Seu receio era de, permanecendo em Curitiba, acomodar-se no serviço público e não se realizar como médico. Aqui, além da medicina, ele exerceu também a política.

O primeiro prefeito de Francisco Beltrão é Ricieri Cella (por dois meses), mas quem concluiu os primeiros quatro anos de administração foi Rubens da Silva Martins. Nesta entrevista, inédita, concedida ao Jornal de Beltrão ainda em 1995 (perguntas elaboradas por Enoy Cantelmo e apresentadas pela jornalista Zulmara Cangussu), dr. Rubens conta como foi, desde sua vinda para a então Vila Marrecas, contratado pela Cango, em 1949.
Depois veio sua esposa, a também médica dra. Diva Sanson Martins. A primeira eleição municipal, os desafios do início do município.Nesta entrevista tem comentários que não se encontram nem em seu livro “Entre Jagunços e Posseiros”, publicados em 1986. Dr. Rubens era natural de Curitiba (nasceu em 27 de agosto de 1920). De 1949 a 1960 viveu em Francisco Beltrão, depois retornou a Curitiba, onde faleceu com 81 anos, dia 19 de julho de 2002. Comentava-se que um desejo dele seria ser sepultado em Francisco Beltrão. Ao receber esta pergunta, dr. Rubens respondeu que ele já havia “eternizado” este desejo com a publicação do livro Entre Jagunços e Posseiros.Dra. Diva também faleceu em Curitiba, de acidente de trânsito, dia 11 de junho de 1980, com 58 anos.
– Como foi sua vinda para Beltrão, um médico formado nos grandes centros, acostumado com o conforto, vir enfrentar as agruras de uma mata densa e uma terra ainda inóspita?
Dr. Rubens – Eu não pensei duas vezes quando recebi o convite do administrador da Colônia Agrícola Nacional General Osório (Cango) para prestar serviços médicos aos colonos assentados na região de Marrecas. Ao completar o curso de Medicina, em 1948, eu trabalhava na Prefeitura de Curitiba; eu exercia a chefia do setor de pessoal e folhas de pagamento, receava não deslanchar na nova profissão se continuasse apegado a cargo, como acontecera com um servidor da Prefeitura, médico há vários anos, que, ao presenciar um ataque de epilepsia de que fora acometido um companheiro de trabalho, disparou pelos corredores da repartição gritando aflito: chamem um médico, chamem um médico! O desconforto e as agruras da época não me desencorajaram. Trabalhava de sol a sol, às vezes madrugada a dentro, sem horário para refeições e repouso. Prestava assistência a longas distâncias, percorrendo em lombo de burro as picadas abertas no mato, durante dois ou três dias para chegar ao rancho dos enfermos. No povoado de Marrecas o atendimento ocorria no pavilhão da Cango, hoje Quartel do Exército. Lembro que, numa madrugada de inverno, um colono bateu na porta de meu quarto perguntando em francês se o parto das mulheres se assemelhava ao das vacas. É parecido – respondi sonolento –, só que você precisa amarrar e cortar o cordão do umbigo da criança, deixando um toquinho de mais ou menos três centímetros. Ele agradeceu e eu, tonto de sono, permaneci deitado por alguns instantes, acordando logo em seguida sobressaltado: tratava-se de cliente a quem eu deveria atender de imediato. Minha saída foi retardada pela dificuldade em acionar o motor do jipe. Quando cheguei à casa do colono ele já aparara o neném e procedera de acordo com as instruções recebidas.
– Valeu a pena?
Dr. Rubens – Claro que sim. Não financeiramente, pois, se não houvesse consultas ou se a afluência de doentes fosse em grande número, o ganho era sempre o mesmo: três mil cruzeiros mensais. Valeu a pena pela oportunidade que tivemos de promover campanhas de vacinação em massa e de priorizar a assistência à maternidade e à infância. No dia em que cheguei a Marrecas, cinco crianças tinham morrido no povoado, vítimas de desidratação aguda, o que me levou a distribuir gratuitamente à população o soro Perneta, destinado à reidratação oral, como se faz atualmente.
Das pessoas examinadas, 100% apresentavam verminose. Daí a razão do fornecimento generalizado e gratuito de vermífugos e anti anêmicos. Mas não bastava apenas tratar das diarreias e das doenças causadas pelos vermes. Era necessário, como medida profilática, evitar a contaminação das águas e a disseminação das fezes ao redor das residências. Iniciamos, então, uma campanha de conscientização através de alto-falantes e conselhos impressos em nosso receituário. Do aconselhamento passamos, mais tarde, ao assumir a chefia do Executivo Municipal, para a obrigatoriedade da construção de fossas sépticas e proteção dos mananciais.
