Dr. João Batista Teixeira Lessa, 60, reside desde 1968 em Realeza. Foi um dos primeiros médicos do município. Ele e o dr. Aristeu Francisco Luchesi formaram-se em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, em 1967, e um ano depois decidiram se fixar em Realeza. Inicialmente, alugaram um hotel que foi transformado em hospital.
Em 1973, os dois sócios inauguraram as instalações próprias da casa de saúde, em alvenaria. No município, dr. João foi fundador do PDS, auxiliou na criação do CTG Sinuelo da Saudade, proferiu palestras sobre tradicionalismo gaúcho, atuou no Lions Club. Entre 2001 e 2004 foi vice-prefeito e diretor do Departamento Municipal de Saúde.
Dr. João Batista é casado com Cleonita Conceição Lessa, com quem tem quatro filhos – três homens e uma mulher. Nesta entrevista ao JdeB, feita entre consultas a pacientes num sábado pela manhã, o médico falou sobre sua vida.
JdeB – O senhor vem de uma família de médicos, a sua vocação pra medicina surgiu daí?
Dr. João Batista – Exato. Eu sou filho de médico, mas meu pai faleceu muito cedo. Após uma epidemia de febre tifoide em Camaquã (RS), onde ele atendeu mais de 250 casos e pegou também a febre e morreu por causa disso. Além do meu pai, todos os meus tios, por parte de mãe, eram médicos. Os meus tios maternos assumiram o hospital que o meu pai tinha construído em Camaquã, e eu sempre vivi no meio da medicina, desde criança. A minha mãe, depois que viuvou, viveu muitos anos dentro do hospital e eu fui criado dentro de um hospital. Quando chegava um acidentado, o primeiro que chegava pra ver era eu, criança de 7, 8 anos. Inclusive tem um fato assim bastante suigêneris. Quando eu tinha 11 anos, estava na 1ª ou 2ª série do ginásio, e houve um acidente em Camaquã, um caminhão carregando uma turma que ia cortar arroz, tinha 42 pessoas e o caminhão capotou e deu bastante feridos. O hospital nosso era relativamente pequeno. Era uma correria! Três médicos pra atender 42 pessoas feridas. Os médicos começaram a atender os mais graves e ficaram aqueles cortados. O hospital era dirigido por irmãs religiosas. Uma irmã me colocou um avental e um banquinho daqueles de escadinha, de subir na cama de exame, ela fazia anestesia e eu ia costurando, nós atendemos acho que uns 10 assim, com 11 anos de idade, o avental arrastando no chão.
JdeB – A vocação surgiu dali.
João Batista – Exatamente. Não houve dúvida, e depois na escolha da profissão foi medicina direto.
JdeB – Tem outros irmãos que seguiram a profissão do pai?
Dr. João Batista – Não, eu tenho só a minha mãe que depois de viúva casou novamente, por isso o Garcia de sobrenome, eu tenho três irmãos do segundo matrimônio, e do primeiro matrimônio são só eu e uma irmã, que é professora.
JdeB – E depois da faculdade o senhor fazia residência no hospital das clínicas mas também lá em Camaquã e nas férias clinicava?
DR. João Batista – Sim, e também sempre estava dentro do hospital, clinicando não, porque não podia; ajudando os meus tios, eu tinha dois tios médicos lá, ainda, quando eu estava na faculdade.
JdeB – Pelo que o senhor fala, o João Batista era um menino bem interessado.
Dr. João Batista – Ah sim, a gente, como todas aquelas crianças daquela época, um menino do interior, livre, completamente descompromissado, a gente fazia brincadeiras, tinha umas turmas, faziam nossos jogos de futebol, nossos esportes, foi uma infância muito boa, muito bem vivida, sem esses problemas da atualidade de violência, era uma cidade pequena, todo mundo se conhecia, a gente chamava a maior parte dos homens de tio (risos). Todo mundo conhecia todo mundo.
