
O hino do centenário da Guerra do Contestado tem versos como estes:
“A 22 de outubro de 1912,
o governo mandou atacar
a multidão banida da estrada de ferro,
por estrangeiros sem vencimento,
sem terra e sem pão.
O monge pediu a paz: veio ameaça, ferro e fogo.
Zé Maria anunciou com ardor seu martírio.
Reuniu os fiéis e rezou.
A reza foi forte, o céu deu suporte,
e a metralhadora falhou.
Caboclo soldado, garrucha e facão:
Soldado, caboclo: irmão contra irmão”
Seu autor é um neto de protagonistas daquele episódio sangrento que no início do século passado fez milhares de vítimas, em sucessivas batalhas de brasileiros contra brasileiros, ou irmão contra irmão, como ele poetou.
Vicente Telles nasceu em 1931, ou seja, 16 anos após o fim do conflito. Mas ele passou a conhecer aquela história de seus pais e avós somente a partir de 1975, quando deixou o Exército, aposentado. Por que ninguém falava de evento tão marcante? Por que tanta repressão?
Ele passou a pesquisar, principalmente ouvindo as pessoas que participaram da guerra ou que tiveram parentes envolvidos. Vicente diz que para ele não interessam as barbaridades ocorridas no conflito, os erros cometidos, seja pelo lado que for. São consequências. O que ele busca são as causas da guerra. Por que tudo começou?
O avô paterno de Vicente, coronel Alexandre Telles da Rocha, era fazendeiro, grande proprietário de terras, estava do lado das tropas do governo. E o avô materno, José Alves Perão, era dos caboclos, ou “fanáticos”, inclusive mudou de nome, depois, para despistar perseguidores, passou a se chamar José Felisberto. Após o Contestado, ambos se refugiaram no Paraná, interior do futuro município de Coronel Vivida.
No Sítio Histórico do Contestado, Vicente Telles dá aulas de História aos visitantes, entre eles muitos alunos, que são seus preferidos.
Dia 8 deste mês, acompanhado de Dirceu Silveira (fundador do Trago e Prosa, jornal de bar criado em Francisco Beltrão em 1988 e que se transformaria na semente do Jornal de Beltrão), Vicente, mesmo desacompanhado de seu filho Vicentinho (não estava na cidade), apresentou a Opereta Cabocla (ele vai declamando e musicando a história do Contestado). E também concedeu esta entrevista ao JdeB.
JdeB – Num seminário em Florianópolis, o senhor perguntou: “Como justificar que diante de tanta terra devoluta e pouco povoada não reassentaram os posseiros? E como se justifica o governo haver gasto fortunas para matar quem não devia e esvaziar o que precisava ser preenchido?”
Vicente – Mas tem lógica isso? Digo, eu tô aqui pra aprender, eu quero que o senhor me explique toda aquelas celebridades lá. Eu mencionei a questão dos anéis. Falei ‘os senhores são célebres, admiráveis, encantadores quando falam; eu fico aqui embevecido, mas com um detalhe, os senhores só cuidaram dos anéis. E os dedos? Tem relógio, tem anel e não tem mão, não tem braço’ (risos). A vida das pessoas não tem valor, a essência da existência da vida do ser humano não tem valor. Agora, é uma questão muito engraçada, porque ninguém me contesta. Para aí, você tá saindo fora da trilha, vamos voltar à coisa, você fugiu do assunto, nós estamos falando da guerra. Mas eu tô falando da causa da guerra.
A forma como reagiram não dá muita diferença, agora qual foi o motivo da briga?
Mas isso que você invocou agora eu sabia que foi avaliado, que o dinheiro gasto da guerra, um terço daria pra implantar na educação, justiça social e já no começo do século desencadeado o desenvolvimento da República. Daria pra comprar metade da ilha de Florianópolis, na época. Isso é pesquisa de um juiz que tive acesso.
O governo fez errado e gastou mais.
