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Francisco Beltrão
domingo, 29 de junho de 2025

Edição 8.235

28/06/2025

Entrevista com Natalício José Weschenfelder (1937 a 2012): O padre de resultados

Entrevista com Natalício José Weschenfelder (1937 a 2012): O padre de resultados

Desde cedo simpatizou com a ideia de ser padre. Desde cedo assumiu responsabilidades. Sempre no Sudoeste, comandou as paróquias de Palmas, Pato Branco, Mariópolis, Dois Vizinhos e Francisco Beltrão. E para o futuro um dos planos é conhecer a China.

 

Monsenhor Natalício

O mais velho dos nove filhos de Matias e Hilária, Natalício José Wrschenfelder, sentiu brotar a vocação para o sacerdócio enquanto jogava futebol, sua paixão de adolescente. Vedelino Junges, um padre que tinha sido capelão militar na Itália, foi seu referencial. O padre animava os jogos de domingo á tarde em Itapiranga. Hoje, aos 58 anos, há tempos não joga futebol. Sua técnica como zagueiro é prisioneira do tempo, gravada na memória de seus contemporâneos de refrega – para usar um terno caro à época. O libriano Natalício nasceu e chutou as primeiras bolas em Itapiranga, Oeste catarinense, e já pequeno, em meio a peraltices, banhos de rio e pescarias, moldava seu caráter inflexível e uma obstinação pela disciplina. Natalício é de uma geração que não teve moleza no seminário. As crises econômicas afetavam a instituição, o país e sua família. Mas era um orgulho ter um filho padre, e o sacrifício, tanto particular como o da família, valeram a pena. De Itapiranga para o mundo, Natalício morou um ano em Paris, fazendo um curso, e planeja, para os próximos anos, conhecer a China. Eventual colaborador do Jornal de Beltrão, em artigos de opinião, Natalício é um leitor contumaz. Lê, em média, um livro por semana, fora jornais e revistas nacionais e estrangeiras. O amor à leitura permitiu também fôlego para organizar a biblioteca da paróquia de Francisco Beltrão. Encadernou, em 11 volumes, toda a história do livro “tombo”, desde 1956. Politicamente, vê com simpatia as disputas internas da Igreja entre conservadores e progressistas. Fã dos papas Gregório 7º, Leão 13, Pio 12 e João 23, Natalício acha que o papa João Paulo 1º não foi assassinado – polêmica velada depois da morte do pontífice após 33 dias de pontificado. “Ele ficou doente, foi uma sobrecarga de responsabilidade”, opina diplomaticamente. Em março ele deixa a paróquia de Beltrão e assume a de Palmas. Ou melhor, retorna a Palmas, onde começou, há 32 anos e meio, a brilhante carreira que tem no currículo a construção de muitas capelas, centros comunitários, pavilhões de igrejas e a Casa de Formação de Francisco Beltrão. “O que falta à igreja não é dinheiro, é fé”, filosofa Natalício Weschenfelder, formado em Filosofia, Teologia e Letras (português/francês). Seu escritório, na paróquia, têm livros e revistas nacionais e estrangeiras. E tem CDs também: além dos naturalmente religiosos e clássicos, Sergio Reis e Oswaldir e Carlos Magrão para dar um ar, digamos, de anos 90. Por exata duas horas e cinco minutos, Natalício recebeu Gente do Sul na tarde de 15 de dezembro, acompanhado de uma Coca-cola dois litros.

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GS – Muita gente ainda lembra de um garoto muito levado, que aprontava bastante, colocava sal na comida das pessoas faziam quando iam comer, e usava muito bodoque não para caçar passarinho! O que o senhor lembra da sua infância?

