O cabo João Cunha trabalhou em vários municípios do Sudoeste ao longo de sua carreira como policial militar. Chegou em Pranchita no ano de 1959, dois anos após a Revolta dos Posseiros. Ele e seus colegas de corporação enfrentaram ainda problemas de terra na fronteira com a Argentina.
Depois de passar por várias cidades da região, decidiu se fixar, juntamente com seus familiares, em Marmeleiro.
Nesta entrevista, Cunha conta as dificuldades que enfrentou como PM, o trabalho de enfermeiro; fala de um confronto com bandidos em que saiu ferido e dos problemas da violência nas décadas de 60 e 70.
Ele conta também sobre os 60 anos de casamento com dona Emília, completados ontem. O casal tem quatro filhos: Marina Nicéia, professora, reside com os pais em Marmeleiro; Percy, professor em Marechal Cândido Rondon; e os outros dois filhos moram em Curitiba: o coronel Osíres, da PM, e o desembargador Leonel, do Tribunal de Justiça do Paraná.
JdeB – Que dificuldades o senhor encontrou numa região que também foi um dos focos da Revolta dos Posseiros?
João Cunha – A questão de terras, do Governo do Estado, na época o Moisés Lupion. Eu fui direto de Curitiba pra Pranchita. A situação era bem precária, não tinha destacamento lá embaixo, não tinha casa pra acampar, só em Santo Antônio. Passado um tempo, devido às dificuldades de muita gente acidentada, o governo instituiu o Hospital Militar de Pranchita. Eu trabalhei como enfermeiro. Após este tempo, foi terminado o hospital e nós fomos destacados pra Ampere, nos anos 60. Eu fiquei em 61 em Ampere, Santa Izabel mais um ano, e em 62 nós viemos pra Marmeleiro. No fim de 62 nós fomos pra Curitiba a fim de prestar concurso pra enfermeiro. Em março de 63, voltei novamente pra Santo Antônio, Pranchita, e após isso eu vim pra ficar em Marmeleiro.
JdeB – Como o senhor reagiu, na época, com a notícia de que viria pra Pranchita, em 1959?
João – Naquela época não tinha nem conhecimento do que era polícia. Nós ficamos prontos num dia, e no outros dia destacaram nós pra Pranchita, nós nem sabia onde era.
JdeB – Qual a primeira impressão que teve da fronteira?
João – A impressão que eu tive é que nós tava mal acompanhado, porque não existia nada, o pessoal estava todo foragido lá pra Argentina. Tava mal porque não tinha comida ali pra todo o pessoal de lá. A alimentação vinha toda de Curitiba. Naquele tempo não tinha viatura, era tudo de pé no chão. Nós só ia pro interior a pé, armado com fuzil, com mosquetão. A dificuldade mesmo era sobreviver naquela época, por causa da revolta com os caras em Pranchita, o pessoal estava fugindo tudo pra Argentina. Lá não tinha… do hotel ali, não tinha meios de dar alimentação pra nenhum soldado do nosso lado. A gente esperava, vinha a alimentação de Santo Antônio porque tinha que alimentar primeiro o pessoal de Santo Antônio e depois vinha pra nós. Quanto ao serviço, como eu já falei, era muito precário porque era todo mundo a pé, não tinha viatura, não tinha nada. Se saía, às vezes o dia todo pro interior, voltava à noite, às vezes pousava fora de casa porque não tinha condição de ir e voltar no mesmo dia. Após esse tempo, terminou o hospital e nós fomos transferidos pra Ampere, nos anos 60.
JdeB – Que tipo de problemas ocorriam em Santo Antônio e Pranchita naquela época?
João – Era só pra dar segurança pros colonos. A única coisa que a gente fazia era dar segurança, e era um serviço burocrático. O pessoal pistoleiro que vinha de outros estados que atuavam, então cada passo eles estavam invadindo as terras. Mesmo depois da Revolta. Segundo informações, era o pessoal aí da Citla, que vieram de Londrina e de outras partes.
JdeB – E depois de 57 chegou a ocorrer alguma morte?
João – A primeira vez que cheguei em Pranchita, quando nós chegamos no destacamento, havia três corpos encostados no destacamento, já de serviços de pistoleiros daquela região, mas com o tempo foi normalizando tudo, a polícia também começou a entrosar com o pessoal ali, e o pessoal tava todo meio revoltado, não queria aceitar, e depois foi tudo bem, acabou-se os crimes, acabou-se a invasão de terra, a gente ficou só guarnecendo.
JdeB – Os pistoleiros andavam com revolver e o que mais?
João – Eles tinham também umas armas pesadas lá e eu não cheguei a ver o armamento deles, mas, segundo consta, eles tinham revólver, tinham muito facão, tinham pistola, tinham Winchester.
JdeB – E como era o relacionamento da PM com os agricultores?