JdeB – Depois de formado, o que motivou o senhor a vir pra Realeza?
Dr. João Batista – Camaquã já estava antiga, uma cidade com mais de 150 anos na época, já estabilizada, sem perspectiva de crescimento, muitos anos parada; a gente queria uma região nova que estivesse começando, então a gente pensou no Paraná; pensou também no Mato Grosso, principalmente em Mato Grosso do Sul. Nós viemos, eu e o Aristeu, o Aristeu tinha um tio que morava em Realeza, um dos pioneiros, seu Antônio Busato. Chegando aqui, fomos apresentados ao seu Rubem Cazelani, e já ficamos muito amigos. Ele ia sempre a Porto Alegre pros negócios da Cazaca, da madeireira que ele era um dos proprietários, fizemos uma amizade muito grande. Enquanto ele não nos trouxe pra cá, não descansou. Viemos por insistência, por amizade do seu Rubem.
JdeB – Como surgiu essa parceria com o dr. Aristeu?
Dr. João Batista – Com o Aristeu. No segundo grau naquela época se chamava científico, eu era interno no Colégio Nossa Senhora das Dores, em Porto Alegre, e o Aristeu também. Nós fizemos o segundo grau juntos, fizemos o vestibular juntos, passamos no mesmo ano pra faculdade, cursamos toda a faculdade juntos e viemos juntos pra cá, e estamos até hoje juntos. Desde a nossa adolescência a gente se conhece e a gente se entendeu sempre muito bem.
JdeB – Como foi alugar um hotel pra montar um hospital?
João Batista – Seu José Tártaro e a dona Joana Tártaro, que são pioneiros também, tinham um hotel de madeira e, já com uma certa idade, estavam querendo descansar mais, então nós alugamos dele esse hotel e transformamos num hospital provisoriamente, até se estabelecer. Ali ficamos quatro anos. Depois do segundo ano começamos a construir um hospital de alvenaria que em 73 ficou pronto e nos mudamos.
JdeB – Como era adaptar um hotel para um hospital?
Dr. João Batista – Naquela época as exigências da Secretaria de Saúde não eram tantas. Eram difíceis as locomoções, aqui em Realeza se chovesse não tinha como sair até Francisco Beltrão, nem aquelas Rural Willis, aqueles jipes, com correntes não conseguiam chegar a Francisco Beltrão que era a cidade maior mais próxima, tinha hospitais já bem montados. Eram tudo mais ou menos provisórios, sempre naturalmente se pensando em melhorar, construir um hospital com mais recursos.
JdeB – E ali se faziam cirurgias?
DR. João Batista – Se fazia cirurgia, se fazia tudo, tudo. Não tinha como mandar pra Francisco Beltrão. Vamos dizer que se aparecesse uma pessoa baleada, uma pessoa esfaqueada, tinha que ser atendida aqui, não tinha tempo hábil pra chegar em Beltrão, era difícil a ida, as estradas eram pavorosas, estradas de difícil trânsito mesmo na época de seca; na chuva eram intransitáveis.
JdeB – O senhor e o dr. Aristeu nunca desanimaram devido às precárias condições de estradas?
Dr. João Batista – Não, nunca se desanimou, inclusive se pensou em melhorar as condições de Realeza, sob o ponto de vista médico, melhorar condições de vida. Ainda não conseguimos, naturalmente por causa de ser Realeza uma cidade pequena, de pouca população, de ter um centro médico com bastante especializações, não comporta, lógico que pra comportar muitas das especializações médicas precisa de uma população grande que dê a esses médicos naturalmente o trabalho necessário para seus sustentos.
JdeB – E o resultado de brigas, pessoas esfaqueadas ou feridas a bala, como era?
