O Plano Nacional de Educação em andamento pretende erradicar o analfabetismo até 2024, mas, como nas iniciativas de governos anteriores, a meta não será atingida.
Quando penso nas escolas que frequentei, dentre outras lembranças, salta da memória o desconforto com a dificuldade de aprender certas coisas. Eu tinha arrepios de matérias como o teorema de Pitágoras, por exemplo. Aquela história de que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos… Quanto sofrimento! Só conseguia identificar “catetos” como um bicho que de vez em quando ia se alimentar nas roças do meu pai. Nunca entendi a importância de conhecer fórmulas abstratas de Matemática. Razões essas que continuo procurando até hoje.
Nem mesmo o Google me salvou, com sua explicação técnica: “Podemos utilizar esse teorema para facilitar o cálculo da diagonal de um quadrado e a altura de um triângulo equilátero (triângulo com os lados iguais)”. Ou seja, continuei na mesma.
Brincadeiras à parte, imagino que o teorema de Pitágoras tenha sua serventia, sim. Mas acredito também que ele jamais entraria em uma aula do Método Paulo Freire de alfabetização, que começa com a investigação do universo temático dos educandos; considera o conhecimento como uma construção coletiva com a participação de todos, inclusive do professor, na compreensão da realidade local e da imersão naquele contexto vocabular. Com isso, o aprender a ler e escrever, ou seja, a alfabetização, acontece simultaneamente a uma releitura coletiva da realidade.
O método inventado pelo pernambucano Paulo Freire, pedagogo, filósofo e escritor que no dia 19 deste mês de setembro teria completado 100 anos, deu um sopro de inclusão e reduziu a rigidez nas escolas a partir da década de 1960. A ponto de o governo de João Goulart (1961-1964) ter anunciado em janeiro de 1964 a Campanha Nacional de Alfabetização (PNA), baseada no Método Paulo Freire. Se tivesse sido implementado, teria elevado de 12 milhões para 17 milhões o total de eleitores na eleição presidencial de 1965. O projeto assustou os conservadores, e meses depois, em março do mesmo ano, os militares, com apoio da sociedade civil, afastaram Jango da Presidência da República.
O livro fundamental da obra do educador, Pedagogia do Oprimido, escrito em 1968, é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo. Freire é estudado em universidades americanas, homenageado com escultura na Suécia, nome de centro de estudos na Finlândia e inspiração para cientistas em Kosovo. Steve Denning, autor de livros sobre estratégia e inovação, defendeu nas páginas da revista Forbes, a “Ferramenta do Capitalismo”, as propostas do brasileiro como alternativa para renovar o sistema educacional dos Estados Unidos. Não importa que seja um pensador de esquerda.
Aqui, Freire foi banido do país após o golpe civil militar de 1964 e agora, em seu centenário de nascimento, é festejado mas também atacado. Com exceção de alguns governos locais que valorizaram seu jeito de criar cidadania, como na gestão de Luiza Erundina (1989-1992) na Prefeitura de São Paulo. Neste e nos próximos anos, o Brasil precisará incrementar seu programa educacional com o impacto da pandemia, os desmontes e os baixos índices obtidos nos exames nacionais. Sem contar o contingente de brasileiros considerados analfabetos.
Segundo o IBGE, em 2018 o analfabetismo absoluto atingia 6,8% da população, enquanto o analfabetismo funcional – incapacidade de compreender e utilizar a informação escrita e refletir sobre ela – é muito maior, de 29%. O Plano Nacional de Educação em andamento pretende erradicar o analfabetismo até 2024, mas, como nas iniciativas de governos anteriores, a meta não será atingida. Ainda mais com o problema adicional da suspensão das aulas presenciais, por muitos meses, por causa da pandemia de Covid-19, da falta de acesso à internet e a computadores com conexão de qualidade.
Superar a polarização atual na sociedade brasileira poderia ser um passo relevante na luta pela alfabetização – dos que não sabem ler nem escrever e também dos que conseguem fazer isso, porém pela metade, constituindo os analfabetos funcionais. Certamente, Paulo Freire continuará fazendo bonito lá fora, mas por aqui seguirá com enormes e históricas dificuldades para vingar.