Não, ele não gastou mais, ele só fez crime, não foi pra cadeia. Isso aí foi matança, genocídio… e genocídio não prescreve. Por que não se cria a comissão da verdade, comissão do Contestado? Vai ver esses caras não baixaram a cabeça.
É verdade, se teve crimes da ditadura militar, dos anos 60 a 80, aqui também teve… e muito mais.
Toda vida… e uma forma muito mais requintada de selvageria.
O senhor também escreveu que “uma guerra não pode germinar numa consciência bem formada e uma saga só pode ser vitoriosa quando o lado vencido puder contar também o seu lado”. O lado vencido aqui não contou seu lado?
Quem que contesta?
Sua própria mãe tinha restrição do que falava, cuidava o que dizer e não dizer.
Vigiava os filhos pra não perguntar, pra não tocar no assunto. Ela que não foi alvo. Esse trauma emergiu de um ponto e foi se esparramando nas descendências das gerações e chegou aqui. E fui pro Exército com 18 anos e não sabia de nada.
Quando o senhor começou a se interessar ou falar sobre esta história?
Fui pro Exército em 1950, saí de lá no final de 75 e fui pro Mato Grosso, fiquei lá um período e aí vim pra cá. Minha mãe é a única que não tinha companhia, porque o resto todo mundo trabalhava, eu aposentado e ela também pelo Funrural. Vim morar com ela aqui, numa casa que a companhia que fez o asfalto tava alojada e me deu aquela casa. Eu vim saber por intermédio dos engenheiros que existiu essa guerra. Eu vinha pra cá e tocava gaita e fui investigando. Eu pensava que a guerra tinha terminado aqui e foi o começo. Aí eu me lembrava, minha mãe dizia que meu avô era fanático, mas, santo Deus, meu avô, uma pessoa carismática, um raio de luz, brilhava a pureza daquele homem. O outro era carrancudo, dono de fazenda, de gado, ligado ao governo, isso intrigava e não podia falar. Você vai sufocando, tudo isso você vai acumulando. Quando explodiu isso, eu vi que era um pouco da voz de sangue, porque eu estava pro lado do oprimido. Uma professora me dizia “o senhor tá despertando nos alunos uma indignação, professor”. E não é necessário? Você não acha que quando a pessoa perde a capacidade de indignação contra o mal está na hora de morrer ou ele é o entulho no caminho? A indignação contra o mal cria o quê? Solidariedade ao bem. É ou não é?
Tá certo.
A indignação contra o opressor cria solidariedade naturalmente ao oprimido. Eu preciso despertar a indignação pra criar solidariedade à justiça. E mais: a solidariedade nos conduz à fraternidade, e a fraternidade nos leva à união, à coesão e, como dizia Olavo Bilac, “sem coesão não há Pátria”. Como você vai unir as pessoas? Dizia não sei lá quem* que palavras não são metais que se fundem. É verdade. Agora eu pergunto: e sentimento? Sentimentos são metais que se fundem. Quando você tem ódio, você se une com outro que tem ódio. Os bandidos são assim, formam quadrilhas, se reúnem os corruptos, se reúnem os que têm mal. Sentimentos do bem se unem. Esta união do bem, do amor, da fraternidade é que vai gerar a força, a energia que a pátria precisa. Aqui é meu reinado, agora aqui dentro as leis são minhas, eu posso ditá-las, os amigos que chegam aqui e vamos conversar. Eu penso assim, lá fora eu posso até ser inconveniente, mas eu estou dizendo o que eu penso. Agora veja bem, estranho que ninguém me contesta, você entendeu? Você poderá ser o primeiro, mas você me contestando, você não está me prejudicando, está me ajudando a entender.
O que o senhor sente das crianças quando lhes conta essas histórias?
O meu maior orgulho é que elas saem daqui pra entrar na guerra, elas saem daqui prontas pra mudar o Brasil, porque eu boto na cabeça delas o meu ponto de vista, que “eu não acredito mais em adultos e só acredito em vocês. Nós já estamos contaminados, agora vocês não, vocês poderão mudar o Brasil”.