Dr. João Batista – Pois olha, Realeza tinha certos distritos, acho que em todo o Sudoeste o pessoal era de fazer a justiça com as próprias mãos. Existia bastante briga, bastante tiroteios, bastante pessoas feridas a bala, mortes a bala que depois foi gradativamente diminuindo. Hoje, graças a Deus, em Realeza é uma coisa rara uma pessoa baleada ou uma pessoa esfaqueada, mas naquela época era comum.
JdeB – Qual foi a primeira impressão que teve ao chegar em Realeza?
Dr. João Batista – Olha, a gente foi muito bem recebido pela comunidade de Realeza, o pessoal procurou bastante a gente, a gente fez amizades com todos, era uma comunidade relativamente pequena. O que mais me impressionou foi essa disponibilidade do povo em receber a gente, em acolher a mim e à minha esposa, ao Aristeu também que ainda era solteiro, casou depois de estar quase um ano aqui em Realeza, mas a acolhida que a gente teve, vamos dizer assim, apaixonou a gente pelo local.
JdeB – E aquela história do seu primeiro atendimento, uma moça baleada na perna?
Dr. João Batista – Pois olha, o nosso primeiro atendimento em Realeza, nós estávamos ainda reformando o hotel para transformá-lo em hospital, e uma noite, dormindo na nossa casa que era de madeira, bem no centro, apareceu um rapaz com um jipe trazendo no colo uma moça que estava num baile do interior, a gente abriu a porta, era umas duas, três horas da manhã, ele foi entrando com a moça, colocou a moça no sofá da casa, dizendo que ela tava mal, que tinha que tirar a bala, e a gente teve que fazer a cirurgia dentro de casa, porque no hospital não dava ainda, mas a gente já tinha todos os materiais de farmácia, de anestesia, tudo. Tivemos que operar a moça em casa mesmo, em condições bastante precárias. Foi tirada a bala, a moça ficou boa. Mas foi um caso assim, pra nós, bastante estressante, primeiro atendimento e um atendimento já todo conturbado, sem ter as condições de atender bem, mas conseguimos atender.
JdeB – E as dificuldades daquele período, teve muitas?
Dr. João Batista – Bastante, porque o hospital foi praticamente o primeiro prédio de alvenaria construído em Realeza, nós não tínhamos mão de obra, nós não tínhamos pedreiros, existiam mais carpinteiros, porque eram todas construções de madeira, mas para trabalhar em alvenaria foi uma dificuldade grande, a gente correu muito. Depois tivemos uma grande dificuldade de levar a energia elétrica até o hospital, porque o hospital não era bem central na cidade, era um pouco afastado. Hoje está quase que no centro. Nós tivemos que inclusive fazer com aqueles vizinhos do hospital, umas 12, 14 casas, pagar pra eles botarem luz da Copel. Até pra colocar luz era difícil.
JdeB – Nas décadas de 70 e 80 Realeza tinha três hospitais, como era sobreviver com tantos hospitais, tinha problemas?
Dr. João Batista – Não tinha problemas, porque sob o ponto de vista médico, Realeza se transformou num centro regional, nós aqui no nosso hospital, assim como o dr. Eunídio no hospital dele, assim como o dr. Leonildo no hospital dele, não atende só habitantes de Realeza, nós atendemos Santa Izabel, Planalto, Capitão Leônidas Marques, Pérola D’Oeste, todos esses municípios drenam pra Realeza. Comportava tranquilamente aqueles três hospitais em funcionamento na época.
JdeB – O senhor tinha bastante trabalho em função do hospital e de atividades empresariais. E a família com seus quatro filhos?
Dr. João Batista – Isso eu creio que seja uma constante de todo médico. Um médico não tem hora pra nada. Ele não tem liberdade de lazer e a família sente isso. Eu tenho um caso, por exemplo, tenho só uma filha mulher, quando ela era uma menininha de 3, 4 anos, a gente sempre tem aquela brincadeira de perguntar você de quem é, da mamãe ou do papai? A minha esposa perguntava pra Bibiana, de quem você é? Eu sou da mamãe. E o papai de quem que é? Do hospital! (risos) Com três anos o papai era do hospital.
