Ele recebe mensalmente, do INSS, menos o 13º, e diz que é pouco para sobreviver, precisa de muitos remédios, por isso mantém sua borracharia em atividade. Um raio e um acidente lhe deixaram uma marca na cabeça e poucas forças físicas, e ele só consegue consertar pneus pequenos, sempre ajudado por uma bengala. Viúvo, ainda tem que fazer todo o trabalho de casa.
Quem passa pelo Trevo do Alvorada pode ver, numa borracharia, um senhor de cabelos e barba brancos, atendendo clientes com uma bengala auxiliando a perna esquerda, ou sentado no sofá. Ele ainda tem duas hérnias inguinais, não pode fazer muito esforço e, quando faz, precisa sentar para voltar ao normal. Abre a borracharia às 7h da manhã, fecha às 11h30 pra fazer o almoço e logo retorna ao atendimento, até seis da tarde. Dos dois filhos que teve, um (Joceli) morreu em acidente de carro e o outro (Juliano) é casado e não vive com ele; a esposa (Terezinha Helena dos Santos) também morreu, ele tem que fazer tudo o que precisa, sozinho.
Levino Sommer é gaúcho de Canela, nascido em 19 de julho de 1938. Reside em Beltrão desde 1986. Tem apelido? “Não, mas uns dizem o Veinho do Trevo”, ele responde com bom humor.
O que o senhor fazia no Rio Grande do Sul?
Eu trabalhava na roça. Depois da roça, o pai comprou uma casa e fizeram um barzinho, daí eu fui cuidar e fiquei trabalhando. Aí eu já fui mexer com eletricidade, e fui morar em Alpestre (era uma cidade nova), eu instalei um gerador e cuidei da luz uns cinco, seis anos. Aí a CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica, do RS) encampou, daí eu trabalhei 12 anos na Prefeitura de Alpestre. Naquela época ninguém ia atrás de carteira de trabalho, nem nada, trabalhava frio, esse que é o problema. Eu pagava esse INPS desde de 61, pagava e fiquei um tempo sem pagar, depois voltei a pagar, só sei que tinha 30 e poucos anos recolhidos. Quando eu fui mexer pra me aposentar, um cara lá atrás da igreja tinha um escritório, ele veio aqui e falou “vem que eu te ajeito e tu se aposenta logo”. Fomos no INSS e mandaram eu pro Rio Grande (aonde eu pagava o INSS) pra buscar os papel comprovante do INSS. Eu fui pra Frederico Westphalen e trouxe o xerox de tudo, entreguei no INSS aqui, aí ele disse “agora é só esperar o dia que eles te avisam, pra tu pegar a aposentadoria”. Eles me chamaram e eu fui, está tudo pronto, está aposentado, tu vai pegar um fundo de garantia que tu tem, e daí tu já segue recebendo, aí eu fiquei quieto, não fui muito atrás. Eu fui recebendo o salário mínimo, e quando chegou no fim do ano todo mundo recebia décimo, eu fui lá pra ver e eles disseram “tu não tem direito a décimo”.
Por que ficou sem o décimo?
Diz ela assim “tu tá com um amparo social na tua aposentadoria”. Eu disse “eu posso fazer o que?” E ela “tu pode pegar e encaminhar tudo pro INSS, mas tá sujeito receber logo parelho ou pode ficar um tempo sem receber”. Digo “mas daí meus documentos?” “Ta tudo lá.” Meus documentos ficaram tudo lá e eu não fui mais atrás, porque eu ia ficar um ano sem receber e eu já estava na pior, não adiantava eu querer mais, eu deixei assim mesmo e tá assim até agora, desde 2013, 2012, eu acho.
Estava com que idade?
Eu fui aposentado com 66 anos. Se eu tivesse escutado o Nilo Nesi, eu não tinha perdido isso aí. Ele disse “espera que tu vai se aposentar igual com tudo que tu tem”, aí em vez de esperar, o outro se meteu ali e disse “não, eu vou fazer”, e só fez sujeira.
E até hoje o senhor não recebe o décimo terceiro?
Não. Eu pagava o INSS pra mulher, porque ela tava doente, aí eu repartia do meu e pagava a taxa no INSS, pra aposentar ela. Daí aposentamos ela, recebeu três meses, eu acho, daí ela morreu. E eu achei que ia ficar com a aposentadoria dela, mas cortaram no outro mês, aí diz “não, mas eu pagava o INSS e não tinha nada a ver com problema de saúde”. Sei lá fizeram uma “mandioca” lá, e não me deram mais nada. E eu estou com os mesmos 900 e pouco por mês, até hoje. Sem décimo terceiro.
Por isso que, mesmo com dificuldade, continua trabalhando?
Tem que trabalhar, senão eu não como. Aqui pelo menos eu tiro a despesa da água, da luz, o telefone eu cortei, pra comida me ajuda um pouco. Tem mês que me sobra a metade, porque eu gasto muito com remédio, esse que é o problema. Eu trabalho por causa disso, tem que trabalhar, senão tu não vive.
No começo o senhor consertava todos os tipos de pneus?
