Boas histórias do seu Murilo. Ele era funcionário federal, o trabalho variava conforme o tempo. Se fazia sol, tinha que atender toda aquela gente que chegava diariamente e ele, embora não recebesse hora extra, trabalhava até aos domingos. Se chovia, caminhões não podiam transitar pelas estradas e aí vinham as broncas. Alguém tinha que executar a ordem de segurar os caminhoneiros. Sobrava para o protocolo. Um dia foi testemunha de uma batida de carro, tentou conciliar e acabou levando cinco tiros.
Paranaense de Clevelândia, nasceu durante a administração do prefeito Manoel Lustosa Martins, em 6 de agosto de 1932. É o segundo dos quatro filhos de Edil Nascimento e Ismael Carneiro: Muriti, Murilo, Mildred (a Deca, esposa de Antônio de Paiva Cantelmo, prefeito de Francisco Beltrão de 65 a 69 e de 73 a 76) e Maria Risoleta.
Junto com sua família, Murilo mudou para União da Vitória, onde estudou e de onde veio, ainda solteiro, para trabalhar na Cango (Colônia Agrícola Nacional General Osório). Seu cargo era protocolo, ele que recebia as pessoas que queriam entrar na Colônia.
Murilo casou com Eva Casagrande (filha dos pioneiros beltronenses Alvina Kunz e José, o “Bepi”, Casagrande) e também teve quatro filhos: Moriarti, Ismael (o Lito), Mirian e Rosselini.
Ainda nos anos 50, saiu da Cango para abrir farmácia em Marmeleiro, onde vive até hoje. Foi duas vezes vice-prefeito (de Telmo Otávio Müller na gestão 1966-1969, pelo PSD, e de Herbert Anton Schiffl, de 1977 a 1982, pela Arena) e uma vez vereador, de 1973 a 1976, pela Arena.
Em seu prédio no centro da cidade, onde reside e tem peças alugadas, Murilo de Jesus Carneiro concedeu esta entrevista para Nereu Miserski e Ivo Pegoraro, do Jornal de Beltrão.
Qual era seu serviço na Cango?
Eu trabalhava no serviço de protocolo, e usava gravata, era normal usar gravata naquele tempo.
Paletó também?
Paletó, tudo essas coisas direitinho. Eu, quando chegava os caminhões pra adiantar, eu trabalhava no serviço de protocolo, eu ficava com dó das pessoas e trabalhava até no domingo. Não podia cobrar nada, só selo do requerimento, que era o seguinte: a pessoa requeria pelo meu intermédio, eu protocolava e mandava pra administração. O objetivo era desenvolver a região, então eu fazia um requerimento solicitando uma colônia pra cada uma das pessoas, e cada pessoa daquelas saía com o inspetor da região, uma porção de pessoas. Naquele tempo, os indígenas vinham e ficavam embaixo da ponte. Eu então encaminhava, o cara ia ver, era diferente antes, eram 20 alqueires, hoje é dez. A minha função era essa, às vezes eu trabalhava todo domingo e não podia cobrar nada, a não ser o selo do requerimento.
Não tinha hora-extra?
Não tinha. Eu fazia o requerimento, a pessoa se comprometia a trabalhar e residir lá onde interessou pra ela, quatro anos aí ele recebia o título definitivo, e foi assim que aconteceu o desenvolvimento da Cango e das funções do pessoal da Cango. Hoje eu sei que o Exército é lá. Uma ocasião que houve uma treta, entre o prefeito doutor Rubens Martins e o doutor Walter, que também teve problemas mais na área política. Eu tava envolvido com eles pelo seguinte, tinha o Cantelmo que foi prefeito.
O Antonio de Paiva Cantelmo que era seu cunhado?
Era meu cunhado. Nessa ocasião eu servia tanto um lado como o outro, porque eu estava aqui em Marmeleiro, e em Marmeleiro não tinha atrito nenhum. Quando aconteceu a revolução, a Revolta dos Colonos, eu comecei a atender o pessoal que os médicos mandavam pra cá, porque estavam envolvidos na política e atritos, da época da Revolta de 57, se eu não me engano. E aí eu fazia os curativos, dava o atendimento farmacêutico, mas na verdade, às vezes eu até tinha que bancar o médico.
Quando o senhor veio de lá, em 54, e abriu uma farmácia?
Era posto de socorro farmacêutico. Era ali no Banco do Brasil. Aí com os anos eu fui a Curitiba, e fiquei seis meses fazendo curso de farmacêutico, daí eu consegui legalizar a minha situação como farmacêutico. Eu sou farmacêutico mas não sou bioquímico, eu tenho um filho que é bioquímico. Eu tenho minha farmácia até hoje, se eu quiser me mudar tem que ser o mesmo nome, em qualquer região do País. Mas faz um tempo que eu me aposentei, e assim vivo mais os dias de hoje como recordação.
