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Quero partilhar com nossos leitores parte de uma reflexão feita pelo Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, quando fez seu comentário sobre o Evangelho de João (cf. Jo 6,60-69), quando Jesus afirma que “as palavras que vos falei são espírito e vida…” (Jo 6,63). É o mês da “Palavra de Deus”.
Um dos maiores dramas de nossa atual cultura é que temos esvaziado as palavras de sentido, e, até com frequência, as utilizamos para expressar coisas totalmente diferentes e até opostas ao seu significado original. Chamamos liberdade o que na realidade é arbitrariedade e imposição; felicidade passou a significar consumo e vaidade; a qualidade de vida está ligada à quantidade de coisas; negócio passou a ser grosseira especulação e roubo; ordem estabelecida à dominação e à injustiça; diplomacia ao engano e à mentira; sinceridade à falta de respeito; amor à atração física, ou ao desejo de posse… Uma gravíssima desvalorização da palavra acaba se expressando na desvalorização da ética, da política, da vida. Há palavras que, de repente, se põem de moda entre nós, expressões felizes que por força da repetição acabam se esvaziando.
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Os “comerciantes da morte” mataram as palavras, arrancaram dela o coração e as transformaram em meras máscaras ocas, em sons sem alma, com os quais pretendem nos seduzir, nos enganar e nos manipular. Não há pior escravidão que a mentira; ela oprime, tortura, impede de sair de si mesmo para viver uma comunicação sadia com quem pensa, sente e ama diferente. Não há nada mais desprezível que a eloquência de uma pessoa que não diz a verdade. É preciso libertar a consciência dizendo sempre a verdade. É preferível perturbar com a verdade que agradar com adulações.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial. Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.
Muitos ruídos
Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno de nós). Fala-se muito para dizer bem pouco. Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, WhatsApp, internet, correio eletrônico… há demasiado palavrório. Carecemos de profundidade. Se, segundo o Gênesis, Deus fala e com sua Palavra cria, as palavras nos fazem sentir como “deuses”: com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, expressar amor ou ódio, elevar o outro ou afundá-lo… Há palavras que são golpes, bofetadas; e palavras que são carícias, estímulos, abraços. Com as palavras podemos criar ou destruir, dar vida ou matar. A palavra pode se converter em insulto e condenação, mas também em canção ou poema que cultiva a sensibilidade e nos abre à beleza. “Tomem cuidado contra a murmuração inútil, e da maledicência preservai a língua. Não há palavra oculta que caia no vazio e a boca mentirosa mata a alma” (Sab 1,11).
Jesus é a Palavra!
O padre Palaoro propõe-nos, em sua reflexão, que “cristifiquemos nossas palavras”, ou seja, agreguemos valores e critérios a partir da proposta de Jesus Cristo e do Evangelho. O papa Francisco sugere-nos: “A cada dia um pouco de silêncio e de escuta, alguma palavra inútil a menos e alguma palavra de Deus a mais”, pois “a cura do coração começa pela escuta” (…), e dedicando diariamente um tempo ao Evangelho. Todos nós temos ouvidos – todos! – mas muitas vezes não conseguimos ouvir. Por que? Irmãos e irmãs, existe de fato uma surdez interior, que hoje podemos pedir a Jesus para tocar e curar. A surdez interior é pior do que aquela física, porque é a surdez do coração… Como está minha escuta?” Escreveu Santo Antônio: “Estamos saturados de palavras, mas vazios de obras…”.
Dom Edgar Xavier Ertl – Bispo da Diocese de Palmas-Francisco Beltrão