Sim, todos os tipos de pneus. Era caminhão da Prefeitura, era do Cella, era de moto, o que tinha de caminhão aqui eu fazia. Eu tinha o meu rapaz que me ajudava, o filho mais velho, o Juliano. Depois ele casou e foi trabalhar por conta dele. Ele diz “não, pai, aqui não dá que chega pra sustentar duas famílias. Eu vou trabalhar com outro serviço”. Tá bom, pode ir, até que eu posso eu vou me virando. Cada vez que ele vem aqui, até segunda ele veio, “mas pai, fecha isso aqui” “Mas Juliano, eu não vivo sem trabalhar, como que eu vou me virar? Tu vê tudo os remédios que eu tenho que comprar. Vocês não conseguem me ajudar, não tenho outro recurso e é por isso que eu trabalho. Eu vejo muito essa malandragem de rapaz de 17, 20 anos andar só na vagabundagem, na maconha, não trabalham e o cara véio tem que trabalhar pra poder viver, agora roubar eles vão por tudo. Que nem hoje de manhã que eu abri aqui, vi esse sofá virado e um fdp deitado aqui dormindo, virou o sofá ao contrário e deitou. Eu levei um susto, fui ver porque que esse sofá tava virado, daí ele saltou de pé e eu pedi “da onde que você é?” “Eu sou aqui da Água Branca. Roubaram a minha bicicleta esses tempos e eu não pude ir pra casa”. Dava pra se ver que não era boa coisa. Ainda me pediu se eu tinha um real pra emprestar pra ele pegar a lotação, porque ele só tinha dois pila e eu digo “eu não tenho nada pra dar”. Daí ele pegou e foi embora. Tinha uns trinta e poucos anos na cara dele, se é que tem.
Quando o senhor sofreu o acidente, o seu filho ainda trabalhava com o senhor?
Sim, trabalhava. Ele nasceu e trabalhou com nós desde piá pequeno, sempre trabalhou, até casar. Quando morreu a “muié” eu disse pra ele: “Ó, Juliano, toma conta disso aqui, eu fico sempre por aqui te ajudando”. Aí ele disse “pai, a minha despesa é muito grande, não dá pra mim viver”. Ele foi trabalhar num outro serviço, e eu fiquei sozinho.
E o outro filho, o Joceli, morreu de que, aos 33 anos?
Acidente (em 28 de julho de 2017). Esse acidente que deu ali perto da Gralha Azul, de um gol que saltou o motor fora. Ele comprou esse gol, ele já trabalhava de mecânico na Comodoro, ele turbinava, regulava e entregava, daí o cara disse “tu compra aquele Gol lá e eu compro ele de ti. Deixa ele certinho e tudo, quando tiver pronto eu te compro ele à vista”. Tá, ele comprou, e o resultado? Ele sempre dizia pra nós: “Eu tenho um medo de andar com esse carro, esse carro não me cheira bem. Alguma coisa tá pra acontecer”. “E eu pra me entregar, só se eu botar um corta-giro que o carro anda normal”. Eu peguei e nós encomendamos, só que tava demorando, aí veio o corta-giro e o correio entregou, daí eu disse “Joce, veio teu corta-giro, pode colocar”. Aí ele saiu do serviço às 6h e veio aqui, pegou a peça, foi lá e entregou, daí o rapaz disse “você não colocou o insulfilm”. Ele disse “mas ninguém me falou em infulfilm”. “Eu quero um insulfilm bem preto, que ninguém me enxergue”. “Vamos junto ali na Gralha Azul, tem um cara que coloca, tu vai lá e escolhe a cor. Eu espero ficar pronto e te levo na casa amanhã cedo, porque não pode mexer até que esteja seco”. Quando terminaram de colocar o insulfilm, foram os dois pra casa. Ele desceu ali na Gralha Azul, tinha um cachorro-quente, ele ia comprar um X- salada e ir pra casa jantar, já era umas nove horas da noite. Ele desceu, segurando meio que a porta aberta, porque só tinha uma pista que subia e a outra eles estavam alargando, isso faz dois anos, e era aquele morro, aí ele desceu, fez a volta, entrou e foi devagarinho, tinha dois caras na frente dele, mas ele foi devagar atrás deles. Um dos caras que tava na frente dele olhou pra mulher e disse “mas é o Joce, mecânico lá do Comodoro, vou deixar ele passar porque ele tá com o uniforme, de certo que quer ir pra casa jantar”. Abriu e ele passou, diz que só deu uma acelerada e deu aquele estouro, o motor voou na frente, ele empinou e deu numa arvorezinha assim, morreu desnucado.
Como que deu aquele estouro no motor?