– Sua esposa também era médica. Ela veio junto com o senhor ou se encontraram aqui?
Quando cheguei a Marrecas em março de 1949, minha futura esposa clinicava em Irati. Nosso casamento ocorreu em 15 de setembro daquele ano. No mês seguinte, compartilhamos do desconfortável quartinho, desprovido de vidraças e de instalações sanitárias que a Cango pusera à minha disposição. A doutora Diva Sanson Martins foi a primeira médica a exercer a profissão na imensa área territorial do antigo município de Clevelândia que se estendia até a fronteira argentina e paraguaia. Todos os empreendimentos afetos à área médica contaram com sua participação corajosa e eficiente: as campanhas de vacinação, a construção do primeiro estabelecimento hospitalar do povoado de Marrecas em 1950, a construção e instalação do Hospital Santo Antônio II, a instalação do Posto de Puericultura, da Associação Proteção à Maternidade e à Infância.
– O senhor foi o primeiro médico e, efetivamente, o primeiro prefeito de Francisco Beltrão. Não lhe constrangeu a maneira como aconteceu a vitória, tendo que recorrer à justiça?
Na realidade, não fui eu o primeiro médico a trabalhar em Marrecas. Antes de mim, um colega de Curitiba fora contratado pela Cango (dr. Winther Suplicy), retornando à capital antes de completar dois meses de trabalho, por não ter se adaptado às exigências da época. Quanto à maneira como aconteceu minha vitória – contagem dos votos impugnados por meus adversários –, decorreu de procedimento legal, não adotado pelo Partido Trabalhista Brasileiro que superestimou o favoritismo inicial de seu candidato.
Em 9 de fevereiro de 1953, fui proclamado prefeito de Francisco Beltrão, tendo o Tribunal Eleitoral invalidado o diploma expedido anteriormente a meu adversário. O PTB venceu nos demais municípios, ficando eu ilhado em Beltrão, cercado de petebistas por todos os lados. Em companhia do presidente da Câmara de Vereadores, meu adversário e amigo Antônio de Paiva Cantelmo, visitei o candidato derrotado ao qual solicitei colaboração no interesse do desenvolvimento do município.
– Como foi a eleição?
Foi uma eleição difícil e violenta. Dois anos antes, o PTB vencera espetacularmente o candidato do Partido Social Democrático ao governo do Estado (172 mil/ 84 mil votos). Em decorrência disso, a “máquina do governo” sempre esteve à disposição do meu adversário, e os inspetores de quarteirão, indicados pelos políticos da situação, frequentemente detinham meus correligionários, sob a alegação de supostas denúncias. Não fosse o apoio irrestrito que recebi de Eduardo V. Suplicy, administrador da Cango, e da maioria dos pioneiros da região, minha derrota estaria consumada. Um dos fatores que pesaram a meu favor foi a constituição da Aliança da Vitória integrada pelo Partido Social Democrático, Partido Republicano e Partido Social Progressista, cujos membros eram egressos do primeiro. Triplicamos com a coligação o número de candidatos ao Legislativo Municipal e, consequentemente, os recursos materiais e o esforço em prol da minha eleição.
– O senhor voltou a ser candidato?
Sim, em 1960, a pedido de Moisés Lupion que me julgava capaz de reaglutinar as forças pessedistas, dispersas após a Revolta dos Posseiros em 1957. Fui derrotado por Walter Alberto Pécoits que ostentava os louros conquistados com a insurreição dos posseiros.
– Quais foram os principais desafios que o senhor teve na administração?
Dois anos antes do desmembramento para formação dos municípios de Francisco Beltrão, Pato Branco, Barracão, Capanema e Santo Antônio, a população de Clevelândia era constituída de apenas 54 mil habitantes. A baixa densidade populacional dos municípios desmembrados, e a pobreza da maioria daqueles que afluíam à região em busca de assentamento gratuito ou de terras supostamente devolutas, para grilar, constituíram o primeiro obstáculo a ser enfrentado pelos prefeitos dos municípios recém-criados. Excetuadas as obras executadas pela Cango, e a assistência prestada por ela ao povo da região, nada ou quase nada existia. Os prefeitos recém-empossados foram aquinhoados com recursos federais e estaduais para fazer frente às despesas de instalação dos novos municípios, excetuando o oposicionista de Francisco Beltrão.
Meu partido era minoritário na Câmara de Vereadores, e a maioria da população da sede municipal que apoiara o candidato derrotado relutava em observar os códigos de obras e tributários. O equilíbrio das forças no Legislativo Municipal foi obtido mediante negociação com um de seus membros. A impossibilidade de receber as quotas destinadas ao município nos levou a comprar de um membro da oposição municipal o segundo caminhão da Prefeitura, cujo pagamento consistiu numa procuração em causa própria para o recebimento da aludida quota. Isso nos possibilitou o transporte de carga para União da Vitória e Paranaguá, e obtenção dos recursos necessários à aquisição de óleo diesel e material de construção para as escolas municipais.