Natalício – O que eu me lembro é que a cidade era pequena, tinha muita amizade e morava na beira do Rio Uruguai. Eu praticamente nasci aprendendo a nadar. Os pais eram contra, então nós nos jogávamos um quilômetro acima da cidade e vínhamos descendo nadando e nos agarrando a ramos de árvores para voltar à margem. E mesmo quando o rio ficava alto. Hoje nunca mais faríamos uma décima parte do que se fez quando era pequeno. Parece que o anjo da guarda funcionava muito naquela época. Uma vez eu lembro que o Rio Uruguai estava alto e nós não conseguimos nos agarrar a árvores e descemos correnteza abaixo. Foi um grande remanso que nos salvou. Éramos três ou quatro colegas. Isso fazíamos sem perceber o perigo. E também havia o armazém do senhor Waiss, e gostávamos de brincar sobre os fardos de fumo, e quando vinha alguém nos escondíamos entre os fardos. Uma vez um colega teve que tossir, o fumo ardeu na garganta, nos prenderam. Meu falecido pai gostava de pescar. A gente ia junto na pesca, fazíamos passeio ao longo do Uruguai. Era um tempo muito bom, um tempo especial. Ah! E sobre o bodoque, no dia 14 de julho de 1963, quando rezei a primeira missa, em Itapiranga, ao meio-dia, o senhor Rudi Guerg, que depois foi gerente do frigorífico, me deu de presente em nome da comunidade. Ao desenrolar o pacote ele pediu licença ao delegado e me entregou um bodoque. Este bodoque estava preso na delegacia de Itapiranga!

 

GS – E a vida no seminário?

Natalício – O que eu mais estranho é que os mais quietos foram os primeiros a sair do seminário. Quando fomos, em 1950, para o seminário de Palmas, fomos em 14, da 5º série do 1º grau. O povo dizia: “agora a cidade vai ficar calma e tranqüila”. Algumas meninas foram também para o colégio das irmãs. Uma delas ficou irmã carmelita, a irmã Terezinha Link. Ela é até os dias de hoje, irmã carmelita de claustro em São Leopoldo (RS). Outra irmã religiosa, foi provincial das irmãs da Divina Providência aqui da província do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Era um grupo muito bom, um grupo disposto a brincadeiras mas também ao trabalho. Lembro de colegas aqui da cidade: Neldo Claus foi meu colega, Nelson Claus também, e o seu Rubig Ver, que mora no Pinheirinho, foi colega. Temos outras pessoas na região que foram colegas naquela época. Terminando o 2º grau em Palmas, um grupo de oito não falava bem português. Um de origem alemã, outro italiana. Então, o falecido bispo dom Carlos Bandeira Sabóia de Mello disse: “eu vou mandar vocês para Belo Horizonte, assim vocês vão aprender português”. E fomos. Pegamos o trem em União da Vitória até São Paulo. De São Paulo a Minas Gerais, acompanhados do reitor, padre Vitelino Saiber. Chegando em Minas para fazermos a filosofia, teologia, éramos chamados de gaúchos. Eles nunca tinham visto chimarrão. Foi uma troca de experiências muito boa. Isto foi de 1956 até 1963, quando então a gente ficou padre, dia 7 de julho, na cidade de Palmas. Minha primeira missa rezei dia 14 de julho, em Itapiranga.Na época arrisquei uma missa virado para o povo. Foi um escândalo público! Não era costume. Foi a primeira na região. E em português! Na verdade essas missas já haviam começado. A gente participou de uma transição do antigo para o novo, do latim para o português. Hoje, eu compreendo a geração jovem, que terá mais dificuldades. O mundo evoluiu mais rapidamente. Uma mudança de 15 anos hoje vale cinco.

 

GS – Seus irmãos dizem que muitas das brigas que aconteciam era porque o Natalício era muito exigente, queria as coisas muito certinhas, no lugar. Isto é verdade? Desde aquele tempo o senhor gostava das coisas todas em seus lugares?

