Ele viveu no meio do matão, tirando sítios junto com seu pai, mas nunca foi de caçar; viveu no tempo de muita briga, mas não aprendeu a brigar; participou da Revolta dos Posseiros, em Francisco Beltrão, mas desarmado; no tempo de bailes e festas, ele preferia ficar em seu rancho fumando seus palheiros; quando ia pra bodega, era pra tomar pinga com os amigos. Homem sossegado, ultrapassou um século de vida.

Ele diz que nasceu em Abelardo Luz (SC), em 8 de novembro de 1911. O referencial de suas memórias sobre esse tempo é difícil comprovar porque ele fala somente do meio rural, ou matagal, onde vivia. Acompanhando seu pai, ia tirando sítios e construindo ranchos sertão afora. Negociava um, abria outro. Assim foi até chegar na futura sede do município de Verê, nos anos 40. Somente se firmou num local quando já vivia por conta própria e comprou um sítio em Boa Esperança, próximo ao Alto Verê, onde vive até hoje.
Gaudêncio conta que não teve pressa para casar. Só teve filhos depois dos 40 anos. São sete, contando um adotivo, o Sérgio Barbosa de Lima, com quem vive. Os outros seis – Juvêncio, Antônio, Catarina, Maria Zilda, Vinil e Amador – são filhos de duas mulheres, ambas já falecidas: Doralina Alves de Assis e Carolinda Barbosa de Lima, esta era parteira.
O filho Sérgio afirma que seu pai sempre trabalhou; parou de ir pra roça faz apenas um ano. Não tem doenças, come e dorme bem. Deita entre 7 e 8 da noite, levanta entre 7h30 e 8 da manhã e faz um sono após o almoço. Passa o dia com o filho e as pessoas que frequentam a bodega que existe na mesma casa.
Sua única deficiência está na audição. Mas falando com tranquilidade, às vezes repetindo a pergunta, e com a ajuda do filho Sérgio, ele entende. E vai respondendo com a calma de quem está de bem com a vida.
JdeB – O senhor está se sentindo bem?
Gaudêncio – Tô. O que me dói é só aqui nos joelhos. Me incomoda. Dia e noite. Espichar e encolher.
Mas deixa o senhor dormir?
Eu durmo sempre.
O estômago tá bom?
Tá bom, como bem. Não tem comida que faz mal. O que vier, eu como! Não tinha canjica e ele (o filho) foi comprar ontem. Aquilo é bom. É uma delícia!
O senhor nasceu em Abelardo Luz? Como era lá?
Ah, mas naquele tempo nem me lembro o que era. Naquele tempo não tinha nome. No interior.
O senhor saiu de lá com quantos anos?
Nem me lembro quantos anos. Daí descemos pro Paraná. E daí viemos morando. Não sei quantas moradias foi feito.
O senhor com seu pai?
Meu pai era Antério Antônio dos Santos. Ele viveu uns 70 anos.
Morreu garoto perto do senhor.
O pai dele morreu por causa de foguete. Terminou as balas do revólver e naquela época ainda soltavam foguete. Foi no Verezinho.
E quando o senhor chegou no Verê?
Nós viemos de Pato Branco pra cá. Quantas moradias! Meu pai trocava, vendia e vinha pra frente. Depois ele faleceu no Verê e comprei aqui. Com 75 ou 76 que a gente veio morar aqui. Só dois moradores.
O senhor conheceu o Joaquim de Matos?
Conheci e negociei muito com ele. Pegava coisarada dele e vendia.
Ele vendia o quê?
Tinha bodega um tempo. Eu ia lá tomar pinga e fazer briquinho.
O senhor vendia milho e feijão?
Naquele tempo não valia.
Fazia dinheiro com o quê?
Com serviço. Tudo quanto é tipo de serviço braçal.
O senhor sempre foi bom no serviço?
Sempre fui.
Sérgio – Um dos que mais trabalhou na região foi ele. Nunca ficou doente. Deu gripe. No hospital nunca foi.
Como era o Joaquim de Matos?
Ele ponhou bodega no Verê, depois que veio morar ali. Tinha o Joaquim, tinha o Lucas, filho dele. Lembro que nós ia tomar pinga na bodega dele.
Não dava briga?
Não, naquele tempo não dava. Pessoal se respeitava muito, mas um tempo andava armado.
O senhor tinha arma?
Nunca usei arma e amizade tinha com todo mundo.
O senhor ia caçar?
Não gostava. Nunca usei arma de fogo, nunca! Tinha muita gente que caçava. Matavam muito tigre, anta, tateto, porco do mato.
O senhor chegou a ver algum tigre por aí?
Vi o barulho só, quando entrei morar aí. Ali no canto da minha terra.
No Verê, o senhor morava onde?
Logo pra baixo, no Verê mesmo. Ali que é dos Moraes.
O senhor tinha casa lá?
Meu pai morava lá e eu morava com ele. O pai fazia roça. Criava porco. Tudo que era bichinho. Às vezes dava de criar (porco) solto e às vezes tinha que fechar. Pinheiro tinha pra fazer cerca.
Por que saiu de lá?
Meu pai fazia negócio. Vendia uma morada e comprava outra. Daí comprou outro aqui no Verê e foi comprar pinga e faziam cancha de carreira, e daí um dia deixou e foram tomar pinga na bodega do Gracioso, cada pouco era um revólver e tiro e tiro. Acabou as balas e foram comprar foguete e depois estourou um foguete. Feriu tudo. Ficou uns 15 dias e acabou morrendo.
E da Revolta de 57 o senhor lembra?
