Romancista consagrado, João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) também deu sustentação à carreira de escritor como cronista e contista. Manteve, por anos, colunas nos jornais A Tarde, O Estadão e O Globo produzindo textos que depois ganharam as livrarias em coletâneas.
Nesta edição, a coluna “Meninos, eu li” destaca “Já podeis da pátria filhos”, livro com 17 contos. Ele foi lançado em 1981 com o título “Livro de histórias”. A mudança no nome veio dez anos depois, quando a obra foi reeditada e ganhou dois novos contos – “Patrocinando a arte” e “Estouro da boiada”.
As histórias narradas por João estão mais uma vez ambientadas na Ilha de Itaparica, no Recôncavo Baiano – boa parte dos romances do autor também utilizaram este local de pano de fundo. São narrativas divertidas e fantasiosas, como no conto-título (Já podeis da pátria filhos”), em que reflete sobre o futebol e o modo peculiar – através da safadeza – com que os itaparicanos usam para vencer uma partida contra estrangeiros.
Para atrair o leitor para a obra, destaco “O santo que não acreditava em Deus”, estória que em 2003 ganhou adaptação para o cinema, sob o título “Deus é brasileiro”. Siga:
O Santo que não acreditava em Deus

“O santo anda dificílimo. Quando eu acho um, boto logo as mãos para o céu.” Esse o desabafo de Deus para um pescador, às margens da Ilha de Itaparica. Nosso Senhor surgiu escorado numa torre velha no meio d’água, com calças arregaçadas, um chapéu velho e suspensório por cima da camisa. Estava em busca de um santo.
Pra fazer o sujeito acreditar que quem estava ali de fato ele era Deus, precisou primeiro provar: um cardume saltou em revoada, um peixe pairou no ar e deu uma rabanada na cara do pescador. Pronto!
Deus primeiro desabafou. Falou da dificuldade de se encontrar um santo. A situação não andava nada boa pro seu lado. “Depois que eu fiz tudo isso aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem que resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha?”
Explicou ao pescador que o santo assim se torna pelas ações que faz pelos outros no dia dia. “Esse negócio de milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra.”
Tendo explicado o dilema, pediu ao pescador que o levasse à feira de Maragogipe. Estava a procura de um certo Quinca das Mulas, assim chamado porque podendo ser rico tudo deu aos outros, preterindo passar o tempo “causando perturbação, ensinando besteiras e fazendo questão de dar uma mão a todos que ele dizia que eram boas pessoas, sendo estas boas pessoas dele todas desqualificadas”.
O pior de tudo era que o dito Quinca sequer acreditava em Deus e até brigava com o padre.
Encontraram-no numa barraca em Maragogipe, já depois de ter tomado algumas. E, assim, comendo um sarapatel com o Criador, na maior camaradagem, iniciou-se a labuta para convencer o homem de que quem estava ali era Deus e, depois, para que se tornasse santo. “Você tem que ser santo, seu desgraçado”, gritava Nosso Senhor.
A seguir, a lista dos 17 contos de “Já podeis da pátria filhos”
- Alandelão de la patrie
- O bom robalo de compadre Edinho
- Pensamentos, palavras e obras
- A vez quando Luiz Cuiúba comeu seis ou sete veranistas
- Já podeis da pátria filhos
- Vavá Paparrão contra Vanderdique Vanderlei
- O poder da arte e da palavra
- Brincando de doutor
- O diabo que assoviava
- O boi insidioso
- O artista que veio aqui dançar com as moças
- O santo que não acreditava em Deus
- O jegue Boneco e o jegue Suspiro
- O magnata do voto
- Patrocinando a arte
- O estouro da boiada
- Era um dia diferente quando se matava porco
Referências
- Título: Já podeis da pátria filhos;
- Gênero: Crônicas;
- Autor: João Ubaldo Ribeiro;
- Número de páginas: 194;
- Editora: Alfaguara;
- Ano de lançamento: 1992.