Natalício – Somos de uma família grande: quatro irmãos e nove irmãs. Então, eu sempre procurei organizar da melhor maneira as coisas. Meu falecido pai era alfaiate. Tinha também a loja Renner em Itapiranga, depois teve uma filial em Mandaí e uma em Sçao Miguel D’ Oeste. Mas em 1964, 65 para 66, houve mudança de moeda. As coisas ficaram mais difíceis economicamente. Havia uma época em que éramos três estudando para padre e quatro irmãs estudando para irmã. Então éramos sete pessoas estudando fora de casa. Época em que a mãe também passou para a alfaiataria. E depois, como as coisas pioraram mais, a partir de 67, 68, a mãe e minhas irmãs regressaram do colégio partiram para fabricar flores artificiais. Isto ajudou no sustento da casa. Até hoje minha irmã, a professora de pintura Terezinha Both (de Dois Vizinhos”, trabalha com arte. Tenho duas irmãs em Pato Branco, a Cléria Jager, que tem a escola de pintura Ales Blau com a Lourdes. E em Clevelândia minha irmã Elvira, que trabalha com pintura. Mas não sei porque sou assim. Talvez por temperamento; por gosto, nãp. Isso gerava ás vezes briga com os meus irmãos, sobretudo no sábado. Era costume lavar a casa nos sábados. Aliás sábado era tudo, era o dia de trocar a roupa de banho, a mãe preparava uma cuca, bolo, doce. Depois, quando a gente fez a primeira comunhão, com oito ou  nove anos, a gente pôs sapato pela primeira vez. Eu gostava sempre das coisas nos lugares certos. Não sei a que atribuir isso. Dizem que conservo essa mania até hoje. Ás vezes à noite limpo o lixo jogado fora, no pátio. Acho que não fica bem, deseduca.

 

GS – Esse excesso de zelo, pode ter influenciado a úlcera nervosa, gastrite? Ou não tem nada a ver? E seu corpo é sadio como sua mente?

Natalício – Não. Eu consegui desvincular isso da vida. Hoje estou tranqüilo, não me afeta mais. Só que eu gosto de ver as coisas limpas, em ordem, tudo no lugar certo. Isso faz com que a ordem impere. Acho isso muito importante. Quanto ao corpo tive épocas que não tinha tanta saúde. Fiquei padre com praticamente 23, 24 anos, e de saída tive que assumir muitos compromissos por uma contigência histórica. Em 1964 os freis franciscanos saíram da cidade de Palmas logo que eu fui ordenado padre, e os padres diocesanos tiveram que assumir a catedral de Palmas. Eu tinha um ano e pouco de padre apenas. E tive já que trabalhar em Palmas. Portanto, de 34 para 35 já tive que ajudar na catedral de Palmas. E não sabia onde estava a chave do sacrário, onde estavam as hóstias, onde estava o vinho, os santos óleos para atender os doentes. Porque Palmas na época era uma cidade considerada boa. Uma vez que Francisco Beltrão, Pato Branco e Dois Vizinhos eram cidades ainda pequenas em 64, depois é que explodiram comercial e demograficamente. De saída tive que assumir. Também no seminário de Palmas, com poucos anos de padre. Depois em 1969 faleceu o primeiro bispo dom Carlos, nomeado então dom Geraldo Pelanda, administrador diocesano, e eu fiquei secretário da diocese: de 9 de fevereiro de 69 até 14 de julho de 70. Praticamente um ano e meio que dom Geraldo vinha de vez em quando. Isto me acarretou úlceras, porque o trabalho era muito grande e eu não queria deixar nem um papel para trás.

 

GS – Que recordações o senhor tem de Dois Vizinhos?