Lembro! Já fazia três anos que morava aí.
Então aquele combate que deu no Verê o senhor não participou e no Alto Verê também não?
Não. Só em Beltrão que nós fomos. Tinha o levante que atropelaram eles. Daí eu tava lá. Tava cheio de gente. Veio o caminhão buscar a gente.
O senhor não tinha arma?
Não tinha. Sem nada. Nem pra fazer defesa. Dava medo. Posemos uma noite e no outro dia fomos embora. Foi feito o levante dos jagunços, mas daí viemos pra casa.
Alguém chegou a vir aqui ameaçar o senhor?
Tinha gente que ameaçava. Eu trabalhava na beira da estrada que vai pro Progresso, e cruzavam os jagunços lá, mas eu me dava com todos eles.
Sempre foi muito de ter amizades e nunca foi de brigar.
Nunca fui de brigar, nunca! Só amizade. Bebia pinga em todas bodegas e era tudo amizade.
Ainda hoje bebe pinga?
Hoje não. Parei de fumar e tomar pinga. Fumava paiero. Fazia fumo de corda. Plantava, fazia fumo e fumava.
Fazia o preto ou o amarelinho?
Médio, meio amarelo. Mais era o fumo preto. Vendia algum quilo. Todo mundo fazia. Era viciado em fazer.
O senhor lembra da primeira capela do Verê?
Me lembro. Ia sempre lá. Depois que foi construído aqui. Naquele tempo o padre andava a cavalo e vinha visitar as igrejas a cavalo.
O senhor lembra de algum padre daquele tempo?
Mandei batizar um guri meu e eu acho que vinha de Barracão.
Onde fizeram a primeira capela do Verê?
Ali, quase no mesmo lugar. Lá no Verê é no mesmo lugar.
O senhor dançava nos bailes?
Nunca fui farrista. Só trabalhava e ficava por casa. Eu gostava do álcool e do paieiro. Farrista nunca fui.
Fazia porre?
Às vezes pegava. De ficar caído.
De ir pra casa cambaleando?
Medindo a estrada [risos].
E esse peru é seu companheiro?
Sérgio – Às vezes eu saio e ele tenta entrar no quarto pra ficar perto do pai na cama.
O senhor era muito namorador?
Não, não ia em baile quase.
Quantos anos o senhor tinha quando foi pai a primeira vez?
Ah, tinha uns quarenta ou cinquenta anos.
Então, o senhor gostou do Verê que não saiu mais daqui?
Gostei. Faz muitos anos que moro no município.
O senhor é mais antigo?
Agora sou o mais antigo.
Sérgio – Vizinhos só tinha dois homens. Conhece os Moraes?
Sim.
Vendemos a terra pra ele. Daí meu pai comprou aqui no Alto Verê e depois ele faleceu ali e comprei aqui e tô aqui há setenta e poucos anos. Comprei oito alqueires.
E hoje o senhor tem quanto?
Sérgio – Hoje ele repartiu com os filhos e deu essa parte pra mim. Aqui é um alqueire e meio.
Tem quantos netos?
Nem sei contar quantos.
Sérgio – Dois em Curitiba. Dois em Dois Vizinhos. Dois em Francisco Beltrão. A Suzana tem um. O Nego tem três, o outro tem dois e acho que só. Amador tem dois. Acho que dá uns doze, treze.
E bisnetos?
Sérgio – Bisnetos acho que tem dois ou três. A gente não conta.
Os filhos estão todos vivos?
Um é morto. Naquele tempo não tinha nem médico.
Como fazia quando dava uma doença?
Tinha curador, aqueles que a gente pegava remédio do mato e tomava. Tudo erva que é o remédio. Conforme a doença é o remédio.
Até hoje o senhor faz isso?
Tomo! Se puder ir buscar, eu tomo.
O senhor conheceu todos os prefeitos do Verê?
Conheci.
O senhor lembra do Paggi?
Lembro. Gostei muito do velho Paggi. Ele morava aqui no Verezinho.
Ele também receitava muito remédio, né?
Sim, ele receitava. Era um homem muito bom.
E agora o senhor tem saído? Vai na capela?
Sérgio – Não, bem pouco. Uma vez por ano. Dá 800 metros. O carro tá estragado e aí a gente não vai. De moto não tem como.
O senhor sempre foi magro?
Toda vida fui encorpadão. Peso 78/84 quilos. De altura, um e setenta e três.
O pessoal contava muita história do tempo do matão?
Eu não saía de casa. Só trabalhando. Sempre fui caseiro.
Mas se preservou.
Sérgio – E agora cuidando dele. Não posso sair de casa. Não tenho liberdade de arrumar uma guria e namorar e trazer pra viver aqui comigo porque não tem. Tem que limpar e fazer comida. Tem uma mulher que limpa nas sextas.
Por que o senhor escolheu o Sérgio pra morar?
Se acertamos muito. Ih! Todos moram na cidade e eu não sou da cidade, sou do interior. Me criei nesses mato e nesse sertão.
O senhor reza?
Rezo. Nossa Senhora Aparecida
O senhor não toma mais pinga, mas toma água e o que mais?
Chimarrão, suco e água.
Toma todo dia?
Gaudêncio – Todo dia. A gente, antigamente, era chimarrão.
Sérgio – Chimarrão só de manhã cedo agora.
Chimarrão o senhor toma desde novo?
Desde novo, cedo. Aprendi a tomar chimarrão novo.
Vocês mesmo faziam a erva?
Socada no pilão. Nós cansamos de socar dois, três quilos de erva pra tomar. Hoje é tudo comprado e tudo no dinheiro.