19.4 C
Francisco Beltrão
domingo, 25 de maio de 2025

Edição 8.211

24/05/2025

Mulheres crescem em aplicativos de transporte e mudam cenário da mobilidade urbana na região

Elas são 23% das motoristas do aplicativo em Francisco Beltrão e encontraram na renda extra uma profissão para se dedicar.

Gabriela Kutchma tem 23 anos e há um ano largou a escola em que trabalhava para se dedicar à profissão de motorista de aplicativo.

A chegada da pandemia mudou a rotina da pedagoga Gabriela Kutchma, de 23 anos. Já em março do ano passado, não ia mais à escola, que suspendeu as atividades presenciais para conter o avanço da doença, trabalhando de forma remota, em casa. Reclusa, permaneceu isolada por 30 dias, até que optou por uma renda extra e se inscreveu em um dos aplicativos de mobilidade urbana cadastrados em Francisco Beltrão. Mas o que começou para complementar a renda é hoje sua única profissão: Gabriela demitiu-se da escola e dedica 12 horas por dia como motorista de aplicativo.

“Eu não imaginava me tornar motorista de aplicativo. Tinha meu carro, mas nunca me passou pela cabeça. Eu sempre pensei que estaria dentro de uma escola. Sempre. Mas isso é legal porque faz você sair da sua zona de conforto, sabe? Isso te faz mudar. Tu vê que não é porque você se formou naquilo que você vai sair da faculdade e que tu vai direto na profissão dos sonhos. Não é assim. A gente tem que passar por etapas. E essa tem sido muito legal. Eu tô gostando bastante. Já faz quase um ano que estou no aplicativo”, diz.

Gabriela não é a única. Segundo dados levantados pela reportagem em seis aplicativos de mobilidade urbana disponíveis em Francisco Beltrão, as mulheres são 23% das motoristas – dois aplicativos não tinham dados locais, apenas nacionais, e um não respondeu até o fechamento da edição. Embora a maioria ainda seja masculina, a ascensão delas é destacada pela gerente administrativa do Garupa de Pato Branco, Eliane dos Santos, de 33 anos, que deixou de ser motorista para se tornar gerente do aplicativo no município.

- Publicidade -

Ela começou como motorista, assim como as demais, para complementar a renda. Na época, em 2019, vendia produtos de cosméticos e se cadastrou no aplicativo sem muitas pretensões, após sugestão da irmã. Em apenas cinco meses no aplicativo, ela passou de motorista para gerente administrativa, e percebeu nesses dois anos o aumento das mulheres no serviço.

“No escritório percebi que havia poucas motoristas mulheres. E aos poucos vieram cada vez mais. Hoje, há muito mais procura das mulheres para trabalhar do que quando eu comecei no Garupa. Elas estão se sentindo mais seguras que antigamente”, avalia.

Independência financeira
Segundo duas pesquisas realizadas no Mestrado em Administração do Centro Universitário Unihorizontes, o exercício da profissão de motorista de aplicativo por mulheres constitui uma forma de independência feminina nas dimensões social, econômica e cultural, uma vez que a atividade permite romper preconceitos e estruturas sociais.

Ivani de Fátima Bueno, de 45 anos, encontrou no aplicativo o trabalho ideal: “Hoje consigo fazer meus horários.”

As duas pesquisas qualitativas foram desenvolvidas por alunas do programa de Mestrado da instituição e foram coordenadas pela professora doutora Marlene Catarina de Oliveira Lopes Melo. Foram entrevistadas 11 mulheres motoristas de aplicativos de mobilidade urbana na região metropolitana de Belo Horizonte.

O primeiro estudo buscou compreender a percepção das mulheres quanto às implicações das relações de gênero na atuação profissional de motorista de aplicativos de mobilidade urbana no contexto da economia compartilhada. De acordo com os resultados, as mulheres se identificam com a profissão, que anteriormente era tida como inadequada para elas. Ao dirigir por aplicativos, a mulher expande sua inserção em mais uma área de trabalho de predominância masculina.

O levantamento evidenciou que mulheres possuem características que facilitam sua inserção neste meio, como serem “mais atenciosas”, “mais pacientes”, “mais gentis”, “mais sensíveis”, “mais cautelosas”, traços que são relacionados ao estereótipo feminino e que as favorecem na execução da atividade.