JdeB – O senhor tem uma forte ligação com a tradição gaúcha.
Dr. João Batista – Eu sempre fui estudioso da história gaúcha e da tradição gaúcha, desde a adolescência, desde quando eu estudava nos colégios. Nós já fundávamos o CTG lá em Porto Alegre, nós apresentávamos as danças, eu sempre tive também muito gosto pela poesia gauchesca. Em Camaquã, lá a tradição não é cultuada, é vivida. Lá em Camaquã até hoje você vai ver o pessoal andando pilchado na rua normalmente, vai ver ainda gaúchos velhos andando a cavalo na cidade, os cavalos muito bem pilchados com uns aperos perfeitos. Então, a gente se criou dentro deste ambiente e quando aqui chegamos e se sentiu que o pessoal era na sua grande maioria oriunda do Rio Grande do Sul, e todos gostavam também da tradição, a gente em seguida começou a preparar a fundação de um CTG, e se conseguiu formar um CTG muito, muito bom em Realeza, o CTG de Realeza, da região ele é primoroso, faz grandes promoções, faz grandes rodeios, tem uma invernada muito boa, deixa a gente muito orgulhoso do CTG de Realeza.
JdeB – O senhor dava palestras?
Dr. João Batista – Sim, a gente sempre orientou o pessoal do ponto de vista histórico, do ponto de vista do que é a tradição, a gente sempre fez muitas palestras, a gente sempre declamou muita poesia gauchesca pro pessoal, hoje em dia em Realeza temos grandes declamadores. Eu fui dos que deu nome ao CTG Sinuelo da Saudade, explicando pra eles o que era sinuelo da saudade. A gente sempre teve, não só no CTG, uma atividade na comunidade de Realeza muito grande, no ponto de vista da igreja e dos clubes. Como eu disse, o que apaixonou a gente na chegada a gente participou dessa comunidade e se sentiu sempre em casa, se sentiu sempre no meio de uma família.
JdeB – O senhor foi um dos fundadores da PDS, hoje pertence ao PP. Como a política entrou na sua vida?
Dr. João Batista – Pelo fato de pertencer a uma comunidade, pelo fato de ser ativo dentro dessa comunidade, automaticamente a gente tem uma atividade política, por ser uma pessoa com intuito comunitário. A gente sempre entrou na política defendendo a comunidade de Realeza, defendendo os interesses do nosso município, na luta de conseguir as coisas, porque Realeza não tinha nada, Realeza quando foi fundada em 1963 tinha só o prefeito, o prefeito não tinha uma sala, não tinha uma mesa pra sentar, não tinha uma escrivaninha, não tinha nada, tudo teve que ser conseguido, pra depois conseguir estradas, energia elétrica, telecomunicações, tudo isso foi com grandes movimentos da própria comunidade, e envolvimentos políticos, porque era por intermédio da política pra se conseguir muitas dessas coisas, então se começou a ter amizades, nós éramos muito amigos desde que chegamos do deputado Arnaldo Busato, do deputado Luiz Alberto Oliveira, que eram nossos líderes políticos na época e, como eles eram Arena que depois se transformou em PDS, a gente foi um dos fundadores do PDS. Fui durante muitos anos presidente do PDS, em todas as eleições pra prefeito de Realeza todas elas a gente participou de uma maneira ou outra, sempre estávamos em cima de um palanque, discursando, apontando aquele que achávamos que era o mais indicado.
JdeB – Em Realeza são 44 anos. O senhor se considera uma pessoa realizada como profissional?
Dr. João Batista – Sim! Completamente realizado! Tão realizado porque a própria família já começa a indicar a aposentadoria pra gente, mas de maneira nenhuma, enquanto Deus der a saúde, que é o mais importante, a gente pretende continuar trabalhando com a comunidade.