Natalício – Quando dom Agostinho ficou bispo, em 14 de junho, fiquei com ele ainda seis meses, como secretário. No dia 24 de janeiro de 1971, assumi a paróquia de Dois Vizinhos, juntamente com o padre Germano Tomelin. Nós sucedemos os missionários do Sagrado Coração, dos padres belgas, que fizeram um trabalho muito bonito de catequese, de formação de lideranças. Dois Vizinhos na época tinha 60 capelas, mais Cruzeiro e Salto Osório. E havia uma dívida para pagar. E o povo disse: “vamos pagar a dívida desde que vocês benzam todas as casas”. Num espaço de um ano benzemos todas as casas. Saíamos às seis e meia da manhã e voltávamos 11 horas da noite. Trazíamos a pipoca cheia de porcos, cabritos, galinhas, milho, feijão, para poder pagar a dívida. Quando passou sete meses a dívida estava paga. Era uma dívida que seria hoje equivalente a R$ 50 mil. Tinha sido um problema de circunstância, de mudança de moeda e tudo mais. Foi construído um colégio muito grande em Dois Vizinhos. Valeu a pena o colégio. Foram anos difíceis, mas valeu a pena.

 

GS – Que fotos o senhor lembra que marcaram sobremaneira na função de padre?

Natalício – Um fato me marcou muito: em Palmas, dia 9 de fevereiro de 1969, quando faleceu dom Carlos. Ele era um homem muito pobre, tinha uma cama muito simples, uma mesinha, uma escrivaninha, tudo muito simples, como um asceta. Ele era parente do Assis Chateaubriand, e de uma família nobre de Petrópolis (RJ). Ele ganhava muitos bens, lhe davam muita coisa. Mas ele empregou tudo para construir o santuário de Palmas, a casa do bispado, o seminário e ajudava muitas paróquias que precisavam. Alguns parentes – não todos – achavam que dom Carlos tinha milhões em ouro, em dólares, escondidos no colchão. No dia da morte chegaram alguns parentes, e antes de perguntar “onde está o nosso primo morto”, perguntaram onde estão as jóias e o dinheiro. Quando lhes foi dito que só tinha um anel, um báculo e roupas pessoais, eles apenas entraram na sala e meia hora depois se retiraram. Não ficaram no enterro. Isso me marcou muito. Foi um gesto terrível dos parentes.

 

GS – E a vocação, quando o senhor sentiu “acho que vai ser por aqui”?

Natalício – Havia um padre em Itapiranga, em 1946, padre Videlino Junges, que era capelão militar na Itália. Este padre aos domingos ia na nossa escola e pedia aos alunos para fazerem times de futebol. E no domingo, ele ia no campo de futebol colocar alto falante. Ele torcia enquanto jogávamos bola. Aí surgiu minha vocação. Eu pensei: ser padre não é coisa tão ruim. Eu tinha medo de padre. Todos tínhamos. E a partir daquele momento, eu disse: vou ser padre. A vocação surgiu assim. Outro ponto que me chamou muito a atenção foi em casa, os pais rezam o terço à noite, ajoelhados, como era de costume. E em Itapranga havia todos os anos, em janeiro, a festa dos seminaristas. Havia muitos seminaristas jesuítas. Em Itapiranga tem mais de 50 padres e 200 irmãs religiosas. Nas férias, um senhor chamado Link reunia todos seminaristas, e a gente era coroinha. Daí criei o gosto. Quando fui ao seminário, em 1950, talvez não tivesse bem claro que era a vocação. Tinha aquele gosto lembrando do padre que animava os jogos de futebol.

 

GS – Mas o senhor nunca “vacilou”, mesmo no seminário?

Natalício – Eu achei muito difícil, porque em 1953 houve no Brasil, uma crise econômica muito grande. Eu estava no 3º ou 4º ano e praticamente nos faltavam alimentos. Meu pais, mais pais de seminaristas em Itapiranga, fizeram coletas de comida: melado, feijão, arroz e trouxeram isso de camionete várias vezes para Palmas. Muitas vezes comíamos pinhão sapecado. Ou então, como havia dificuldade no seminário para pagar cozinheira, íamos almoçar no colégio. Eram dois quilômetros de distância. Quando chovia muito, não íamos.Daí comíamos o pinhão sapecado sobre grimpas. Ás vezes, no café e na janta, era só um pçao com melado e uma xícara de café. Mas isso foi muito bom. Hoje, eu dou muito valor às pessoas que têm dificuldades econômicas e que sofrem. Ás vezes, eu tenho um medo de certos seminários onde o menino não paga nada, tem tudo do bom e do melhor… Eu duvido de ser um padre… pode ser, mas ele não sabe sofrer. Ele deve dar valor ao sofrimento. Enfim, as dificuldades que passei foram positivas, me ajudaram muito.

