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Francisco Beltrão
sexta-feira, 06 de junho de 2025

Edição 8.220

06/06/2025

Pendengo, o candieiro da Rosa dos Ventos

Pendengo

Não sei se meus dois eruditos leitores sabem o que seja candieiro de bois. É aquele menino, geralmente negro, que seguia diante das juntas de bois, sempre mais de duas ou três, conduzindo a carroça com rodas cantantes. Conheci na Rosa dos Ventos, fazenda do Tio Januca, 800 alqueires de terra, um desses candieiros, o Pendengo.
Foge-me o nome, só me lembro do apelido Pendengo, negro, órfão de pai, vivia com a mãe e irmãos no Chevrand, um setor da fazenda. Creio que haja começado a candiar aos 9 anos.
Chegava cedo ao terreiro da Rosa dos Ventos. Andava dois quilômetros de sua casa, no Chevrand, à sede, em cujas imediações morava seu chefe, o carreiro sô Claudio, há mais de vinte anos comandante supremo das dez juntas de bois da fazenda para arrastar toras de eucalipto, buscar milho, feijão, banana, batata-doce, laranja, abóbora e o que mais se produzisse.
Sete horas da manhã já estava o Pendengo no Pasto dos Montes, na Cachoeira ou nos fundos da sede em busca dos bois de carro. Relógio, Rio Branco, Araçá e Brasileiro, para citar alguns, já o reconheciam de longe. Não me lembro, mas acho que não ia à escolinha que ficava a 30 metros da sede. Só para registrar, Tio Januca, que foi secretário de Educação de São Paulo, nunca se deu ao trabalho de visitar essa escolinha, cuja professora vinha de bicicleta de Monerá (RJ).
Não tinha, à época, condições intelectuais para avaliar, no todo, a tragédia do Pendengo, órfão, negro, pobre, oprimido. O que vi na Rosa dos Ventos de injustiça social, de falta de estrutura, faz-me refletir. Nossa tragédia social, mormente da raça negra, vem da desestrutura deixada pela escravidão, que lançou milhares de pessoas na miséria. Antes viviam sob a opressão do chicote e do senhor. O Pendengo era trineto de escravos que ficou pelas roças da Rosa dos Ventos. Não pôde estudar. Seus antepassados ficaram ali fazendo pequenos serviços, colhendo uma carroça de milho, um balaio de feijão, dez cachos de banana. 
Por uns cinco anos – depois sumiu – vi Pendengo à frente dos bois do carreiro sô Cláudio de Paula, falecido nos anos 80.
Certa feita, a fazenda vendeu mais de mil toras de eucalipto (30 metros) para um porto em Vitória (ES). Era um movimento intenso. Dez juntas de bois, tantos caminhões trucados que levavam aquelas toras, não mais de cinco por viagem. Com aquele dinheiro, Tio Januca pagou a última parcela da fazenda que havia comprado em 1960. O pobre Pendengo não ganhou uma camiseta nova de recompensa. Tio Januca só pensava na sua congregação, sua ideia fixa. O Pendengo andava todo remendado. Nunca o vi calçado, exceto com uma bota velha de borracha nos dias de chuva.
Minha mãe o chamava, amiúde, para tomar uma xícara de café com pão nas manhãs geladas de junho-julho.
O ponto culminante da Rosa dos Ventos, no morro do Cruzeiro, ficava a 1.150 metros, onde havia uma cruz de concreto mandada erigir pelo dr. Bandeira Vaughan. Vou perguntar ao Antoninho Storck e à pintora, poeta e folclorista Marina Gaspar Santanna, minha amiga há 40 anos, se o cruzeiro ainda está de pé. Um irmão de Marina costumava caçar na Rosas dos Ventos nos anos 60.
Sugiro ao Martinho da Vila, nascido em terras lindeiras com a velha Rancharia do Norte, há mais de 80 anos chamada Rosa dos Ventos, que coloque este artigo para a leitura de seus amigos no Museu Martinho da Vila de Duas Barras. 
A Rosa dos Ventos com suas 40 famílias de agregados serviu-me de verdadeiro laboratório, antes de ter lido Casa Grande e Senzala, Menino de Engenho, Coronelimo, Enxada e Voto, antes de conhecer a literatura que trata de nossa estrutura agrária. Vi, na prática, o êxodo rural do centro-norte fluminense. 
Se Pendengo tivesse seu pai, por certo não teria talvez começado a trabalhar aos 9 anos. Mesmo pobre, teria na pequena área ao redor da casa roças de milho, feijão, meio hectare de banana, goiaba, cana, uma horta, um cavalo, como todas as famílias da Rosa dos Ventos. Ou, talvez, seja ilusão minha…
Nos anos 65-70, a Rosa dos Ventos começou a mandar embora as famílias: dava um terreno em Monerá (cujas áreas da fazenda circundavam) e se livrava de indenizações litigiosas. Hoje, leio incontáveis livros sobre a escravidão no Brasil e o problema agrário, o êxodo rural e basta-me olhar para o microcosmo da Rosa dos Ventos e lá encontrarei exemplos reais para muitas teorias. 
Ainda estou a ouvir o Pendengo a gritar com os bois na vereda da Rosa dos Ventos: “Fasta, Relógio! Conserta, Coração! Ajeita, Rio Branco!”
Por onde andará o Pendengo? Será que avançou socialmente? O que fazem seus filhos e netos? Quantos Pendengos há, hoje, Brasil afora, com outros nomes, mas na mesma miséria?

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