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Francisco Beltrão
sexta-feira, 30 de maio de 2025

Edição 8.216

31/05/2025

Coronel Cascudo

Geral

Vivos fossem, Nertan Macedo e Gerardo Mello Mourão iriam apreciar o livro da escritora, acadêmica, jornalista e procuradora de Justiça Anna Maria Cascudo Barreto, filha de Câmara Cascudo, sobre seu avô Francisco Justiniano de Oliveira Cascudo (1863-1935), um coronel da guarda-nacional, sui generis, filantropo e mecenas, dono de jornal, comerciante, homem de sociedade, amigo de seus amigos e de tal modo crente na amizade, e no “fio de bigode” que por astes e desastres acabou falindo, depois de décadas como grande-senhor do comércio da cidade do Natal.

O Coronel Cascudo, bem jovem mascateou pelo sertão do Campo Grande (depois Augusto Severo). No final do século XIX fez-se, como alferes da tropa paga do Rio Grande do Norte, “caçador de cangaceiros” e fanáticos na serra do João do Valle. De sua época de caçador de cangaceiros e desordeiros com rifle papo de fogo, na velha oligarquia de Pedro Velho, que governou o Estado potiguar de 1892 a 1896. Há todo um lendário. Ficou célebre sua caçada a Moita Brava, Pilão Deitado e Cocada, estórias que contava com engenho e arte, depois repetidas por seu filho Câmara Cascudo, que lhes dava colorido especial no português saboroso de seus textos, como se pode ver em “O Tempo e Eu”, de que Anna publicou excertos preciosos.

Protegido pelo “Pedrovelhismo”, oligarquia que dominou o Rio Grande do Norte por bom tempo. Francisco Cascudo, coronel da Guarda Nacional em 1903 por decreto do presidente Rodrigues Alves, deixou a vida militar, o combate ao cangaço e, como fora em sua juventude, voltou ao comércio, primeiro com a casa “O profeta”, depois como “F. Cascudo e Cia”. Chegou a ter monopólio da carne verde em Natal, dos automóveis e cimento, que vinham dos Estados Unidos. Montou jornal, “A Imprensa”, que funcionou por 14 anos, verdadeiro celeiro de talentos e órgão que abria espaços para os jovens, em que o próprio Luís da Câmara Cascudo se lançou.

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A biografia de Ana Maria Cascudo Barreto mostra-nos um coronel filantropo e mecenas, sempre atento aos mais pobres e que acabou falindo por jamais desconfiar das pessoas, mesmo quando a “Lei das Contas Assinadas” lhe garantia o direito de exigir duplicatas, fazer papagaios, obter documentos de comprovação de dívida. Resolvia sempre acreditar nos amigos. A tal ponto chegou o número de avais, de dívidas assumidas que começou a escassear-lhe o crédito. Perdeu o monopólio da carne verde em Natal, perdeu os grandes fornecedores.

Luís da Câmara Cascudo, seu filho, que vira o pai no auge da riqueza na Vila Cascudo, onde viveu dos l5 aos 34 anos, sai do paraíso para uma casa modesta. Na bagagem, o miolo do que restou da casa, como diria ele, veio perdida uma velha chave. Era a chave de seu quarto de solteiro, relíquia preciosa daquele tempo de fartura, do Paradiso Perdutto, do menino rico, dos três carros na garagem, cavalo, criados e festas. Agora, ao lado da chave que abriu tantas vezes a memória de Cascudo para a volta fantástica e fantasmagórica à Vila Cascudo, há o livro de Ana sobre o Coronel Cascudo, seu universo. Tudo está ali evocado: o fausto e a decadência, os leilões, as hipotecas, a velhice e a morte.

Aos 34 anos Luís da Câmara Cascudo deixa a Vila Cascudo ou Principado do Tirol, rica vivenda, para sustentar os pais, a mulher e um filho com seu salário de professor, pobreza nua e crua a que chegara o patriarca, coronel Francisco Cascudo, a que o Rio Grande do Norte rico, poderoso, bem afeiçoado, impressionantes olhos azuis, alto e cortejado. Sucumbiu diante de tantos avais, mercê de seu imenso coração. Sumiram os 1.200 compadres, a multidão de amigos. Seus bens foram à praça. O Coronel Cascudo viu-se pobre, embora cum dignitate.

Não foi um coronel típico dos sertões, como tantos que falam os livros de Nertan Macedo, Gerardo Mello Mourão e Vitor Nunes Leal. Urbanizou-se cedo. Propiciou ao filho Luís facilidades para estudar e lhe possibilitou montar valiosa  biblioteca, base de sua imensa cultura. Sua magnanimidade fez dele um homem cordial, incapaz de agredir os ingratos, os inadimplentes e cobrar conta de viúvas. Conta sua biógrafa que mesmo no infortúnio, jamais se queixou da sorte. Chegou um momento, entende sua competente biógrafa e neta amantíssima, que a cidade se julgava, de certa forma, culpada pela sua falência. Faliu porque ajudou a tantos. Nunca deixou de ser importante para a vida da cidade. Tal sua expressão e notabilidade que repousou no piso da capela-mor da Igreja de Santo Antônio da cidade do Natal e, só mais tarde, passou a jazer no Cemitério do Alecrim. Não morreu com odor de santidade, como diria a linguagem eclesial, mas com odor de bondade, longe do bacamarte de seu tempo juvenil de caçador de cangaceiro. É nome de rua em Natal.

A biografia do Coronel Cascudo, pela neta Ana, lavrada em saboroso português, plena de emoção e afeto, seria assinada, sem pestanejar, por seu filho Luís da Câmara Cascudo e guardada em sua panóplia d’armas ao lado da bengala de bambu da Índia, que o coronel usou por décadas, da chave do quarto de solteiro da Vila Cascudo, saudade eterna de Ludovicus, como diria seu padrinho que sabia latim. Dessa tríade, bengala, chave e livro de Ana brotarão, sempre, estórias, fatos e alumbramentos para a literatura-maior da cidade do Natal. A biografia do Coronel Cascudo, o Herói Oculto é um prêmio e presente, também, para a bisneta do coronel, Daliana, devotada com competência e amor à memória de seu avô, esse monumento da cultura potiguar e do Brasil: Luís da Câmara Cascudo.

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