Wilson Júlio Moreira sempre foi conhecido por Julinho. É que ele media 1,62 m. e agora diminuiu ainda mais sua altura. Aos 85 anos, está com 1,58. Bem humorado, diz que “na velhice tudo encolhe, inclusive a altura”. Após cuidar de um bar, junto com seu pai, foi contratado como auxiliar de escritório da Citla. E sua esposa, Maria Dolores Kern, era a zeladora. O chefe do escritório era Júlio Assis Cavalheiro, o pioneiro beltronense que deu seu nome à principal via pública da cidade e que, se estivesse vivo, completaria 100 anos no próximo dia 4 de julho. Em sua casa, no bairro Vila Nova, o casal concedeu esta entrevista ao Jornal de Beltrão, nesta semana.
JdeB – Nascido em Lagoa Vermelha, como o senhor veio parar em Marrecas, no ano de 1952?
Júlio – Pois é, em 1952 havia uma propaganda muito grande de Marrecas, uma cidade que estavam criando. Na realidade, não era mentira. Os primeiros vizinhos nossos, que vieram de lá, o Teotônio Maciel tinha um bar, pra cá da ponte que vai pro aeroporto, à esquerda. Eles vieram bem antes e uma vez voltaram lá, nós tínhamos um armazenzinho lá em Machadinho (RS). Eles contaram que tava desenvolvendo um lucro isso aí. E o nosso armazenzinho não dava nada, era pequeno mesmo, um pouquinho fora da cidadezinha de Machadinho. Daí o meu pai (João Terras Tavares) resolveu vir dar uma olhada e gostou. Nós vendemos lá e viemos embora pra cá. Foi alugada a casa por um ano (bar do Penso, na atual esquina da Antonina com a Júlio Assis). Aí venceu o aluguel e o homem não quis alugar mais. Aí nós mudamos (pra esquina da Luiz Faedo com a Niterói), não deu certo, foi a vez que eu fui trabalhar na Citla com o compadre Júlio.
JdeB – O escritório da Citla era no prédio Fábris hoje?
Júlio – Exatamente. Onde tem hoje a farmácia São José. Em baixo era o escritório e nós morava na parte de cima. E ali ficamos, eu acho que foi em 54 que fui trabalhar ali. Em 57, deu a revolução, daí você já sabe o que aconteceu.
JdeB – O que ficou na história é que no dia 11 de outubro de 57 o pessoal entrou no escritório e jogou aquela papelada toda na rua. O que era aquela papelada?
Júlio – Aquilo eram contratos com o pessoal que comprava terra. Algum que pagava à vista já recebia a escritura, quer dizer, era escriturado. Depois não sei, cancelaram as escrituras, mas existia escritura. A maioria fazia um contrato, pra mais tarde. Como o compadre Júlio era muito calmo, e muito bom, ajudou a Deus e a todo mundo aqui nesse lugar. Se tivesse meia dúzia de Júlio Assis Cavalheiro em cada cidade, o Brasil não tava nesse sistema. O sistema dele era ajudar, ajudava quem fosse, sem receber nada de volta. Simplesmente por vontade. Então, faziam um contratinho, pra daqui a seis meses, daqui a cinco meses, quando o inquilino achava que podia pagar, vinha pra fazer uma escritura.
JdeB – Qual era o seu trabalho?
Júlio – Datilografar. Eu já sabia bater, mal e mal. E ali eu acabei aprendendo. Houve um caso muito interessante uma vez. Era com o famoso Damásio Gonçalves.
JdeB – Ah, o Damásio também trabalhava no escritório?