Como é a sua rotina? Deita cedo, acorda cedo?
Levanto muito cedo, cinco e pouquinho. Deito cedo também.
E dorme bem? Se alimenta bem?
Sim, isso sem dúvida nenhuma. Tenho um problema de alergia e protejo meu coração. Mas não tenho dor, não tenho nada. No momento eu tô preocupado em fazer uma viagem pra Aparecida do Norte, qual é a razão? Primeiro que eu fui fazer uma visita lá e fui muito maltratado por um padre.
Mas por que?
Mas rapaz, sei lá. Fui pedir uma informação e pense num cavalo, vamos dizer assim, parece incrível, né, e eu fiquei com aquela imagem, tô querendo tirar essa imagem. Faz tempo. Eu tô com uma viagem agora programada, pra janeiro de 2020, e eu vou lá pra tirar essa imagem.
O que o seu pai fazia em Clevelândia quando o senhor nasceu?
Meu pai tinha negócio de fazenda, essas coisas. Mas depois meu pai foi morar em União da Vitória. Ele ficou como funcionário da Cango aqui e despachante em União da Vitória, o dinheiro quando vinha, vinha por União da Vitória, não tinha van, não tinha nada, é ele que trazia pra nós o dinheiro. Ficou muitos anos assim, virou coletor e tal.
Por que o senhor saiu de Clevelândia com 8 anos?
Nós fomos para União da Vitória. Eu fiquei uma temporada lá. Meu pai tinha uma sociedade lá, em Clevelândia, e ficou lidando com doença sete anos, parece até mentira, sete anos consecutivos de doenças. Não só nele, na família de um ou outro sempre tinha. Aí fomos pra União da Vitoria, e lá fizemos amizade com o doutor Lauro, com o pessoal de lá. Era Lauro Soares. E ele nos atendeu, nos abrigou, e nos tornamos amigos, nós estamos amigos até hoje. Eu trabalhava numa produção de café. E o que que eu fazia, União da Vitória era muito grande, e tinha café puro e café com açúcar, tudo era fogo, naquele tempo não tinha nada de moderno, que nem hoje. Eu levantava sempre quatro horas da manhã, pra trabalhar, ajudar o pessoal a torrar café, e depois eu ia entregar, fazia a cidade toda, de um lado e depois o outro, depois eu ia fazer entrega. Tinha um cara que me judiava muito, só queria café do dia e tal, lá da região de turcos. Eu também fiquei trabalhando de engraxate. Aí o papai pegou uma estrada de ferro pra fazer, e nós fizemos a estrada.
O senhor ajudou ele?
Eu trabalhava já com ele. Ali era muito arenoso, então o que é que o cara fazia, a gente corta os matos, imagina que a areia é tudo cauta aqui, se cortava por cima, fazia um corte muito grande e depois tocava por cima, uma espécie de uma pá e derrubava tudo aquilo lá. Aí eu trabalhava a ponto do aterro, era com carrocinha, chegava a carrocinha e eu tava lá espalhando, aí eu desengatava o negócio e tal. Teve um trecho grande que nós fizemos, e é uma cidade que não esqueço jamais, que eu passei a minha adolescência.
Voltando à Cango.
Você já deve ter conhecido os fundadores da Cango, o Eduardo Virmond Suplicy, o Glauco Olinger. O Glauco era meu fã. Aquelas enchentes que você assistiu, muitas vezes acontecia naquela época, eu e o Glauco trabalhamos embaixo da ponte, correndo muito risco, e muitos tentaram atravessar e morreram. Aí você tinha que descer, era um inferno pra achar, às vezes você achava cara grudado, era horrível aquele tempo.
O pessoal se arriscava a atravessar o rio nadando?
Eles iam ajudar, acho que uns que queriam aparecer. Iam ajudar na limpeza, porque a ponte trancava, o pessoal derrubava a mata pra poder se acomodar ali, e daí descia tudo.
Como que o senhor e seu pai moravam em União da Vitoria e entraram aqui na Cango? A Cango foi contratar gente lá?
Vou explicar uma coisa pra vocês, eu fui funcionário da Cango até no tempo do Glauco Olinger, mas me desentendi com ele. Às vezes eu saía, prestava serviço pra terceiros, e eu continuei fazendo o papel de protocolo na Cango. Depois eu trabalhei no depósito da Cango, e o que é que eles faziam? Eles distribuíram semente pra uma pessoa, e ela devolvia depois, na safra, o dobro. A colônia era 20 alqueires, então o cara tinha o espaço e em cada setor, onde o cara interessasse. Nós tínhamos um inspetor, lembro muito bem do Zeca Lopes, todos eu não lembro. E assim, nós desenvolvemos a área da Cango, cuja finalidade era desenvolver. E outra coisa interessante, os ônibus de União da Vitória, muitas vezes vinha só até Pato Branco, e nós como éramos funcionários da Cango, muitas vezes tinha que fazer de Pato Branco até a Cango a pé, só que a rota era outra, mas eu cansei de fazer isso a pé.
