Passados 60 anos entre um caso e outro, as similaridades surpreendem.

Todo caso de estupro causa comoção, mas alguns ganham mais visibilidade na mídia, principalmente por causa das evidências e do seu desfecho. Está sendo assim com a jovem Mariana Ferrer, que comprovadamente foi drogada com “boa noite cinderela” e abusada sexualmente, em dezembro de 2018, mas o réu foi absolvido. Na época, a blogueira tinha 21 anos e era virgem. Não bastasse, ela foi humilhada em audiência pelo advogado do acusado, como se ela tivesse planejado o estupro para se promover. “Primeiro, estupra-se o corpo. Depois, a alma e a reputação. Até não existir mais nada. É um modo de calar futuras denunciantes”, escreveu Fabrício Carpinejar, poeta e cronista brasileiro.
Os eventos marcados pela imprevisibilidade mobilizam a sociedade e contam com ampla divulgação da imprensa. Esse caso traz comoção e grande repercussão, assim como aconteceu com a estudante Aída Curi, em 1958, que sofreu uma tentativa de estupro e foi assassinada; guardam-se as devidas proporções, uma vez que Mariana está viva e Aída, não. Na noite de 14 de julho de 1958, Aída Curi, 18 anos, foi jogada de um prédio de 12 andares em Copacabana, no Rio de Janeiro, iniciando um caso que, passados 62 anos, não foi solucionado.
O evento foi coberto pela principal revista daquela época: O Cruzeiro, com o jornalista David Nasser, que chegou a criar uma briga pessoal com os envolvidos no crime. A exemplo da indignação que se vive hoje, com a diferença de que há liberdade de opinar através das mídias sociais, algo impensado há pelo menos 20 anos.
A mídia também se aproveita de fatos assim. O sensacionalismo, por exemplo, já vem de algum tempo, basta observar a manchete de 21 de março de 1959: “David Nasser enfrenta o padroeiro dos tarados” e a matéria com o título: “Ronaldo, absolvido pelo facilitário”. Nessa fotorreportagem, há 20 fotos de Indalécio Wanderley e o texto é de David Nasser, que ironiza a postura do juiz Souza Netto e confirma assumir maior agressividade em suas matérias. O jornalista questiona: “O juiz Souza Netto, justificando a sua sentença absurda, afirma (baseado em quê?): ‘Ronaldo deu um ligeiro tapa, Meritíssimo, quase fraturou o maxilar da moça e lhe ensopou o lenço de sangue. Juiz Souza Netto, afinal, o senhor tem filhas ou não?”.
Erro de julgamento
O caso de Aída Curi demonstra o desprezo e o abuso contra a mulher. Conforme tal reportagem, criminalistas julgam a sentença errada sob todos os pontos de vista jurídicos. Segundo provas da perícia, ela foi jogada ou forçada a jogar-se de um edifício da Avenida Atlântica. O Brasil é marcado por vários crimes desse tipo na década de 1950, quando vigorava uma rígida moral sexual. David Nasser remete aos bons costumes, quando destaca que Aída morreu virgem, “para legar um exemplo”. Por que a virgindade é um “objeto de valor”? Será que, passadas seis décadas, as mulheres têm liberdade sobre o próprio corpo?
Todos os indícios de que foi uma tentativa de estupro seguida de assassinato, e não um suicídio, foram desprezados pelo júri. A reportagem de O Cruzeiro demonstra que muitas das provas foram plantadas pelos próprios assassinos. Em todo o processo, os acusados procuram desmoralizar a vítima.
David Nasser segue afirmando que falsas testemunhas, chantagens, manobras de advogados, insultos dos advogados de defesa e ameaças de morte não seriam suficientes para afastar a reportagem da linha traçada, que é o julgamento daqueles que mataram Aída.
Mesmo sem a elucidação completa do fato, jornalistas como David Nasser se empenharam em publicar o máximo possível de provas que confirmam o assassinato. Da mesma forma que em 1958, mulheres continuam sendo “queimadas” publicamente e as leis são moldadas conforme interesses financeiros.
No caso de Mariana, o Portal Intercept, que deu visibilidade ao fato, cunhou o termo “estupro culposo”, nunca usado até então: “Segundo o promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto intenção de estuprar – ou seja, uma espécie de ‘estupro culposo’. O juiz aceitou a argumentação”.
Uma charge de Nando Mota resume o resultado do julgamento: “Estupro culposo é quando não há intenção… de culpar o estuprador!”.