Júlio – Não. O Damásio Gonçalves trabalhava na boca da ponte. Pros caras entrarem daqui pra lá com a mudança, seguiriam a ordem do escritório, e estava sob a minha responsabilidade. Dá ordem, conforme tivesse ou não tivesse. Mas às vezes eu não tava. Um domingo, eu estava jogando sinuca, no bar do falecido Zanatta. Chegou um cidadão e perguntou quem era o Julinho. Desde aquele tempo eu era conhecido por Julinho. Sou eu, por quê? “Eu queria falar um pouquinho com o senhor”. Digo: Já vou. sim, só um minutinho. Parei um pouquinho, saí, olhei o que ele queria, ele estava com a mudança. Disse que queria entrar, mas era domingo. Digo mas é só amanhã, amanhã que tá aberto o escritório. “Mas seu Julinho, o senhor podia, por favor, me deixar passar hoje.” E eu tinha a chave. “Eu tô com a criançada no caminhão, e pra posar, já viemos sofridos, viemos do Rio Grande do Sul e coisa, o senhor podia me ajudar, e me dar essa ordem pra mim passar, que o homem lá não me deixa passar sem a ordem.” Não, ele tem a ordem que não é pra deixar passar mesmo sem a ordem. Pra isso você tem que ir no escritório, que fornece a ordem. “Nem que eu lhe pague, mas o senhor me dá…” Eu disse olha, agora o senhor me agravou, porque eu não sou homem de vender pra ninguém, eu vou lhe dar essa ordem agora, por causa das suas crianças, mas não por causa do senhor. E o senhor não faça mais isso porque não é todos os homens que se vendem. E naquele tempo era pouquíssimo mesmo, hoje tão baratinho, uma parte, existem as exceções, claro, mas naquele tempo não era assim. Aí eu disse eu já ganho pra fazer isso, então vamos lá, eu vou lhe dar a ordem, e o senhor vai na margem esquerda do Rio Sarandi. Tudo bem, porque isso a gente votava, porque a gente fazia sempre a segunda via, colocava onde o cidadão ia se colocar, de acordo com o que ele dizia. Dei a ordem pra ele, e ele foi embora. Depois ele veio fazer o contrato.
JdeB – E a quantidade de mudança que se chegava era grande?
Júlio – Ah, era bastante, começou a desandar povo de Santa Catarina e Rio Grande, lá de vez em quando vinha uns paulistas, mas era muito difícil, o Estado de São Paulo que era vizinho aqui do lado, mais sobre a divisa.
JdeB – O senhor calcula que chegavam quantas mudanças por dia?
Júlio – Não, não, não eram tantas assim. Tinha dias que não vinha nenhuma, mas tinha algum dia que vinha duas, às vezes três, às vezes passava dois três dias que não vinha ninguém, não era sempre, sempre.
JdeB – O senhor Ampessan, de Capanema, numa entrevista, falou que lá passavam, na balsa do Iguaçu, 300 a 350 mudanças por dia.
Júlio – Trezentos, passava aonde, aqui? Eu acho que esse gosta de jogar poker, conhece poker? Tá loco! Ou truco. Aqui nunca dava mais do que quatro, cinco, não dava. Agora, dava seguido, era difícil o dia que não tinha uma passando.
JdeB – Agora vamos voltar pro escritório da Citla, como era, o que o senhor lembra dele, tinha armário de aço, tinha escrivaninha?
Júlio – Ah, era um escritório bem simples, escrivaninha e armário. Nas gavetas das escrivaninhas, e nos armários, naqueles simples, não tinha sofisticação nenhuma.
JdeB – Vocês assinavam ponto ou assinavam um livro?
Júlio – Assinava o livro, assinava o ponto, né.
JdeB – Vocês recebiam um salário?
Júlio – Sim, recebia, um salário.
JdeB – E quem fazia vendas também, no caso o Vicente Longo que fazia os contratos?
Júlio – O Longo era o que procurava o pessoal pra trazer, é o que ia oferecer, se você tinha um sítio, ele chegava ó, fulano, como é que… tipo um corretor. Você tem tua área aqui, não tem documento nenhum, você precisa se documentar, aparece lá no escritório. O Longo era muito conhecido aí, era cara do comércio, conhecia Deus e todo mundo.
JdeB – Como foi quando aconteceu a Revolta, vocês estavam todos os dias no escritório, o que mais marcou naqueles dias para o senhor?