 

GS – Hoje em dia os seminários não estão tão rígidos como na sua época?

Natalício – Hoje existe liberdade com responsabilidade. O sofrimento não é mais tanto, hoje as coisas estão mais fáceis. No nosso tempo era proibido ter rádio! Quem tivesse rádio no seminário maior, de teologia, filosofia, era motivo de expulsão. Tem uma parte cômica. Em Belo Horizonte havia pessoas que montavam o chamado rádio galena, com algumas pedras especiais e fios, e escutavam uma estação da cidade. Era feito artesanalmente, mas se escutava a Rádio Itatiaia de Belo Horizonte. Em 1957 foi o primeiro jogo televisionado no Brasil, entre Atlético Mineiro e Botafogo. Dom Serafim Mendes de Araújo, à época bispo auxiliar, hoje é arcebispo lá, era muito amigo do Garrincha e do Botafogo, e ele trouxe o Botafogo para Minas, para fazer um jogo beneficente. O jogo foi televisionado. Nós assistimos só da hora que começou o jogo, e no apito final que a TV foi desligada. Era realmente um regime assim bastante duro até para filósofos e teólogos. Na época, tínhamos que usar batina. Para jogar futebol, usávamos um guarda-pó, ou cortávamos a batina na altura da cintura, uma mini-saia! Só depois de alguns anos, é que foi introduzido o calção, para jogar ou trabalhar na horta. Foi um tempo duro, mas nos serviu bastante.

 

GS – Existe hoje menos interesse dos jovens em serem padres?

Natalício – Hoje em dia, no geral, existe menos porque fala-se menos. E também porque as oportunidades são mais diversas. Anos atrás ser padre era até status para muitos. Hoje não. Hoje tem shows, computadores, tanta diversidade para os jovens. Hoje os jovens desejam ganhar muito dinheiro, ter fama e estudar para ser padre hoje “não existe”. Certos valores que a gente colocava na época hoje não têm mais. Hoje o jovem tem o que podemos dizer de contra-valores. Mas isto não coloca em risco o futuro porque a Igreja tem caminhos. Hoje eu penso assim, de uma análise que eu fiz na minha última viagem a países desenvolvidos – Alemanha, Bélgica, Espanha, Portugal e França – dizem que há um interesse maior para padre entre essas pessoas já maduras, em que a pessoa opta. Não padre para correr nas capelas, mas um padre, por exemplo, que pesquise, que estuda e sobretudo um padre de atendimento, de aconselhamento.

 

GS – Dentro de uma nova postura da igreja, o sacramento da confissão tende a terminar?

Natalício – Não. O povo quer muito o diálogo. Quer pôr para fora seus problemas internos. O povo ainda acredita no padre, por causa do segredo e do sigilo o povo acredita muito. O consciente, o subconsciente e o inconsciente que temos dentro de nós necessitam de ajustamentos. Daí a diferença entre o psicólogo e o sacerdote. O psicólogo faz um trabalho muito importante, mas há momentos que precisa ligar o problema com a fé, com a espiritualidade. A conversa é importante, e depois pode se tornar confissão.

 

GS – Como o senhor vê a disputa entre os setores da igreja, os progressistas e conservadores? Isto é bom ou ruim?