O senhor tem recebido alunos não só daqui do município, mas de outras regiões, inclusive do Paraná.
Principalmente de General Carneiro, Cruz Machado, Paula Frontin, Porto União, União da Vitória… agora faz tempo que não vem lá de Itapejara D’Oeste, Palmas eu tenho ido lá, minha terra. Como eu digo que lá era o foco dos inimigos do caboclo, coronelismo era tudo lá, apompinado que eles chamavam.
Um texto que o senhor escreveu aqui vale para todos os tempos: “Os governos foram se sucedendo, alternando-se e esse belo projeto acabou abandonado como está acontecendo no Brasil, o que um semeia o outro joga sal para nada mais nascer, prova esta de uma das três pragas que infelicitam nossa pátria: mentira, corrupção e desperdício”. Umas coisas evoluíram e outras não?
Mas essa aí é mentira? (risos). Eu nunca li livro, folheio e depois eu analiso melhor, eu só leio o que me interessa. Então você vai descobrindo coisas que te tocam. O que eu sei eu não aprendi nos livros, eu aprendi com o caboclo, falando a linguagem errada e dizendo as coisas certas. Eu fui em Taquaruçu, acampei lá com aqueles caras e começamos a beber cachaça, tocava gaita pra eles, fazendo festa, dali a pouco me tornei amigo e me contaram as histórias e se apegamos. Quando tavam bêbados, eles afirmavam tudo e eu botava lá. “Quem tiver mulher bonita se cuide do graxaim.” Aí o cantor: “Que eu não quero que aconteça o que aconteceu pra mim”. Aí cantava com os caboclos. Dali a pouco tocava um bugiu, mostrava música de estrada, música de CTG mais avançado e eles assimilavam tudo, incrível.
Não terminou essa aí… o graxaim levou nos dentes.
Ah, sim. “Quem tiver mulher bonita, leva presa na corrente, porque a minha era bonita, o graxaim levou nos dentes.”
Essa música é a história, o senhor conhece bem, qual foi a origem? Qual era o cenário?
Exatamente. Quando vieram pra cá oito a dez mil – há quem diga que foi oito e outros dizem que foram dez mil – aliciados e convidados do nordeste, de vários estados como Pernambuco, Bahia, houve também um da Rocinha, São Paulo, Rio de Janeiro, eram detentos que tiravam da cadeia com promessa de final da condenação voltar e ficar rico. Quem não queria isso? Cada cadeia de lá não ia poupar essa, chegaram aqui e foram submetidos ao regime escravocrata. Agora, aqueles que escapavam e iam naqueles bailes, encontravam uma civilização de alma pura, de coração puro e de mente pura, condição para receber influência divina. Sem isso Deus não se manifesta. Então ele chegava lá e ninguém tava olhando pra isso, “essa tradição de vocês aqui. Vamos, vamos dançar!” Chegava e tirava a noiva do cara, que tava sentada do lado dele, sem pedir licença, pegava e saía dançando forró, excitando a moça.
Tipo lambada?
É, dali uns dias, chegavam lá os comentários: “Olha, aquele graxaim lá cortou a reata de fulano”. Aí o graxaim que corta a reata do cargueiro é do rabo comprido, a diferença é que o graxaim é pitoco. Daí surgiu essa guerra “Quem tiver mulher bonita, que de mim não tenha ciúme, querer bem eu quero mesmo, mas não sou de mau costume“. Você viu, rapaz, o cara resistindo à dor, derramando sua indignação, sua revolta, mas saindo pela água da poesia, no cabo do verso (risos). É interessante, né? Isso é a alma, é o testemunho do coração das pessoas. Então quero ver isso que existia no Contestado, quem era a pessoa que iam matar, foi o que Matos Costa fez.
Fale mais do Matos Costa.
