Geral
Só aos poucos, ao longo de muita pesquisa, compulsando livros, jornais e documentos, pude entender o leitmotiv de Quintino Bocaiúva doar l5.311 km² à Argentina, como ministro do Exterior do Governo Provisório, que acabara de assumir a governança do Brasil, depois de quase meio século de reinado de Dom Pedro II. Com medo de uma guerra com a Argentina, o que seria um desastre para a nascente república, assinou oTratado de Montevidéu (25 de janeiro de 1890) que fazia a divisão salomônica, meio a meio, de 30.622 km² da área em litígio com a Argentina.
Levei muito tempo para entender as razões de Estado que convenceram um homem da honestidade, do patriotismo e da retidão da moral de Quintino Bocaiúva a aceitar e aderir à decisão do Governo Provisório de assinar tal tratado. A gleba doada pelo Tratado de Montevidéu à Argentina abrangia grande parte do Sudoeste do Paraná e do Oeste catarinense.
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Quintino Bocaiúva, o patriarca da República. |
Trace, no mapa, uma linha reta da foz do Rio Chopim à foz do Rio Chapecó e verá, à esquerda, o que seria doado à Argentina. Felizmente o Congresso Nacional não ratificou esse Tratado. Mais tarde, em 36 artigos em “O Paiz”, que tive a paciência de ler um por um, publicados entre 27 de novembro de 1891 e 13 de outubro de 1892, com o título “Na Defensiva”, ele expôs a razão daquela decisão. Achava o grande patriotaQuintino Bocaiúva, cuja retidão de caráter foi elevada ao exagero por Pinheiro Machado, que exclamou ao visitá-lo já no leito de morte: “O Quintino é um santo!”, que não podíamos entrar em guerra com a Argentina por um pedaço de terra: “O melhor meio de nos assegurarmos contra futuros e eventuais perigos de guerra é sermos amigos e observarmos nas nossas relações internacionais uma política leal, honesta, desinteressada e amistosa. Terras, temo-las de sobra, o que nos falta é juízo”.
Quintino não queria, pela fragilidade da república, instalada há menos de três meses, uma guerra com a Argentina por razões fronteiriças. O Tratado ficaria para ser referendado pela Câmara dos Deputados, mais tarde, quando foi recusado. O próprio Quintino Bocaiúva, que o havia assinado em Montevidéu, recomendara que a Câmara votasse contra. A república já tinha um ano e meio! A derrota foi acachapante: 142 a 5, em 10 de agosto de 1891.
Nenhum interesse — salvo o da Nação e a preservação da paz, entendem os estudiosos de sua vida — levou Quintino a assinar o Tratado de Montevidéu, mal aceito pela opinião pública, mesmo tendo como signatário, como chanceler do Brasil, a figura de Quintino Bocaiúva, notável jornalista, orador de grandes arroubos cívicos, mentor da república a ponto de ser cognominado o patriarca da República, cuja vida foi um exemplo. Seu testamento, excetuando-se a agressividade, o fel contra a Igreja (aversão cuja raiz caberia ampla pesquisa), demonstra o quanto ele era avesso às honras, às luzes da ribalta. Assumia a vida pública como sacerdócio. Ainda não teve uma biografia à altura de sua grande vida.
Pediu que a família não fizesse anúncio ou convite de seu sepultamento, muito menos mandasse celebrar missa por sua alma. Lê-se em seu testamento: “Penso ter sido intimamente cristão e suponho que o cristianismo, na sua pureza de origem, ainda é um ideal afastado da humanidade nos tempos que correm”. E, mais adiante, lê-se: “O meu enterro deve ser decente, mas singelo — não quero armação de eça na minha casa, nem encomendação de nenhum padre, ainda que algum se ofereça para isso. Desejo ser sepultado numa cova rasa sobre a qual não se fará lápide ou qualquer outro símbolo material, que recorde a minha existência”.
Quintino nasceu no Rio de Janeiro em 4 de dezembro de 1836 e recebeu o nome de Quintino Ferreira de Sousa. Morreu aos 76 anos, em 11 de julho de 1912. O sobrenome Bocaiúva é uma corruptela de bacaíba, macaíba, palavra tupi, adotada na onda nativista que viveu a nação nos anos pós-independência do Brasil.
No próximo artigo, tratarei com maior riqueza de pormenores da rejeição do Tratado de Montevidéu e de seu texto, que, se ratificado pelo Brasil, teríamos perdido 15.311 km², dando grande parte do Sudoeste do Paraná e do Oeste catarinense. A Argentina gostou tanto do Tratado que logo dedicou uma rua a Quintino Bocaiúva em Buenos Aires, pela qual tenciono andar em minha próxima visita semestral com fins familiares e culturais. Menos de um século depois, o Brasil comete outra asneira, a burrice de construir, em parceria com o Paraguai, a Usina de Itaipu, que dará ao Brasil imensas dores de cabeça, como já está a ocorrer. Agora mesmo, de maneira absurda, pouco inteligente, o Brasil está se intrometendo em assuntos internos do Paraguai, colocando em risco nossas relações em que Itaipu é um ponto delicado. O erro do século do Brasil foi termos construído Itaipu com o Paraguai. Já disse isso a Jorge Samek. O sábio Osny Duarte Pereira cantou a pedra 20 anos antes! O Brasil não prima pela sabedoria e o Itamaraty está entregue a ideólogos. Que triste fase de nossa diplomacia para a comemoração dos cem anos da morte do Barão do Rio-Branco. (Continua no próximo sábado)