Natalício – Eu penso que é bom. Tem uma frase, de Napoleão, que diz:”onde passam as ideias passarão os canhões”. Há necessidade na igreja que haja um grupo que avance mais, que pensa, que reflete. O outro grupo então vai raciocinando. E um outro grupo, depois, une tudo isso no agir. Certas liturgias que se realizaram no Brasil, na América Latina, certos cursos e encontros que estão se realizando, serão aprovados oficialmente daqui a alguns anos, Quando você está diretamente trabalhando com o povo, você vê a necessidade do povo. Nisto eu admiro muito dom Pedro Casaldáglia, dom Félix, dom Helder Câmara e outros porque eles estão numa situação de conflito, onde pessoas estão mortas por causa da terra. Claro que eles têm que defender essas pessoas, e isso vem a ser uma ação política. Por isso se diz que a igreja faz política. Mas não é isso. É defender aquele que está em necessidade maior.

 

GS – No seu caso, a defesa dos índios em Palmas?

Natalício – Exato. Eles passavam fome. Em 1965, 66, os homens entravam à noite e derrubavam pinheiros, imbuias, e saiam com os caminhões carregados. E os índios descalços na neve. Foi necessário dar um basta nisso. Quem pensava assim, à época, era comunista. A gente recebeu até ameaças. Não é fazer política, mas é fazer uma ação que vem a ser uma política em favor do cidadão.

GS – Quando o senhor foi ameaçado de morte chegou a pensar que seria o fim mesmo?

Natalício – Bom, em 1979 eu fiquei um pouco assustado porque vieram vários telefonemas e muitas pessoas foram presas. Realmente houve uma perseguição grande a todos que trabalhavam no Conselho Indigianista Missionário. Houve padres que foram mortos, como o padre Rodolfo, de segunda a quinta e no sábado ele foi morto, em Goiás Velho (GO). Realmente a gente ficou um pouco assustado na época. Continuamos o trabalho, mas com mais atenção ao problema. Em 89 não tive medo e pouca gente ficou sabendo: foi uma tentativa de golpe no Brasil. Todas as pessoas inscritas em 78 foram notificadas para que se cuidassem, porque se houvesse o golpe iriam todos para a forca. Era uma tentativa de sabotar a eleição.

 

GS – Pela experiência que o senhor tem, até que ponto hoje temos liberdade para falar do que realmente sentimos?

Natalício – Hoje, tem duas posições. Uma é saber da realidade. E outra é como falar da realidade. De um lado as pessoas não acreditam da situação que muitos vivem. E se você abertamente será perseguido, será gelado. Hoje, temos que falar nas entrelinhas, sabemos que estamos num regime neoliberalista. O que vale é o capital. Chama-se Teologia do Capital. E não o homem, a pessoa humana, não vale. Veja só: primeiro houve a colonização da África, depois a 1º guerra, a 2º guerra. Hoje a divisão se faz através das multinacionais, que coordenam a economia do mundo. Por exemplo, o café é controlado por Londres, onde não tem pé de café nem pra turismo! Mas eu vejo uma perspectiva nova. A partir de 1999 a Europa terá moeda única – o Euro. E a partir do ano de 2005 o mercado europeu vai estar unido com o Mercosul, e isto vai trazer uma perspectiva nova. Eu vejo que a próxima potência a implodir, como implodiu a Rússia, será os EUA. Poderá depois o Brasil entrar nesse jogo. Temos um povo trabalhador, temos matéria-prima. Mas falta muita atenção à educação e á saúde. Hoje, ficou doente você está perdido. E o nosso estudo também deixa muito a desejar. Mas eu acredito no futuro do Brasil, mas não a curto prazo. Se a inflação não voltar nós teremos em 1999, daqui a quatro anos, uma perspectiva de melhora. Se a inflação voltar, vamos atrasar mais dez anos o progressivo. O desejo de muita gente no Brasil é voltar a inflação porque estes vivem sem trabalhar, só cuidam dos juros e especulação financeira.

 

GS – O senhor que morou em Paris, que paralelo faz entre o humor europeu e o brasileiro?