O Matos Costa era um capitão que pertencia ao Exército e, quando saiu o general Mesquita da região, ele assumiu o comando de uma companhia em Timbozinho com 200 homens. Ele já tava indignado com aquela guerra, já havia soldados que vinham do Rio de Janeiro, de vários pontos do Brasil de clima quente naquele inverno de 1914. O pior da história é aquela gente enfrentando esses frios, mal vestidos, com calçados furados, pisando naqueles buracos de lama, dando gripe, dando reumatismo.
A “operação limpeza”

Ele via aquilo e dizia “mas como? Nós estamos jogando nossos irmãos aqui no inferno de lama pra matar outros irmãos!” Ele foi investigar por que tavam brigando, ver se tinha lógica ou não, o lado humano, não aquela ordem de “faça o que eu tô mandando” e o cara tem que matar porque é ordem. Militar não decide, ele cumpre ordem. Matos Costa, indignado com aquilo, fez amizade com os caboclos e entrou pelos sertões, conversa aqui, conversa ali, “o que tá acontecendo com vocês? Por que não resolvem isso aí? Vamos parar com essa guerra”. Aí vinha a história, “pois é, capitão, mas acontece que o coronel fulano me vendeu terra aqui, pagamos tudo com colheita de erva, com trabalho, agora ele chama os exércitos pra nos expulsar daqui”. Ele foi conferindo aqui, conferindo lá. Pois bem, mas não ficou só nisso, tinha mais coisa: derrama de dinheiro falso. “Quem foi que derramou dinheiro falso? Quero ver a nota.” “- Se a gente não recebe, eles impõe o recebimento, a gente tem que receber pra não morrer.” Ele, indignado, começa a conversar e encontra o Gabriel. O Gabriel era irmão da Filhinha, sobrinha do coronel Fabrício Vieira, amante dele, menina nova, bonita, o velho barrigudo, cara sujo, só podia ser pela imposição das armas do próprio tio. Contou pra Matos Costa, por intermédio de Gabriel, deduz-se que ele teve acesso a ela, não diz detalhe, mas a conclusão é lógica, ele um rapaz novo, pinta de galã, nascido em Realengo, no Rio de Janeiro, gostava de poesia, de tocar violão, cantar, se depara com uma situação dessa. A indignação do artista, a indignação do militar, a indignação do brasileiro. Abriu uma sindicância e deduz-se que ele conquistou a garota. Ele conseguiu a nota de compra da máquina de fabricar pinheiro com o tal de João Fagundes, juntou na sindicância, levou pro
Rio de Janeiro, coronel já montou a equipe de capangas, de bandidos pra tirar a vida do Matos Costa. E ele era estrategista, ele foi assessor do Pinheiro Machado na revolução federalista de 93, lá no Rio Grande do Sul. O que ele fez? Botou Vinoto Baiano na frente, que era capanga dele, “você vai lá, conquista lá, apressa a empreitada, Chico Alonso também, e vocês vão cumprir esse papel”, ele deu esquema, montou tudo. Quando Matos Costa chegou, que foi lá na companhia, ele manda atacar e incendiar a madeireira americana, em Calmon. Por dias e noites que iluminou os sertões do Contestado aquelas chamas que subiam verticalmente. No dia seguinte montou a turma, sabia que ele era obrigado ir lá, então ele tinha que pegar o trem e pra chegar passava por São João dos Pobres, e ali ele preparou a tocaia. O trem parou, tinha um cachorro magro e um caboclo lá. “Capitão, os jagunços estão perto.” Ele desceu desarmado, pois era amigo dos caboclos, e naquela hora que ele falou isso era senha pra trucidar. O que aconteceu? Jogou a culpa nos caboclos. Teve repercussão no mundo inteiro e cobriu o fiasco que ele tinha feito, que ele era amigo do Pinheiro Machado, aí encobriu o fiasco dele, mataram o capitão, tiveram que mandar o general pra cá pra acabar com a guerra. Essa é a lógica que você encontra nas entrelinhas da história, aí vale a pena ler, por que isso aconteceu, por que aquilo lá aconteceu, qual a conclusão? E daí o romance dele com Maria Rosa, na verdade houve afinidade, não chegou haver a consumação do romance, porque imediatamente veio a morte dele. Ele se deparou numa madrugada com o pai dela em volta de uma fogueira num dia de frio, cuidando do reduto. Aí ele foi descobrir que era o pai da Maria Rosa. Conversando com ele, levou ele a Maria Rosa pra dialogar com ela e ela era líder. Ele queria acabar com a guerra e tava entrando em contato com outras lideranças pra dar fim na guerra. Tiraram a vida do cara. É pra ver como é a humanidade.
