecem uma relação de desenvolvimento mútuo sem muito alarde. A Letycia gosta de exemplificar o impacto do Fundo Social o comparando com uma famosa campanha nacional: o Criança Esperança arrecadou cerca de R$ 15 milhões no ano passado, já o Sistema Sicredi distribuiu R$ 50 milhões.