“Um aspecto importante destacado pelas entrevistadas foi quanto à necessidade de mudar o comportamento para atuar como motorista de aplicativos. Algumas mulheres indicaram que tiveram que ficar mais sérias para evitar avanços indesejados por partes de clientes”, conta Marlene Catarina. “A falta de segurança é uma questão percebida pelas entrevistadas como algo cultural, já que o Brasil é um país carente de segurança pública. Elas acreditam que correm mais riscos como motoristas devido à relação de poder do masculino sobre o feminino”, enfatiza.

O segundo estudo teve o objetivo de analisar como as relações de gênero e as particularidades da cultura brasileira são percebidas por essas mulheres motoristas de aplicativos de mobilidade urbana em sua atuação profissional e no ambiente de trabalho. A pesquisa verificou que o ambiente de trabalho de motoristas de aplicativo ainda é masculinizado, o que, de certa forma, revelou-se como obstáculo em sua atuação profissional.

“Apesar disso, as motoristas participantes não se enxergaram ou se descreveram como vítimas de um modelo hegemônico de dominação masculina, mas como mulheres confiantes, boas motoristas, em busca de independência financeira. Essas mulheres podem ser vistas como sujeitos de transformação social e cultural, agentes de suas vidas e construtoras de sua própria realidade”, explica a professora.
Entre os fatores que levaram as mulheres participantes a optar por essa modalidade de trabalho está a crise econômica, a facilidade de adesão, a flexibilidade de horários e o fato de a atividade ser individualizante. O estudo sugere também que o grau de escolaridade das entrevistadas (oito delas com curso superior completo, duas com curso superior incompleto e uma com ensino médio) pode ser um fator de emancipação, já que a educação confere às mulheres maior liberdade de decisão e de atuação nos diversos campos sociais.

 

Autonomia para ser mulher
Há seis anos, quando nasceu a filha mais nova de Ivani de Fátima Bueno, de 45 anos, a então vendedora sentiu que precisava de autonomia. Embora tenha se formado Bacharel em Direito, ela nunca prestou o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e, por ser mãe solo, não podia parar de trabalhar, ao mesmo tempo que precisava parar de trabalhar para cuidar da pequena.

A primeira alternativa foi abandonar as vendas, já que não conseguia manter com o salário a casa e mais alguém que pudesse buscar e levar a criança na creche ou ficar com ela na sua ausência, e fazer um curso de saboaria. Ivanir acreditava que com sabonetes artesanais conseguiria ter a autonomia do tempo, administrar as contas e ainda dar a atenção necessária aos primeiros anos da filha. Foram dois anos vivendo dos sabonetes. Mas quando as contas não começaram a fechar é que ela se cadastrou no aplicativo Garupa.

Era em 2018 e por um tempo tentou unir as duas funções. O aplicativo, recém chegado na cidade, não tinha muita adesão, então ela não poderia parar. Durante o dia, tentava garantir as corridas e, à noite, trabalhar com os sabotes. Mas uma vez aquecida a glicerina é preciso moldá-la, e nesse tempo não poderia sair.

Foram semanas dormindo às 3h e acordando cedo. Uma rotina exaustiva que lhe fez abrir mão dos sabonetes e se dedicar apenas ao trabalho de motorista.

“Hoje consigo fazer meus horários, quando minha filha precisa de mim eu estou disponível e não preciso dar satisfação pra ninguém, sendo um trabalho prazeroso e do qual eu tenho ânimo de fazer”, conta. “Eu acho essa forma de trabalho perfeito para mulheres, porque infelizmente ainda enfrentamos desafios em relação a um espaço no mercado de trabalho. A realidade é que muitas mulheres ainda recebem menos do que o público masculino, mesmo que executem as mesmas tarefas. Já aqui na mobilidade urbana não acontece essa desigualdade que desfavorece as mulheres em relação aos colegas homens. Sem contar que ajuda muito nós mulheres desempenhar nossa função de mãe, função essa que amo!”

 

Aplicativos oferecem recursos em casos de assédio

Um dos fatores que geralmente norteiam a escolha de mulheres por outras motoristas mulheres é o assédio. Foi o que levou Rose*, chamada assim pela reportagem, pois preferiu manter o anonimato, a optar por viagens apenas com mulheres, há dois anos. Em uma das voltas da universidade que fazia à noite, em uma semana de provas e no dia do seu aniversário, foi constantemente chamada para sair e tomar uma cerveja pelo motorista, para quem ela contou estar completando anos.