O primeiro trator do município foi adquirido com nosso crédito pessoal, pois os fornecedores negavam-se a negociar diretamente com as prefeituras.
A sonegação de impostos e a aprovação indébita dos mesmos foi atenuada mediante ações judiciais. As casas construídas no meio das ruas eram demolidas e reerguidas no devido alinhamento. O abate clandestino de gado no centro da cidade, contrariando os dispositivos legais, nos levou a oferecer gratuitamente, ao infrator, terreno em local apropriado àquele. O fracasso da negociação nos levou, inicialmente, a instalar um açougue municipal antes de determinar a apreensão e a inutilização do gado abatido.
– O que de mais importante o senhor julga ter feito por Beltrão?
Tudo que se fez em Francisco Beltrão quando exerci a chefia do Executivo Municipal era considerado importante e inaudível, face às condições adversas a que me referi. Não fosse a participação efetiva dos membros da comunidade, nada teria ido avante. Apesar de ter agido de início com energia considerada por muitos excessiva, sempre auscultei a população quando da elaboração e execução dos projetos administrativos. As primeiras escolas municipais foram construídas em regime de mutirão: o povo escolhia o local, indicava as pessoas capacitadas para lecionar, assegurava a mão de obra gratuita e os comerciantes contribuíam com os fretes e materiais diversos. Nos locais desprovidos de templos, permitíamos que os cultos religiosos se realizassem nas escolas e, em contrapartida, instalávamos salas de aulas em capelas, enquanto aguardávamos as verbas necessárias à edificação de novas escolas. No setor rodoviário o procedimento era idêntico. Os agricultores interessados na abertura das estradas municipais acorriam em massa ao local da obra, desmatavam as margens da estrada e auxiliavam na instalação de valetas e pontilhões. Quando da abertura das ruas da sede municipal, contei também com a participação das máquinas da Cango e de seus eficientes operadores. Sem o auxílio dos comerciantes e dos industriários, que nos financiavam a longo prazo fretes e materiais de construção, não teríamos edificado o Paço Municipal que agregava, em um só bloco, a Câmara de Vereadores, postos de correio, cartórios, a Comarca de Francisco Beltrão e sala de aula para alfabetização de adultos.
– Quais os motivos que levaram o senhor a se mudar de Francisco Beltrão?
Eu fora convidado para participar da instalação do hospital dos ferroviários (Cajuru) e assumir sua direção. Minha concordância propiciou a contratação daqueles que trabalhavam comigo no Hospital Santo Antônio e de dezenas de filhos de beltronenses, assegurando a estes os recursos necessários à continuidade de seus estudos.
– Que laços ainda mantém na cidade?
A amizade dos antigos companheiros e de seus descendentes. Mantive em Francisco Beltrão meu domicílio eleitoral e comparecei às urnas com regularidade.
– Tem mantido contato com as coisas da região?
Até a presente data, acompanho atento a evolução, não apenas de Francisco Beltrão, mas das novas comunas. Mantenho contato telefônico frequente com pessoas amigas e continuo colecionando as reportagens que dizem respeito ao progresso da região.
– É verdade que é um desejo seu ser sepultado em Beltrão quando morrer?
Eu eternizei esse desejo quando escrevi “Entre Jagunços e Posseiros”.
– Não lhe passa pela cabeça voltar a Beltrão antes disso?
Isso me ocorre todos os dias, mas minha limitação física me impede de fazê-lo.
– O senhor deixou muitos amigos por aqui, entre os quais Murilo Carneiro, hoje residindo em Marmeleiro. Que conceito tem sobre ele?
Eu conheci Murilo Carneiro quando ele contava apenas 17 anos e exercia a função de datilógrafo da Cango. Sempre contei com seus préstimos nas campanhas de vacinação e, como datilógrafo, na elaboração de atos municipais. Em 1954, ele transferiu residência para Marmeleiro onde se estabeleceu com um Posto de Socorro Farmacêutico, após concluir, em Curitiba, curso de oficial de farmácia. Dinâmico e realizador, atuou como primeiro secretário da comissão que pleiteou a emancipação de Marmeleiro. Liderou movimento político visando o lançamento de Assis Bandeira como candidato único à Prefeitura de Marmeleiro em seu primeiro mandato. Foi vereador e, por duas vezes, vice-prefeito de Marmeleiro. No terreno profissional e político atuou sempre com lealdade, eficiência e probidade.