Geral
Luiza Beal*
A expressão “cultura do estupro” é amplamente utilizada na sociedade brasileira, inclusive por veículos midiáticos, mas será que existe, realmente, tal cultura? Inicialmente, é preciso entender a história e o significado da criminalização da conduta de estuprar alguém.
No Brasil, trata-se de um crime previsto desde 1830, no Código Criminal do Império. No entanto, àquela época, o estupro era considerado o ato de “ter conjunção carnal, por meio de violência ou ameaças, com qualquer mulher honesta”. Em pleno ano de 2020, parece absurdo imaginar que uma lei possa diferenciar as pessoas entre aquelas cujo estupro é punível (as mulheres honestas) e aquelas cuja liberdade sexual não é protegida (as que não seriam honestas).
É preciso pensar: quem era a mulher honesta (que deveria sua dignidade sexual preservada) e quem eram as que não se encaixavam em tal conceito e, portanto, poderiam ter sua liberdade sexual e seu corpo violados? O conceito de honestidade é resultante de padrões culturais e morais, uma construção social marcada pelo contexto histórico e social.
Em 1940, então, surge o Código Penal em vigor até hoje, que versa: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Desse modo, todas as pessoas (homens e mulheres), independentemente de qualquer régua moral, são protegidas de violências sexuais. Conhecer essa história nos leva a questionar: será que a sociedade brasileira também avançou quanto ao reconhecimento de que todos devem ter sua dignidade sexual respeitada?
Segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2018, o Brasil teve 66 mil vítimas de estupro. Isso significa que, em média, ocorrem 180 estupros por dia no país. Além disso, 53,8% das vítimas foram meninas de até 13 anos. Em comparação com vítimas do sexo masculino, de cada 10 estupros, oito ocorrem contra mulheres ou meninas e a maioria das mulheres violadas são negras.
Os dados comprovam que apesar de os homens também serem potenciais vítimas de crimes sexuais, as mulheres e meninas são a maioria das que sofrem esse tipo de violência. A cultura do estupro, portanto, é o nome que se dá ao fato de que os casos de estupro, importunação sexual e demais condutas envolvendo a violação dos direitos individuais sobre nosso próprio corpo ocorrem majoritariamente contra a população feminina.
Trata-se de uma cultura que influencia comportamentos através de discursos que muitas vezes são sutis e parecem inofensivos, mas que naturalizam e relativizam a violência. Dizer que uma prática é cultural significa que ela não é natural, mas aprendida e que, portanto, pode ser mudada.
O direito de ir e vir; de dispor de seu corpo da forma como entender; de vestir o que sentir vontade; e, especialmente, o direito de dizer não, devem ser sempre respeitados. Não é razoável que a cada oito minutos alguém seja vítima de estupro no Brasil. Tampouco é razoável que haja qualquer tipo de questionamento sobre as vítimas merecerem ou não ter seus corpos violados. Também é preciso salientar que, segundo os dados da realidade brasileira, na maioria dos casos, o estuprador não é um doente e não está sob uma emoção violenta: a violência sexual é majoritariamente praticada por uma pessoa inserida ou próxima ao seio familiar, o que dificulta a denúncia e a percepção externa do risco a que a vítima está exposta.
A cultura do estupro é assim denominada para trazer à tona o fato de que as noções, questionamentos e conformações que nós, enquanto sociedade, temos sobre os corpos e vontades alheias são construídas. É urgente superar concepções antiquadas e sem qualquer respaldo (científico ou moral), de que as condutas predatórias sexuais são reflexos de uma biologia masculina. Não há qualquer justificativa plausível para que um corpo seja violado e que uma vida seja marcada pelo trauma da violência.
Assim como, por vezes, aprendemos a respeitar somente quem nos convém, também podemos desfazer esse erro e passar a gestar um país onde nascer mulher não signifique ter medo. É urgente que nossas concepções sobre o que significa ser mulher ou menina e acerca do papel destas na sociedade sejam revistas. Não se pode mais naturalizar a violência, em nenhuma hipótese. Para tanto, precisamos falar sobre a cultura do estupro tomar para si a responsabilidade de mudança, afinal, a cultura é gestada anteriormente à nossa existência, mas se consolida através de nossas práticas.
* Advogada no Numape Unioeste/FB.