A pé?
A pé, porque ele não vinha pra Francisco Beltrão, naquele tempo era Marrecas.
Saía cedo de Pato Branco pra chegar aqui de noite, era isso?
Não, porque a rota já era diferente, você não fazia esse trajeto que tu faz ali. Eu sei que nós íamos por uma outra região, por dentro, era mais ou menos isso e às vezes ocorria isso aí, porque o ônibus não vinha e o que é que nós podia fazer.
(A entrevista segue no caderno de Marmeleiro do dia 25 deste mês).
Quando o protocolo da Cango era desafiado
Uma vez um homem desobedeceu uma ordem da Cango, porque eles patrolavam (a estrada), mas quando chovia, eles (o pessoal da Cango) não queriam que passasse. O homem inventou de colocar o caminhão dele na ponte, aí ninguém podia passar e ele não tirava. Eu já tenho cara de que sou lerdo, mas nunca pensei que fosse assim, nós tínhamos comunicação por telégrafo com o pessoal do Rio de Janeiro, me nomearam pra resolver o problema do homem, custasse o que custasse, em 24 horas, tudo por telégrafo. Veio a nomeação, e digo “por que logo eu, um piazotão?”. Aí fui falar com o homem, digo “ó, o senhor desobedeceu uma ordem, transitou chovendo e ainda veio pra cá, transitou com corrente. Aí ele diz: “Eu não tiro e quero saber o macho que vai tirar”. Eu mandei vir a patrola, quando ele viu que eu não ia ceder. Eu digo “você vai sair agora? Ou eu vou tirar esse teu carro do jeito que tiver aí”. Ele pensou que eu tava brincando, dali a pouquinho chegou a patrola e tirou. Às vezes eu me envolvia com esse troço, mas não sei porque, tenho cara de pistoleiro?
A ponte era coberta e passava patrola na ponte?
Ah, tu diz por causa do tamanho da ponte? Sim, passava. Mas uma vez eu tomei cinco tiros.
Nossa, cinco tiros!
Primeiro tiro me queimou a barba. Vou fazer um favor, certo? Você conheceu Otaviano Santos? Aí tinha o Bar do Zanatta, que era nosso ponto ali, do seu Egídio. Só que da ponte pra lá quem mandava era nós, e pra cá nós obedecia as ordens. Sei que um se envolveu e bateu no carro do outro, e não tinha dinheiro, aí foi arrumar dinheiro, e o homem me deixou junto com o carro dele, pra provar que ele não mexeu no carro. Aí o cara que bateu no carro foi atrás de dinheiro e voltou pra pagar, pediu desculpas e não parou porque ele foi lá buscar. O dono do carro batido me deixou ali pra testemunhar que ele não mexeu no carro. Aquele que bateu no carro chegou e diz “olha, eu não parei porque eu não tinha dinheiro, fui arrumar o dinheiro e eu sei que você tem oficina, trabalha com isso aí, quero lhe pedir desculpas”, o cara foi educado. “Que o senhor me perdoe e vamos ver quanto que deu”. Mas, rapaz do céu, o dono do carro batido, nunca vi tratar tão mal alguém. Aí tive que ficar de testemunho, e digo: “O cara já te pediu desculpa, quer te pagar, é teu ramo, vamos terminar com isso”. “Peru de fora não tem nada que…”. Rapaz do céu ele me tacou cinco tiros.
Atirou de perto?
Sim, atirou de perto. Atirou pra acertar.
Como é que não acertou?
Não sei. Tinham patrolado a terra, lembro que eu resbalei e o tiro não me atingiu, mas é por causa que eu pisei em um torrão ali, e assim foi. E eu acabei entrando no Bar do Zanatta, pois ele percorreu a minha casa, ele percorreu a quadra toda querendo me matar.
E depois como ficou?
Aí eu me encontrei, só que aí bicho feio, se encontramos em Curitiba, e ele já branqueou tudo. Eu nunca fui vingativo nem nada, não sou de matar, a não ser que seja em legítima defesa, tenho meu revólver até hoje e não tem problema nenhum. Eu viajei muito pro Mato Grosso e adentrava na selva, sempre me apresentava pro Exército. Enfim, levei a vida assim, meio cheia de aventuras.