Natalício – É interessante. Parece uma contradição. Quanto mais desenvolvido o país, mais o povo não acredita muito no outro. Por quê? É o seguinte: a competição é muito grande. Quem tem curso superior, quem trabalha com computadores, em comunicação, jornalismo, está num cargo, mas atrás dele tem milhares – estrangeiros naquele país – que trabalhariam 50% mais barato, e talvez com a mesma eficiência. Nós não imaginamos aqui como tem estrangeiros em países de primeiro mundo. Como tem milhões de estrangeiros tentando uma vaga de trabalho. Em vista disso, parece que um desconfia do outro, um quer tirar o seu cargo. E quando a pessoa chega num status de uma vida estável, em que não há problemas econômicos, parece que fica auto-suficiente. Não sei se isso é próprio da humanidade, ou eu não compreendo bem as pessoas . As pessoas são amigas quando conhecem você. Os europeus lêem muito. No trem estão sempre lendo jornais, revistas ou livros. Eu vejo lá jovens com cinco ou seis livros. O mundo evolui tanto, e a pessoa quer acompanhar e isso deixa a pessoa neurótica. Outra coisa: os países da Europa passaram por muitas guerras. E eles ainda não acreditam que não possa vir outra. Eles acham que o sossego é demais. Então dá uma certa instabilidade, intranqüilidade.

 

GS – Como o senhor vê a nossa região em termos culturais: já desapontou ou ainda falta muito tempo?

Natalício – Graças a Deus a revista Gente do Sul e o Jornal de Beltrão, deram um cunho diferente à leitura. Mas eu ainda penso que se lê muito pouco. Vou dar um exemplo prático. Temos o jornal “Até que…” Quando dom Agostinho foi sagrado bispo, em 1970, ele escolheu a frase: “Até que Cristo seja formado em todos”. Até que todas as pessoas sejam mais semelhantes a Cristo. Então o nome do jornal foi colocado Até que… este jornal é pra 600 mil habitantes. Num pai e corda tem 5 mil assinaturas. Tem paróquias que têm 20, 30 ou 40 assinaturas. Irmãs paulistanas me disseram em Curitiba que a revista Família Cristã, que é muito boa, tem épocas que ás vezes, quase fecha. Dificuldades para manter uma revista tão boa, que na Itália é diária. Infelizmente, a leitura é muito pouco. E se a gente não capricha, cai no mesmo erro. A gente acaba lendo pouco.

 

GS – Como foi sua passagem pelas outras paróquias em Beltrão?

Natalício – Em 64, monsenhor Eduardo Rodrigues Machado era pároco em Mariópolis e assumiu a construção do seminário em Palmas. Eu era professor do seminário em Palmas. Então sexta-feira eu pegava o ônibus ao meio-dia, chegava em Mariópolis às duas da tarde ou três horas,  à noite dava aula de religião na Escola do Comércio. Sábado fazia casamentos e atendia o pessoal. Tínhamos uma pequena banda de músicos e domingo á tarde jogávamos futebol. Em Dois Vizinhos fiquei os anos 1971, 72 e 73. Foi um tempo bastante difícil mas muito bom. Na Assesoar vim trabalhar em 74, na equipe executiva da diocese. E depois de 74 a fins de 75 tive a sorte de fazer um curso de catequese na Bélgica. E em Paris fiz um curso com Paulo Freire: “Educação de base”. Retornei em 46 direto para a catedral de Palmas, onde fiquei oito anos. Depois aprimorei a paróquia Cristo Rei em Pato Branco. Depois vim a Francisco Beltrão, onde estou há sete anos. Daqui retorno a Palmas, em 3 de março. Todas as paróquias foram boas. Hoje eu penso assim: quem faz a paróquia é o próprio padre. Povo bom tem em toda a parte, dificuldade tem em toda a parte. Mas eu vou pra Palmas mudando a mentalidade. Eu penso que primeiro eu preciso pesquisar um pouco a realidade da vida do povo, depois, dentro do plano diocesano, tentar fazer as coisas. Hoje o padre tem que ser amigo do povo para que o povo tenha confiança na pessoa do padre, Em Palmas construí a catedral e os centros comunitários, em Dois Vizinhos tivemos que começar o pavilhão da Cidade Norte e limpar uma quadra para a igreja; Tinha oito ou nove famílias, em que as casas foram tiradas sobre roletes. Em Beltrão foi necessário comprar a casa do bispado, quando todas as paróquias ajudaram, organizar a cúria, reformar a igreja, a casa paroquial, o Pedro Granzotto não era concluído, salas de catequese, também construí o centro comunitário dos bairros Kennedy e Marrecas e a casa de formação. Mas o grande desejo agora é construir pessoas vivas. É interessante, nós como padres temos uma tentação de pastoral de tijolo, parece que dá uma cócega nas mãos, mas o mais importante é a parte espiritual. Foi pena que aqui não foi feita a torre.  Tem um grupo de pessoas em Beltrão que é contra a torre, dizem que é supérfluo. Outros dizem que é necessário. Daqui pra frente eu vou procurar também uma coisa que eu esqueci muito: meu aperfeiçoamento espiritual.