Há versão de que Matos Costa foi morto pelos caboclos.
Foi pelos jagunços dos coronéis, não por aqueles que defendiam as terras, porque ele era amigo dos caboclos, ele se apresentava como vendedor de rapadura, disso e daquilo e levava um brindezinho, uma bala pras crianças.
O senhor conta a história do povo que o senhor conhece e do povo que faz parte da sua família, os seus avós tiveram participação direta no contestado. Como foi?
Perfeito. Alexandre Teles da Rocha veio pra cá, oriundo de Passo fundo e casado com uma índia. Com a revolução federalista, eles vieram para esses campos de Palmas. Na época da guerra, ele ficou do lado dos opressores, como coronel, mas ele não tinha terra ainda, ele conseguiu na base do prestígio que tinha com os seus protetores do governo. Ele requereu junto ao governo enormes quantidades de terra, terras que não teria condições de administrar naquela época e, depois da guerra, entrou a chamada “operação limpeza”.
O que é a “operação limpeza”?
A operação limpeza consistia na apreensão, execução sumária de veteranos de guerra… seculares e remanescentes, quando saíram da região do contestado as forças federais. Ficou a cargo dos governos ajudar na chamada limpeza. Tem um documento com o general Mesquita que declara muito bem isso, da indignação dele contra esse trabalho que envolveu o Exército nacional. Na verdade, foi transformado em bode expiatório da cobiça dos coronéis. Quando saíram as forças federais da região, dada por encerrada a guerra, o resto ficou a cargo dos governos, que não cabe a um general ir atrás, feito capitão de mato do tempo da escravatura, atrás de bandidos, que eles são culpados pelo descuido da educação. Então o governo local criou a chamada “operação limpeza”, que consistia nessa prisão e na execução na frente da família, dizendo “se vocês abrirem a boca, acontecerá o mesmo”. Você pode imaginar o trauma criado na alma das crianças, dos jovens, da família inteira vendo seu próprio líder, seu próprio pai, seu próprio irmão sendo degolado e a ameaça de fazer isso com todos. Isso é mencionado nos livros, mas muito veladamente pelos intelectuais que dão rodeios grandes em volta pra fugir do assunto, mas a verdade foi essa. Então, meu avô, que tinha uma grande fazenda, os caboclos, pra fugir da degola, se viram na fazenda dele. E ele, com o prestígio que tinha, solicitou a polícia. Polícia vinha e se alojava na fazenda dele. Nesse alojamento eles eram tratados com todos os requintes daquela burguesia campesina, digamos assim, e o que aconteceu ali? Ele tinha que dar a orientação aos policiais pra localizar os procurados. Os procurados eram os que iam pra degola. Nesse ponto ele foi muito burro e não se deu conta que os peões pertenciam às mesmas extratificações sociais dos procurados, perseguidos, degolados, gente bem revoltada, porque tinham até parentes envolvidos naquilo. E os peões faziam o quê? Iam lá e avisavam “foge pra esse lado que nós mandamos a polícia pra outro”. Uma vez, duas vezes, três vezes, nada, não conseguiam prender ninguém e nem matar ninguém, e o que fizeram? Quando a polícia ia embora, os sertanejos escondidos, jagunços procurados, os que estavam na mira da degola, esses invadiam a fazenda com o objetivo de matá-lo.
Matar seu avô?