João – Foi bom, eles entrosaram com nós, que nós começamos trabalhar e visitar os colonos, porque também nós fazia visita pros colono, eles confiavam em nós, nós que começamos a dar segurança.
JdeB – O pessoal doava alimentos pra vocês?
João – No começo não. Depois, passado um ano, eles começaram a servir, trazer carne e tudo quanto era mantimento pra nós, porque era muito pequeno o contingente – 15 soldados, um subtenente, cabo e sargento – e a gente recebia tudo de Curitiba.
JdeB – Que tipo de serviços que se fazia no hospital? Era só pra população?
João – Pra Polícia Militar e principalmente pra população, e o único hospital que tinha era em Santo Antônio, mas era um hospital pequeno. Então, era nós aqui do Brasil e o pessoal da Argentina, vinham todos ali no nosso hospital.
JdeB – E era serviço gratuito?
João – Não, era hospital particular. Depois que passou pra Polícia Militar, mas era cobrado, porque os médicos vinham de fora. O hospital era numa casa de madeira. Uma casa grande, e tinha oito, dez quartos, sala de cirurgia, sala de curativos; era bem equipado.
JdeB – Que tipo de problemas eram mais comuns na população?
João – Houve muitos serviços de Meningite, houve muitos casos de paralisia, teve caso de cirurgia de fraturas, uma porção de cirurgia em geral.
JdeB – As pessoas corriam muito para o hospital.
João – É claro que é outra querência onde nasceu a amizade entre a Polícia Militar e a Polícia Civil, conseguiu porque vinha todo mundo procurar o hospital e com isso nós ia entrosando com o pessoal da colônia.
JdeB – O senhor fez o curso de enfermagem em Curitiba, ficou quase dois anos. O que motivou o senhor a fazer este curso? Era só por necessidade?
João – Não, é porque não existia enfermeiro. Então, como que aplicava injeções, o médico falou: “Vai fazer um curso, e você vai voltar pra cá trabalhar comigo”. E eu trabalhava muito bem com serviço de enfermagem, eu aplicava injeção de qualquer tipo. Então eu fui fazer porque não tinha enfermeiro pro hospital, só medico que tinha que fazer todo o trabalho.
JdeB – O que levou o senhor a seguir a carreira militar?
João – Eu gostava de servir o Exército e me dei muito bem como soldado. Eu cheguei na região e tinha pouco trabalho também onde eu morava (Teixeira Soares). A critério do comandante de destacamento da minha região, fui encaminhado pra Curitiba e entrei na Polícia Militar.
JdeB – Por que o senhor decidiu vir morar em Marmeleiro?
João – Foi o seguinte: eu vim de Santo Antônio e parti pra Pato Branco, de Pato Branco me mandaram aqui pra Marmeleiro e aqui eu estava com os filhos estudando, eles começaram a estudar e eu achei que não devia ficar rodando de uma parte para outra, já que não era mais aquela época que a gente tinha que ficar um ano em um lugar e ter que destacar em outro destacamento. Então firmei aqui, comprei lote, fiz a casa toda e os filhos que estavam estudando mantive aqui até hoje.
JdeB – Como era a cidade? A questão da violência?
João – Bastante violência, muita gente armada. (Teve um caso em que…) deu tiro pra tudo quanto foi lado. Nós viemos aqui a primeira vez pra manter, cuidar do candidato a prefeito, o primeiro candidato a prefeito de Marmeleiro, que era o Assis Bandeira.
JdeB – O senhor disse que em um ano pacificou, é isso?
João – Sim, mas é que aqui tinha um destacamento muito grande, nós tínhamos um destacamento com aproximadamente uns 20 soldados. Tinha destacamento aqui, tinha destacamento lá em Tatetos; tinha destacamento em Rio Verde, tinha lá em cima no divisor de Santa Catarina, sei que era grande. E esses 20 e poucos soldados era só aqui, o resto estava no interior.
JdeB – E as condições de trabalho em Marmeleiro?
João – Eram boas, porque nós não saía muito pro interior.
JdeB – Já tinha viatura?
João – Não, não tinha viatura nenhuma. Quem dava viatura sempre aqui era o prefeito. O prefeito cedia a viatura toda vez que tinha que ir pro interior. A gente saía com um jipe e uma rural.
JdeB – E o pessoal recebia de que jeito vocês?
João – O pessoal respeitava porque tinha medo, porque naquele tempo a polícia era severa, não é que nem hoje que o pessoal tem liberdade, sai de viatura, os comandantes já não têm mais aquela hierarquia da nossa época, então tudo favoreceu.
JdeB – Um dos problemas na fronteira, hoje, é a questão do tráfico de drogas, de passagens de cigarros contrabandeados, lança-perfume. Na época o problema era só bandidagem?
João – Era só isso. Esse negócio de drogas na época nem ouvia falar. Não existia esse negócio de droga, de contrabando…
JdeB – O senhor já veio casado e a sua esposa acompanhou o senhor, por todos os municípios que o senhor passou?