 

GS – Cuidar a parte espiritual envolve ler a Bíblia. Uma vez a revista Veja fez uma reportagem grande sobre as contradições da Bíblia. O senhor não se sente “enganado” lendo frases que foram traduzidas, retraduzidas…

Natalício – Não. Isso vai acontecer mais no futuro, porque há pessoas pesquisando a Bíblia. Tem por exemplo a Escola Bíblica de Jerusalém, tem escolas bíblicas dos metodistas, dos luteranos, dos católicos, pessoas que não fazem outra coisa senão pesquisar a Bíblia. Eles vão encontrar certos pontos, não digo contradição, mas da maneira como foram escritos. Mas o principal da Bíblia é o espírito da Bíblia, a mensagem de Deus, que é a caminhada do povo. As outras coisas que são ditas por historiadores, que um profeta falou, que outro não disse, eu penso que isso é o próprio da linguagem. Isso não afeta. O principal é a verdade da Bíblia. Pequenas dúvidas existem quanto ao modo de escrever.

 

GS – E a questão da AIDS. Até quando vai se manter a posição do papa de proibir a camisinha e mesmo contraceptivos?

Natalício – A Igreja é a favor do planejamento familiar. Agora, não está de acordo com os métodos utilizados. A Igreja quer que se use métodos naturais na limitação da natalidade, que ainda não estão esgotados. A Igreja acha que não se deve permitir o uso da camisinha, coito interrompido, DIU, métodos que iriam contra a natureza. Seria necessário o homem e a mulher se educarem. Mas dentro dessa permissividade que existe hoje na televisão, nas revistas, novelas e tudo, a posição da Igreja não é aceita. Não é aceita hoje, mas poderá ser aceita depois. Porque as coisas evoluem também no sentido da mentalidade das pessoas. E é necessário que alguém diga não. Se todos disserem sim, os costumes vão cair por terra. Eu, quando falo sobre isso, jogo na consciência da pessoa: veja a sua ação diante de Deus.

 

GS – E sobre Edir Macedo, até que ponto a sua igreja vai crescer?

Natalício – Eu li sobre Edir Macedo em várias revistas. Já sabemos que em Cascavel ele está entrando. Está desejando entrar no Sudoeste também. Mas essa igreja do Edir Macedo vai crescer enquanto ele estiver vivo. Á medida que o povo evoluir a mentalidade, isso muda. Mas para nós é um questionamento. Por que uma pessoa deixa a igreja católica? Parece que é próprio da nossa época a falta de convicções profundas.

 

(Entrevista publicada pela revista Gente do Sul de janeiro de 1996)

 

 

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