Sim. Ele era o mandante. Mataram um peão dele em cima de uma tronqueira, pularam porteira, a cerca e levou um tiro. E ele [o avô] se assustou e teve que fugir pra Coronel Vivida, naquela região do Paraná, parece que é São Pedro, mas o outro meu avô foi pra Coronel Vivida, tem a família dele até hoje lá. Pois bem, então, este meu avô que estava rico morreu no Paraná pobre por fora e por dentro, o resumo é esse.
Ele fugiu com a família?
Fugiu com a família. Lugar lá de Coronel Vivida, um lugar chamado Barro Preto.
Foi direto pra Coronel Vivida ou ele ficou em outro lugar?
Meu avô paterno, esse foi pra São Pedro, onde ele tinha parente e terras por lá. Tinha os parentes dos Fabricio, que ele também tinha a esposa dele, era Fabricio das Neves, irmãos do José Fabrício das Neves, que é atribuído a ele o assassinato do coronel do Paraná, o João Gualberto.
Quem matou João Gualberto?
José Fabrício das Neves.
Também fugiu pro Paraná?
Esse não, esse ficou aqui. Tem outra história que precedeu nesse combate e com a Revolução Federalista 93, dos remanescentes que eram perseguidos também pela mesma causa de degola. Os que sobraram atravessaram o Rio Uruguai e se infiltraram nos sertões aqui no Oeste catarinense, ali onde tem hoje as margens do Rio Uruguai, onde está Itá, ali eles se localizaram. Tinha um número me parece que de mil pessoas e esse José Fabrício das Neves tinha fama de bandido, porque ele era um líder que já aos 13 anos de idade lutou na Revolução de 93. Ali ele se tornou um líder contra malfeitores que vieram foragidos da justiça, perseguidos pela polícia e atravessavam o Rio Uruguai. Eles estavam livres da perseguição lá no Rio Grande, mas se infiltraram ali, cometiam estupros, assassinatos e ficava por isso. Aí ele juntou um grupo e disse “olha, agora a coisa vai ser assim” e dizem que ele liberou tudo que era bandido que estuprava, que matava sem justificativa e jogava uma pedra no pescoço do cara e jogava no Rio Uruguai. Então passou por bandido quando na verdade não era bandido, era um justiceiro. Se ali estava ausência total do governo, alguém tinha que tomar providências pra defender os indefesos. Ele era considerado bandido, bom, mas então ele estava num terreno que pertencia ao tal de Juca Pimpão que vinha de Chapecozinho até o Rio Uruguai.
Quem esse?
Esse era o donatário dessas terras, era o tal de Juca Pimpão. Era pelo Rio Irani, Rio Jacutinga, até o Rio Uruguai e enormes quantidades de terras, porque ele requereu também era do lado do governo, dizem que ele ia estudar uma forma de enganar os caras. Fez um projeto informal para um reassentamento dessas mil pessoas, trouxe agrimensor, fez mapas, tudo, quando saiu uma comissão pra levar a Palmas o projeto, foram recebidos a bala. Diante disso, voltou pra cá, já era véspera do combate do Irani e já se aliou aqui com o pessoal e diz “esse pessoal vem pra cá, é a continuidade da Revolução Federalista de 93, nós aqui somos alvos de todos os fazendeiros de Palmas” – que era a cidade mais portentosa da época, depois de Curitiba, então ali se concentravam os fazendeiros opressores, os coronéis. A partir dali ele reuniu o pessoal e, quando houve a passagem do Zé Maria, que estava em Taquaruçu, onde era tido como verdadeiro ícone da saúde, do amor, da fraternidade – por exemplo, a frase dele, “quem tem mói, quem não tem mói também, no fim todos ficam iguais”, quer dizer, ele pregava a igualdade. Quando o governo viu aquele homem curar a mulher de um coronel, de Campos Novos, na fazenda dos Padilha, criou uma fama enorme. Aí vieram convidar pra uma festa em Taquaruçu, ali estava a fazenda do Henrique Almeida, adversário político do superintendente de Curitibanos. Então ele mandou chamar, porque ali em pouco