Júlio – Pra começo de conversa, o compadre Júlio (Assis Cavalheiro) disse nós temos que nos esconder, todos nós. Nós fomos parar no mato. Ali em cima, onde termina o bairro Alvorada, era um mato fechado. Nós numa porção, inclusive tinha mais o Zete (Lourival Gross). E tinha uns amigos mais chegados, não eram os que estavam lá no escritório, eram amigos do peito, que se esconderam com nós. De medo do que a turma… eles faziam um absurdo. Do Penso, eles chegaram a cuspir dentro da boca dele. E tinha uns, e sabe que o povo reunido, um puxa o outro e aquele, que nem uma tropa de porco que vai tudo junto. O cara sozinho é uma coisa, no lote é outra, muito diferente, cria coragem, faz horrores que ele jamais faria sozinho. Ficamos lá uns dois dias, acho, até que acalmou, barbaridade, e a mulherada foi pro hospital do dr. Rubens, a patroa (Maria Dolores) tinha a nossa última filha, bem novinha, encheu lá de mulher, o pessoal mais chegado do seu Júlio. Tinha uma cunhada minha que veio do Rio Grande, ficou lá apavoradíssima (risos), coitada. E a turma queria invadir o hospital, mas o doutor, como diziam, que nós era muito armado, a Comercial era armada mesmo, chegou a fazer uma parede de madeira e encheu de winchester e coisarada. Agora, nós não tinha arma nenhuma, a única arma que existia lá na nossa casa era uma espingarda 16 que eu trouxe do Rio Grande do Sul e me roubaram.
JdeB – E como é que foram os saques nos escritórios e nas casas?
Júlio – Olha, na nossa casa, só me roubaram a espingarda e não mexeram em mais nada. Agora, do poço, de tirar água, tinha um motor, e me levaram o motor. Reviraram toda a casa, atrás de arma, diziam que nós era bandido, faziam e aconteciam.
JdeB – Foram colonos que fizeram isso, ou teve gente que se infiltrou no movimento?
Júlio – Olha, tanto tinha colono quanto tinha os arruaceiros, que aproveitaram, como eu digo, o covarde, quer ver um covarde, dê força pra ele. Então não se pode separar, mas tinha, tinha colonos com eles, muitos fugiram por aí. Mas lá na nossa casa foi só isso que fizeram. Espatifaram lá nossas coisas, quer dizer, tiraram, viraram colchão e essas coisaradas, mas tudo atrás de arma.
JdeB – E os escritórios, como é que ficaram?
Júlio – Ah, os escritórios quebraram tudo o que tinha e jogaram tudo a papelama fora.
JdeB – E o senhor não voltou mais lá? No escritório?
Júlio – Não. Quando acalmou a coisa, nós carregamos a mudança e fomos pra Mariópolis. Numa casa do irmão do dr. Mário, que era o chefe da Citla, um alto.
JdeB – Seu Júlio, a Citla não usava violência, a Comercial sim. Quem fazia mais negócios?
Júlio – A Comercial trazia o pessoal na marra. O Vicente (Longo) chegava e te convidava, se não podia vir naquela dia ou naquela semana, vinha no outro dia, na outra semana. E a Comercial, bom, pra teu governo, eles compraram doze jipes. Eles sim, tinham uma jagunçada desgraçada. E essa jagunçada não chegava, diziam pra você ó, o senhor deve ir acertar suas terras lá com nós. Chegavam e diziam embarca aí, e vamos lá fazer contrato, e não tinha essa história de dizer não. Dois três capangas. É, eles faziam, nesse ponto eles faziam. Agora, se eles tivessem feito toda a bagunça deles no escritório da Comercial, eu até daria razão pra eles. Mas não a Citla. A Citla aí virou, aí foi a política. Justamente os políticos de esquerda, inclusive dr. Mário, falecido Walter, aproveitou a onda e servia revolução. Só que ele teve um mérito, eu sou daqueles que quase não gosta de perdoar ninguém, assim como não me perdoo em tolerar, mas ele (dr. Walter) teve um mérito, e também quando tem mérito eu dou, ele acalmou o povo, ele não deixou fazer muita esculhambação, ele conseguiu iluminar. Ele também era um líder. Então, mas mesmo assim, teve casa aí que eles roubaram bastante. Sempre fizeram esculhambação. E era mais ou menos isso.