João – Do começo, até agora.
JdeB – E como foi o nascimento do seu filho, o Percy? Dizem que foi um acontecimento histórico para a época.
João – Minha mulher ficou muito doente e não tinha outro meio, tinha que fazer essa cirurgia, mas como não existia médico naquela época, eles tiveram que pegar um médico de Curitiba, lá do Hospital Militar. Chamava-se dr. Heitor Carlos Moreira, grande médico. O Percy nasceu prematuro, e o médico veio de Curitiba pra fazer essa cirurgia porque não existia médico pra esse tipo de tratamento. E fez a cirurgia, graças a Deus ele viveu, e tá hoje um baita dum rapazão, casado, mora lá em Marechal Cândido do Rondon, é professor.
JdeB – O senhor e a dona Emília estão completando 60 anos de casamento. Hoje em dia a gente vê muita separação de casais. Como é conviver com outra pessoa durante 60 anos?
João – Muitos nem acreditam, mas nós estamos completando 60 anos de casados. Graças a Deus tudo bem, minha mulher é mulher séria, é direita, às vezes devo muito à minha companheira, porque ela sempre incentivou, sempre fez questão de me ajudar em qualquer situação. É o respeito, é o carinho, é o amor que a gente tem um pelo outro. Então, tudo isso une, e hoje estamos com essa idade e estamos casados e muito felizes.
JdeB – Em 28 anos de Polícia Militar, teve um momento que o senhor passou por dificuldades, foi ferido.
João – Aquele foi no… não tinha hotel, e quando nós fomos cuidar, entramos e os caras nos receberam a bala, e como a gente não estava preparado pra aquele serviço, aconteceu esse acidente, mas não foi coisa grave (o fato aconteceu em Ampere). Eram bandidos que se infiltravam na região.
JdeB – A sua aposentadoria foi compulsória, o senhor não pediu, após 28 anos, o senhor não queria se aposentar?
João – Não. Eu podia trabalhar muito ainda, podia trabalhar até hoje, prestar muito serviço, mas como a idade chegou, 56 anos da compulsória, então não teve jeito, tive que me aposentar.
JdeB – E hoje como o senhor vê a Polícia Militar, muitos reclamam que tem que ter mais equipamentos modernos, mais viaturas. Como o senhor vê o pessoal falando isso hoje, comparando com o passado?
João – Pra você vê como que são as coisas. Na nossa época se caminhava o dia inteiro a pé atrás de bandido, no sertão, no mato, e hoje em dia tem uma liberdade tremenda; eles têm carro, têm viatura, têm tudo, têm armamento bom. Nós, naquela época, saía de mosquetão e aquele mosquetão antigo ainda, não era armamento de segurança. Hoje não, hoje tem tudo, tem metralhadora, tem fuzil, eles têm todo o armamento, não andam a pé, todo mundo de viatura, os oficiais são muito bons, são muito amigos dos soldados. Naquela época não era assim, a hierarquia militar era dura, a disciplina também era muito rígida, então o cara, pra ser soldado, tinha que ter muita coragem e muita fé pra poder ficar, senão não ficava. Hoje, é uma beleza, a Polícia Militar tá bem equipada, organiza bons treinamentos, o salário tá bom. Não vai dizer que é ruim porque não é, o salário tá bom, há amizade entre os policias, não tem aquela rivalidade.
JdeB – E a questão da pobreza e do medo?
João – A pobreza lá tava bastante grande, porque ninguém poderia trabalhar naquela época, todo mundo tinha medo, as pessoas nem saíam de casa. Quando a gente chegava, às vezes estava tudo fechado. Quando viam a polícia chegar, as pessoas corriam e se fechavam, nem saíam pra fora de medo. Mas com o tempo foi normalizando tudo e foi tudo acertado com a polícia militar, e correu tudo muito bem. Mais tarde eles traziam alimentação pra polícia, tudo que era preciso eles traziam, mas sem pagamento.
JdeB – E a história daquele homem que levou uma facada e ficou com as tripas de fora?
João – Em Rio Verde houve uma briga, e o elemento chegou aqui em casa com as tripas de fora da barriga. Ele levou uma facada na barriga e pediu por socorro. Como nós não tinha nada aqui, pedi pra família me dar uma bacia pra por os intestinos do elemento dentro daquela bacia e mandar ele pro hospital, que era o hospital Santini aqui em Marmeleiro. E ele sobreviveu. Pra você vê, com tudo aquilo, sobreviveu.
JdeB – E era comum o senhor receber as pessoas em casa como policial?
João – Era, eles corriam tudo aqui. Em vez de eles irem na delegacia, eles vinham aqui em casa porque eu sempre orientava as pessoas. Os que me conheciam, corriam sempre aqui, depois iam lá pra delegacia.