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Francisco Beltrão
sábado, 07 de junho de 2025

Edição 8.221

07/06/2025

Dr. Kit Abdala: ”Ninguém opera por gostar, a gente opera por necessidade”

Geral

Rubens da Silva Martins foi médico em Francisco Beltrão de 1949 a 1961, e prefeito de 1953 a 1956. Hoje reside em Curitiba, sua terra natal – Como era o povo de Francisco Beltrão quando chegou aí, quase a mesma época em que eu sai?

Kit – Quando nós chegamos, em 1960, Francisco Beltrão era uma cidade só com construções de madeira, mas eu notei que a maioria das casas não eram pintadas. A madeira escurecia, davam um aspecto feio para a cidade. E como eu assumi a unidade sanitária, no primeiro dia conversei com a dona Alvina Casagrande, que foi uma das primeiras enfermeiras, trabalhou com o Dr. Rubens inclusive, uma mulher fabulosa, ela foi me mostrar a unidade, que estava instalada num barranco em frente à Prefeitura. Quando fui entrar, o assoalho cedeu (risos). Foi assim que começamos a saúde pública em Francisco Beltrão. Lembro que a minha primeira operação foi assim meio dramática. O paciente veio em cima de um caminhão, era de uma família muito grande de Rio Vitória: João Brandt, homem de 62 anos. Numa caçada, foi pular uma valeta e a espingarda 16 caiu na pedra, bateu no chão, disparou e fez um rombo no peito dele. Eu ainda estava organizando a sala de cirurgia, estava na mudança. Ele veio recomendado pelo padre Afonso. E nós, você vê, o primeiro caso. Eu olhei assim, me apavorei. Falei pra família: olha, aqui de cem chances tem uma. Tinha que fazer pneumectomia e transplante de pele. O filho mais velho disse: doutor, se tem uma chance, opere. Por sorte, o transplante pegou. Daí aquele caso deu uma repercussão muito grande na região. Então muita gente diz que o Dr. Kit operava mais, mas não é. É que apareciam muitos casos de cirurgia. Naquela época não existia hospital nenhum na região, só o do Dr. Aryzone, do Dr. Wálter e ali no Mazaro. Por isso, o movimento era muito grande. Quanto ao povo, no começo estranhei, porque eu vinha de uma região metropolitana de Curitiba. Mas de cara eu me identifiquei com a população. Era um povo humilde, mas muito honesto, muito trabalhador, um povo sofrido. Eram pessoas que tinham uma fé tremenda. Na época, naquelas terras novas, muito férteis, a produção de feijão era uma coisa fabulosa. Além disso, já tinha a suinocultura, produtos agrícolas dos mais variados. Sem dúvida nenhuma era um povo sofrido, mas um povo que tinha muito valor. Nós víamos que os pioneiros fizeram um trabalho espetacular. Começando pelo Ângelo Camilotti, por exemplo. Ele foi um prefeito que não tinha condições financeiras, não vinha dinheiro de jeito nenhum para Francisco Beltrão. E ele conseguiu umas coisas assim espetaculares, inclusive a primeira usina particular, dele, onde ele trabalhava como pedreiro. Você veja, um homem do valor dele, o valor que dá a um ato desses. E Francisco

Beltrão teve a grande felicidade de ser colonizado por colonos italianos e alemães. Colonos que não tinham mais chances em seus estados de origem, Rio Grande e Santa Catarina, e que vieram ao Paraná ensinar os paranaenses a plantar soja, a plantar trigo, a plantar milho, porque o Paraná não conhecia soja. Nós, paranaenses, se conhecemos a tecnologia, devemos muito aos colonos do Rio Grande e de Santa Catarina. E esta é a razão porque o Sudoeste, hoje, é uma das regiões mais produtivas e mais produtoras de todo o Estado do Paraná.

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Italina Zancan Scotti, primeira professora de Francisco Beltrão; dois de seus doze filhos, os gêmeos Rosane e Luzinei, nasceram nas mãos do Dr. Kit, e Luzinei é seu afilhado – O povo dizia que o senhor era um médico que teretetê estava operando, mas dizia também que o senhor sempre fazia operações muito bem feitas. O senhor gostava de operar?