JdeB – E como era o ambiente de trabalho, vocês, da Citla, tinham contato com o pessoal da Comercial, ou era separado?
Júlio – Não, não, eram completamente separados.
JdeB – Mas vocês conheciam eles?
Júlio – Não, essa gente era do norte do Paraná. Fizeram um grupo. Esse Lino Marchetti era um dos gerentes, a mulher dele, todas as mulheres daqui ficaram apavoradas, porque nunca tinham visto mulher de calça de homem e bota. E uma pistola de nove milímetros na cinta. Era incrível. Esses caras fizeram horrores. Agora, o que eu não admito, e não perdoo, é colocarem a Citla como cabeça. Porque a Comercial não era daqui. A Comercial, como de fato, levantaram os panos e foram embora, não sobrou um aqui sequer. E a Citla não, a Citla era gente daqui. E gente, como eu acabei de dizer, o compadre Júlio era o chefe do escritório daqui, o homem que mais serviu esse povo aí, que eu conheço! Sou testemunha da história da época, o quanto ajudou todo mundo sem nunca pedir nada. E isso que me dói na alma até hoje, fazer o que fizeram com ele, porque o negócio foi pra cima dele. A Citla foi um segundo plano. O negócio era desmoralizar ele, pra poderem subir na política.
JdeB – Que lembrança o senhor tem do Júlio Assis Cavalheiro?
Júlio – Ah, desde que eu conheci ele, a gente começou a se dar muito. Muito bem. E depois disso fomos morar em Mariópolis. De Mariópolis, fomos com a nossa mudança pra Jaracatiá, lá pra fazenda dele, lá ficamos um ano e meio, dois anos, não tô bem lembrado. Esse homem era tão bom que certos colonos vinham pedir vaca de leite pra ele, emprestada, pra tirar leite pras crianças, ele emprestava. Depois que algum daqueles caras foram contra ele, inclusive algum até ajudou a matar a criação dele lá na fazenda pra fazerem churrasco, nós fomos buscar a criação. E não era só vaca, ele tinha emprestado umas quatro, cinco vacas pros cara tirarem leite, emprestou boizinho novo pra amansar e pôr no carrero, pra trabalhar, pra lavrar, pra coisarada.
JdeB – Dona Maria, o que a senhora lembra daquele tempo, da limpeza, como era?
Maria Dolores – Olha, era um ótimo escritório, recebiam todo mundo muito bem, nunca maltrataram ninguém, todo mundo trabalhava bem, normal, tudo calmo, tomavam bastante chimarrão. O dr. Walter vinha quase todo dia tomar chimarrão lá com eles, então era assim.
JdeB – E a senhora que fazia a limpeza, ia lá algumas horas por dia?
Maria – Ia todo dia, de manhã cedo, todo dia. Quando o seu Júlio abria a porta, já tava tudo limpinho.
JdeB – Por causa do barro sujava tudo.
Maria – De barro, sujava tudo e daí eu pegava uma pra me ajudar a tirar. E no tempo de pó era horrível, até lá em cima na minha casa. Passava pano todos os dias. Tinha que tirar o pó, pra passar o lustra móveis.
JdeB – Quem fazia o chimarrão?
Maria – Quem que fazia o chimarrão era ele (o marido, Julinho), num fogareiro a álcool. Todo mundo tomava chimarrão, até hoje todo mundo toma muito chimarrão. Tomamos de manhã, antes do almoço, de tarde, nós tomamos bastante chimarrão.
JdeB – E a senhora também recebia pelo trabalho que fazia?
Maria – Recebia. Dava pra ajudar um pouquinho nas despesas.
JdeB – E quando deu a revolta que vocês foram embora, fez falta aquele dinheiro, dona Maria?
Maria – Fez muita falta.