“Ele insistiu muito, muito, e eu não estava sabendo como dizer não. Eu tentava desconversar, puxar outro assunto, e ele voltava a dizer que queria sair, me levar beber, tomar uma cerveja. E eu não estava confortável com aquilo, não estava sabendo dizer não porque estava com medo. E aí meu medo aumentou quando ele me trouxe pra casa. Eu pedi para ele me deixar uma quadra antes. Eu fazia isso com todos os motoristas porque ficava com um pé atrás. E acho que ainda bem que eu pedi aquilo, porque naquele dia ele parou o carro e puxou o freio de mão e ficou puxando conversa, querendo me levar pra sair. Quando ele puxou o freio de mão eu fiquei muito assustada. Porque eu não queria ser mal-educada e sair correndo”, lembra.

Depois de pegar uma corrida com Ivana, Rose foi motivada a acionar o aplicativo Garupa, que possui uma central para atender esses casos. Segundo ela, o respeito com o qual foi atendida a mantiveram fiel ao aplicativo, que também oferece a opção do Garupa Mulher ou priorizar motoristas mulheres, o que foi escolhido por Rose. Só recentemente é que ela voltou a andar em veículos com motoristas homens.

Aliança falsa

Gabriela Kutchma usa uma aliança falsa na mão esquerda: “Depois que eu comecei a trabalhar com aliança eles não assediaram”.

Embora nenhuma das motoristas ouvidas pela reportagem disse ter passado por estas situações, cuidados foram tomados para evitar esses conflitos – ainda que nenhuma situação de violência ou assédio seja culpa da mulher.

Gabriela, por exemplo, adotou o uso de uma aliança dourada na mão esquerda. Ela não é casada, mas tem um namorado com quem não usa aliança de compromisso. A adoção da joia, um presente antigo dado pela avó, foi estratégica e, segundo ela, trouxe resultados positivos.

“Depois que eu comecei a trabalhar com aliança eles não assediaram. Pra tu ver como eles são machistas, né? Por que eles olham e pensam: ‘Ela tem proprietário, então não vou mexer’. Mas quando você demonstra ser solteira você sofre mais assédio do que uma mulher comprometida. Hoje é muito difícil eu sofrer assédio. Raramente um elogio que outro, mas acaba ali”, aponta.

Em uma outra situação, há seis meses, Gabriela disse que atendeu uma chamada para uma corrida de Beltrão a Enéas Marques. Ao chegar, sentiu um forte cheiro de álcool no passageiro e acionou o suporte, um recurso oferecido pelo aplicativo chofer 46 projetado para situações de insegurança. Ao selecionar esta opção, a central do aplicativo, respondida em Beltrão por Angelo, fica em contato com a motorista via satélite, rastreando a viagem. Em casos mais graves, um botão do pânico pode ser apertado, notificando os motoristas mais próximos sobre uma situação de perigo.

Após falar com Angelo, Gabriela manteve a corrida, mas ao chegar em Enéas o destino dado pelo passageiro não existia. Segundo ela, ele insistiu para que ela seguisse por uma estrada de chão.

Insegura, sobretudo após pedir a pessoas em um posto de combustível sobre o endereço e ouvir que ele não existia, seguiu mesmo assim. Em determinado trecho, a central do aplicativo entrou em contato e pediu para ela voltar, pois a partir dali ela sumiria do sinal de rastreio.

“E ali, sabe, me deu um negócio. Tirei as coisas [do passageiro] do meu carro e disse: vamos acertar a corrida e eu vou embora”, lembra Gabriela. O homem, conta, hesitou em deixar o veículo e em pagá-la. Com isso, Gabriela entrou no carro e retornou a Beltrão sozinha.

“Mas ali Deus cuidou. Uma luz veio assim e eu liguei pro Angelo [suporte] e expliquei a situação. Tentaram localizar o cara, mas o cara sumiu no mundo. Ficou lá e não voltou mais. E essa foi a vez que eu mais tive medo. Mas depois disso tu aprende a lidar com a situação. Não faço corrida para fora com cliente que não conheço. Só faço para cliente que sei onde mora, que sei quem é. Então assim tu acaba tendo mais cautela”, diz.

 

[relacionadas] 

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Destaques