Se João fosse uma ilha, a água seria as responsabilidades que assumiu.
“Quando foi a última vez que tu fez algo pela primeira vez?”. João ouviu tal pergunta e ficou paralisado. Quem questionava, fazendo uso de uma ultrapassada ligação telefônica, era um amigo de longa data. Respondeu um tímido: “Não lembro”. E não lembrava mesmo. Seu amigo estava entusiasmado para contar que começara a surfar. O rosto de João esboçou tristeza.
A dúvida não era apenas sobre a última vez que fez algo novo. O buraco era ainda mais profundo. João não lembrava nem a última vez que fez algo que gostava. Já não sabia mais o que era separar um tempo na agenda para si próprio. Se João fosse uma ilha, a água seria todas as responsabilidades que assumiu.
A pergunta realizada por seu amigo tornou grisalha aquela ensolarada quarta-feira. Destemido, João decidiu que daquele dia não passava. Quando os ponteiros do relógio alcançaram o maior distanciamento permitido, sentiu seu voo ser ceifado quando o chefe da repartição o chamou. O pedido de seu patrão resultou em mais uma hora e meia de trabalho. Porém, João não desanimou.
Fechou a porta do carro e o alarme do celular bradou para lembrar que deveria ir até a casa de sua irmã. Ela estava com problemas com o Imposto de Renda. Após um longo suspiro, criou coragem e foi cumprir com o combinado. Quando saiu de lá, não acreditou na mensagem que brilhava na tela do celular. Seu padrinho precisava de ajuda com a impressora. E era urgente. O retrovisor do carro percebeu que as pupilas dos olhos de João ficaram opacas com mais este pedido.
O porteiro do prédio dormia quando João entrou no saguão. Escorado no espelho do elevador, João tentava reunir forças para aproveitar aqueles minutos que lhe sobraram. Será que daria tempo de ver um filme? De começar um livro? Ou de relembrar os passos de dança que tanto gostava? Começar algo novo, infelizmente, estava fora de cogitação naquela altura da noite.
Então, assustado, acordou com o alarme que acusava o início da quinta-feira.