Kit – Não, ninguém opera por gostar, a gente opera por necessidade. Eu jamais operei um caso sem indicação. Mas acontece que, veja, certa vez teve uma festa de igreja em Salto do Lontra. Chegaram, num caminhão, nove baleados e faqueados. Eu fiquei operando de sábado à tarde até domingo de madrugada. E quando eu deitei na cama, pra descansar, que eu não aguentava mais, porque era só eu e uma enfermeira, chegou outro caminhão com mais nove. Então não é que eu gostasse de operar, eu era obrigado. Há casos interessantes. Certa madrugada, eu desci para atender uma consulta e tinha na sala de espera um jovem, de vinte e poucos anos, que tinha vindo lá de Nova Prata, abaixo de chuva, estava todo enlameado, e com um chapéu de palha na barriga, segurando. Perguntei o que foi que aconteceu, meu filho. Ele disse: eu fui ofendido, doutor. Mas aqui quando dizem ofendido é mordida de cobra. Eu perguntei: Você viu que tipo de cobra te mordeu? Ele disse não senhor, eu fui ofendido na barriga. Tirou o chapéu de palha, todos os intestinos estavam dentro do chapéu. Veja você, tivemos que dar um banho no homem. E antes de levar para a sala de operação, nesse banho tivemos que lavar todos os intestinos. Foi uma monstra facada que ele levou, inclusive tive que tirar uns quatro ou cinco pedaços de intestino. Mas ele salvou-se. Então veja você, é que agente era muito procurado. Não era culpa minha, depois daquela primeira operação, foi assim. Quanto a crianças, quantas que trouxemos ao mundo, eu, o Dr. Wálter, o Dr. Arizone, os mais antigos, o Dr. Mário. E a primeira cirurgia que eu fiz de cesariana, aqui, hoje é um grande valor, que eu tenho um carinho todo especial. E filha de meu compadre Florindo Penso, a Tânia, hoje esposa do meu grande amigo o engenheiro VaIney Ghedin. Hoje ela é professora de música e uma verdadeira virtuose do piano. São coisas que, você sabe, a gente vai ficando velho, vai crescendo com a cidade. Mas quando eu assumi a Secretaria da Saúde, nós tínhamos aqui um problema da presença do bicho barbeiro, que é o que dá a moléstia de Chagas. E era a minha grande preocupação. Através do programa de rádio, Saúde Pública em seu lar, foi um programa muito ouvido durante 20 anos, ajudou muito a população. Eu explicava, pelo rádio, o que era a doença de Chagas e que em casas pintadas o barbeiro não ficava, como de fato não fica. Foi uma correria atrás de tinta. Em 15 dias nós pintamos a cidade. Mas depois acabou a tinta, no comércio. Então você via casa branca, azul, lilás, porque o que tivesse de tinta, ia (risos). E outra coisa que nos chamou muito a atenção foi o alto número de câncer de colo uterino. O que morria de gente de câncer de colo! Foi quando nós iniciamos, pela primeira vez, as campanhas de prevenção de câncer ginecológico.

 

Wálter Pecoits, médico em Francisco Beltrão desde 1952, cidadão honorário do município e do Paraná – Qual é a sua posição sobre o planejamento familiar?

Kit – Bem, o Dr. Wálter Pêcoits é uma figura humana a quem nós temos profundo respeito e um profundo carinho. Gozado, sempre fomos adversários políticos, mas o Dr. Wálter é um amigo, ele e dona Manoela, eu os considero como se fossem da minha própria família. Ele pode pensar politicamente de uma maneira e eu de outra, mas a minha amizade, eu quero ressaltar aqui, é muito grande. A pergunta é muito importante. O Dr. Wálter sabe que há mais de 30 anos nós lutamos pelo planejamento familiar. Se há 30 anos o Programa Nacional de Planejamento Familiar tivesse sido aprovado, nós jamais teríamos 30 milhões de menores abandonados neste país. Jamais teríamos as terríveis Febens, as crianças abandonadas, que inclusive aqui em Francisco Beltrão, você vai na Boca Maldita vem dez, doze crianças te pedir esmola, agora estão atacando até nos sinais luminosos. Se o planejamento familiar fosse instituído neste país e se fosse dado às populações carentes da nossa nação a oportunidade de terem acesso tanto clínico quanto cirúrgico gratuitamente, nós jamais estaríamos nesta situação. Eu acho que a aprovação do planejamento familiar é impostergável. Eu pergunto: qual é o país que nós vamos oferecer para os nossos filhos e os nossos netos? Nós estamos num país onde se praticam cinco abortos criminosos por minuto. Isso seria evitável pelo planejamento familiar, porque a única arma que nós temos contra o aborto é a prevenção. São os métodos naturais, os artificiais e, em último caso, as laqueaduras. Mas planejamento, familiar também não é só evitar filho. E uma ciência. E o estudo da esterilidade. É onde nós teríamos que dar ao casal pobre as mesmas condições que nós damos para os ricos, para que aquela mulher pobre também possa ter o seu filho.

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