tempo ele foi na festa, foi convidado, e quando chegou lá em pouco tempo tinha 300 ranchos em volta dele. Aquele pessoal desesperado, desalojado, escorraçado das margens da estrada de ferro, pelas forças da madeireira americana que foi o presidente de Marechal Lemes pra pedir Exército pra expulsar os caboclos das áreas que foi dado como pagamento, e ele disse que não tinha Exército pra expulsar aquela gente, “monte você um!” Ele montou um corpo de segurança da Lumber, 200 homens armados com armas mais modernas que o próprio Exército brasileiro. Essa gente que estava em torno do Zé Maria era fruto desse escurraçamento. O coronel Albuquerque de Curitiba era compadre duas vezes do governador do Estado e comunica que chamou o monge e o monge não quis vir para seu curral eleitoral, ele denunciou como sendo Novo Canudos. Ali havia um movimento antirrepublicano, imagina, ainda não havia estancado a sangreira de Canudos, como isso repercutiu nacionalmente, e vieram aconselhar o monge pra sair de lá pra evitar derramamento de sangue, porque a polícia vinha ao encalço dele, ele atravessa o Rio do Peixe aqui por Joaçaba, chegou no Irani e encontra aqui o José Fabricio que era amigo dele. O Zé Fabrício já tava revoltado contra aquela perseguição antes, juntou-se a ele pra resistir à polícia do Paraná que veio aqui pra atacar os caboclos. Aliás, veio como caçador e transformou-se em caça, porque eles aqui se prepararam pra enfrentar. Ele tinha três alternativas, o João Alberto mandou uma carta marota pra ele se apresentar, ele reuniu o pessoal e a decisão foi essa, Fabrício gritou “não, se fugir eles pegam, se apresentar eles degolam, vai a Curitiba desfilar nas ruas a marretada”. E a terceira hipótese é a resistência, e aí se deu o combate. Ficaram ali expostos os cadáveres no campo santo e a tropa em fuga deixou apenas uma metralhadora, apenas 40 fuzis e milhares de cartuchos. O resto é consequência disso, a história depois é encheção de linguiça, mas essa foi a causa primeira, essa é a semente da coisa. Com relação ao combate do Irani, em decorrência disso, os meus avôs que estava aqui, um era jagunço e o outro coronel, mas ele tava na fazenda dele, longe daqui, não tinha nada a ver com isso, ele só teve a ver com isso depois que terminou a guerra.
Essa história do seu avô paterno e do seu avô materno, como é o nome dele?
José Alves Perão. Depois mudou pra José Felisberto, aí ninguém sabia dele.
E como é a história do José Felisberto?
Ah, o José Felisberto era o aliado do José Maria, dizem que ele era a terceira pessoa no comando do combate do Irani. Tinha primeiro o José Maria, em segundo lugar o José Fabrício das Neves e o terceiro era o José Alves Perão, avô da minha mãe. Eu vim descobrir isso há pouco tempo, desde criança era proibido falar isso. Meu avô foi perseguido várias vezes, vasculharam a casa dele. Minha avó, a Júlia Olímpia da Silva, essa era uma mulher valente, chegava desacatar a polícia, “pode entrar, pode vasculhar”. Uma vez, segundo testemunho dela própria, ela empurrou ele dentro de um caixão de tábua, desses grandes que servia de banco também, cobriu de lã de ovelha e baixou a cama. A polícia chegou, vasculhou toda a casa, e ele lá dentro. Depois que a polícia foi embora, ele saiu de lá suado, quase sem respirar. Diz que quando passou a espada, a polícia puxou a tampa, viu que era lã e fechou de novo. Você pode imaginar o trauma dessa mulher… minha avó deu de dedo “pode procurar, vocês tão procurando e ele não tá aqui, vocês deram um fim nele, ninguém sabe”. Falava mesmo. Eles viravam todo rancho, a casa, em volta das madeiras e iam embora, era a salvação dele. Aparecia sempre em casa de noite pra pegar boia, revirado, paçoca, galinha caipira.