Saltou fora, a turbina encheu e não conseguiu descarregar. Com o golpe que deu, arrancou o motor fora. O cara tinha feito tudo novinho, o motor saiu com caixa e radiador na frente dele, aí ele se perdeu e deu numa árvore. O motor ficou uns 50 metros pra frente, no lado direito e ele bateu no lado esquerdo, acham eles que trancou o acelerador, porque ele tava com um braço pra baixo e o outro com a porta aberta segurando, o pneu do lado direito saltou e deu atrás dele. Ele morreu desnucado, a coluna em mais dois lugar, diz os cara que ele ainda gemeu quando os bombeiros tiraram ele de dentro do carro, tiveram que atorar o auto do lado pra tirar ele fora. Eles levaram ele lá no (Hospital) Regional, chegaram lá era umas dez e pouco, onze horas, ele ficou até as cinco horas, até que eles operaram, iam botando o sangue e o sangue sumia, até que eles acharam o que era, e daí não tinha salvação mais.
Quando que foi esse acidente?
Em 28 de julho de 2017. A turbina encheu, ele tinha que dar aquele soco, ele deu o soco e não descarregou, as turbinas todas novas e grandes, arrancou foi tudo pro alto. Ninguém acreditou muito quando viu.
E o seu acidente como foi?
Eu tava aqui trocando um pneu de caminhão, ele não afrouxava e quando afrouxou deu aquele estralo, quebrou a chave de roda no meio e a alavanca voou pro lado, e eu caí de costas no chão, aí abriu a coluna. Eu já tinha sofrido outro acidente, em 1990, eu levei uma descarga elétrica de raio, caiu um raio naquele pinheiro ali em cima (a uns 500 metros de distância) e a faísca voou bem quando eu tava fechando essa janela, tava se fechando um temporal, dia 12 de outubro de 1990, eu tava com esse mais novo na mão e eu fechei a janela ligeiro, eu caí pra trás e o piá voou. Daí eu, Deus me livre, rachou uma veia daqui, eles pegaram e fizeram de tudo, me operaram na Policlínica, tiraram esse osso fora e emendaram a veia de novo, a sorte é que não pegou no cérebro, que foi por cima. Eles fizeram lavagem e tudo, daí foi o Farias que operou, ele e o doutor Lúcio, eles me deram um ano de vida e já faz todo esse tempo.
Hoje isso ainda lhe incomoda mais?
Isso é o que mais me preocupa. Porque tem horas que me dá muita tontura, e eu não posso trabalhar muito de cabeça baixa, bate a veia aqui dentro que Deus o livre, tem que cuidar muito. O Farias disse que nunca mais era pra eu trabalhar sem capacete. Eu usava o capacete muitos anos, aí um amigo meu me pediu pra ir até Marmeleiro, levar uma moto pra lá, ele levou e nunca mais me devolveu o capacete, e eu não comprei outro até hoje. Só me cuido demais.
O raio foi em um pinheiro?
É, naquele lá em cima, perto do Farias. Em linha reta dá uns 500 metros. E eu tava fechando essa janela, por isso eu tenho medo do dia 12 de outubro (de 1990). Tinha um cara que disse “tu teve muita sorte”. Eu tava fechando a janela de ferro, daí veio um choque na cabeça e eu caí, como se tivesse levado um tiro.
Que ano foi isso?
O Farias me deu um ano de vida, primeiro ele me levou no tratamento, mais ou menos que nem hoje, eu tinha 800 contos guardados pra negócio, aí até que tinha dinheiro ele foi me levando pro tratamento. Daí veio meu cunhado de Gramado, e tinha o meu sogro que sempre tava por aqui, queriam mandar pra Curitiba, e não iam mais operar, aí eles disseram “tu vai operar, sim! Que até que tava caindo dinheiro tu tava fazendo tratamento. Então tu vai operar e garante”. Ele disse “então tá”. E eu disse “eu não moro aqui, eu moro em Gramado. Mas o Abrão (sogro) mora aqui e tem os filhos dele todos aqui, tu tem que cooperar e garantir, não fazer matação, daí ele pegou e disse que ia operar, foi lá, me operaram e eu fiquei internado quase dois meses. Eu fiquei uma semana sem esse osso, eu acho, porque faz tempo, só sei que quando ele botou e eu tava são. Deus o livre que me doeu quando ele encaixou o osso, ele estralou porque tava na geladeira, tava gelado, ele encaixou dentro e ele me segurou mais uma semana, aí eu enchi tanto o saco que eu queria vir pra casa até que ele deixou, ele disse “só cuidado, não deixa bater nada na cabeça, porque até que você sare vai longe”.
Ficou uma semana sem uma parte do osso da cabeça?
É, o osso foi tirado fora até que a veia grudou. Depois ele encaixou.
O cabelo voltou ao normal.
Sim, mas foi dois anos até que emparelhou a cabeça. Daí o buraco aqui, o barbeiro já sabe e cuida muito, porque é muito mole, deve ter uns cinco, seis buracos.
A coluna bem debilitada?
É, não tinha mais o que fazer. Eu ia no posto, eu ia por tudo, eles disseram “operar não dá, porque se tu opera tu vai pra cadeira de rodas, então vamos levar uma muleta e tu anda de muleta”. Eu fiquei uns seis meses sem poder caminhar direito, não conseguia mudar os passos, aí fui indo com o tratamento até que consegui. Quando eu consegui, voltei a trabalhar de novo, e até hoje