Geral
*Raquel Simone Varaschin
De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2019, quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora no Brasil. E estima-se que a cada 24 horas, 320 crianças sejam exploradas.
O abuso sexual é qualquer ato de natureza ou conotação sexual em que adultos submetem crianças ou adolescentes a situações de estimulação ou satisfação sexual, imposto pela força física, pela ameaça ou pela sedução, numa relação de subordinação e dominação, em que a vítima é incapaz de dar um consentimento consciente por causa do desequilíbrio de poder, ou por uma relação afetiva familiar, ou em função de uma condição física ou cognitiva limitante. A criança ou o adolescente pode estar ciente ou não sobre o que está acontecendo, e, muitas, vezes, a vítima tem a sensação de estar acontecendo algo errado, mas não sabe como agir ou reagir a essa situação.
O abuso sexual pode ser intra ou extrafamiliar, e envolve comportamentos que abrangem aliciamento sexual, linguagem ou gestos sugestivos, uso de pornografia, voyeurismo, exibicionismo, carícias, masturbação e penetração com os dedos, pênis ou objetos, e a relações podem ser vaginais, anais ou orais. 95% dos casos desse tipo de violência são praticados por pessoas conhecidas da vítima, e mais de 70% dos abusos são cometidos por pessoas da família – pai, padrasto, madrasta, primo, tio, cunhado, irmão. A menina é a principal vítima do abuso sexual, cada 10 casos, 7 acontecem com elas. Os homens são perpetradores em 95% dos casos de abuso sexual de meninas e em 80% dos casos de abuso sexual de meninos. E os adolescentes cometem 30% dos casos de abuso sexual em crianças.
O abuso pode acontecer uma única vez ou de forma prolongada (repetidas vezes pelo mesmo abusador). E de acordo com a ONU apenas 1% das meninas que sofrem abuso sexual busca ajuda.
As crianças mais propensas ao abuso estão na faixa etária entre 9 e 12 anos, crianças pouco vigiadas, deixadas por sua própria conta, carentes afetiva e emocionalmente, ou crianças inseguras, inibidas, tímidas, com baixa autoestima, solitárias e isoladas, que não sabem dizer não – situações que tornam as crianças mais facilmente manipuladas e chantageadas. E também tem as crianças que estão sendo cuidadas por outras pessoas, ou aquelas que tem o desejo ansioso de se darem bem em alguma atividade ou interesse.
As consequências do abuso são devastadoras, tanto físicas, como sexuais, comportamentais e cognitivas. Físicas: dilatação do hímen, infecções sexualmente transmissíveis, dores na região genital e abdominal, entre outras.
A nível comportamental, a criança ou o adolescente pode apresentar conduta de isolamento, depressão, pensamentos e tendências suicidas, fuga de casa, agressividade ou apatia extremas, ataque de pânico, transtorno de estresse pós-traumático, choro constante sem causa aparente, distúrbios do sono, transtornos da alimentação, automutilação, aparência desleixada (para não provocar sentimento de atração do outro, sintoma de uma cultura do estupro), sentimento de abandono, enurese (perda involuntária da urina) ou encoprese (perda de fezes na roupa íntima da criança). Além disso, a presença de preocupação exagerada coma limpeza corporal, sentimentos de nojo, sujeira (que normalmente leva ao desenvolvimento do TOC).
Outro fator decorrente do abuso é o medo da ira do abusador, do que lhe pode acontecer se não vier cumprir o que ele pede (em situações de ameaça, chantagem), bem como o medo do julgamento – de serem consideradas culpadas pelo que aconteceu e de serem punidas, e o temor de ser responsável por uma desintegração familiar, quando é abuso é intrafamiliar. A criança ou adolescente abusado vivem permanentemente sentimentos de culpa e vergonha, que se estende na vida adulta.
Cognitivamente, pode ocorrer alteração da concentração e atenção, transtorno de memória, sub ou super aproveitamento na escola. Pesquisadores apontam que devido a rotina da crianças e adolescentes, que passam grande parte do tempo na escola, em 44% dos casos de violência sexual, o professor é a primeira pessoa a saber, e em 52% deles o docente é o primeiro adulto ter conhecimento sobre o problema. No entanto, é comum que os educadores não saibam como lidar com a situação por falta de formação, orientação, e instrumentos necessários para uma condução adequada.
Mas chamo atenção também para a família da vítima do abuso sexual, que precisam aprender escutar seus filhos, dar conta dos sinais e sintomas que eles apresentam. Sabemos que quando o abuso é intrafamiliar, pesquisas revelam a dificuldade de aceitação da família, e, com isso, acabam negando e mantendo a violência, entendendo que aquilo que a criança traz é uma fantasia de sua cabeça, que ratifica as inseguranças e medo das crianças de que se falar não irão acreditar nela.
E quem é o agressor?
A prevalência de pedofilia é de 1%, mas se forem incluídas fantasias sexuais de cunho pedófilo, a estimativa atinge até 5% da população masculina, lembrando que mulheres também praticam violência sexual infantil.
O transtorno pedofílico, de acordo com a definição do DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª. Edição), se caracteriza pela presença de fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos intensos e recorrentes envolvendo atividade sexual com criança ou crianças pré-puberes (em geral, 13 anos o menos), por um período de pelo menos seis meses. Ele pode colocar em prática esses impulsos, ou então, a presença destes impulsos e fantasias podem causar intenso sofrimento psicossocial (culpa, vergonha, frustração sexual intensa ou sentimentos de isolamento. O indivíduo terá que ter, no mínimo, 16 anos de idade e é pelo menos cinco anos mais velho que a criança ou com a criança pré-púbere. No entanto, quando relatam ausência de sentimento de culpa, vergonha ou ansiedade em relação a esses impulsos, e que jamais colocaram seus impulsos em prática, se diz que essa pessoa apresenta orientação sexual pedofílica, mas não transtorno pedofílico.
E o CID 10 (a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, 10ª Edição) define a pedofilia como um transtorno de preferência sexual. E ainda não há um consenso quanto à etiologia. Alguns estudos trazem sexualidade reprimida, pobreza e má distribuição de renda; distúrbios psiquiátricos, transtorno de personalidade antissocial, abusos de substâncias psicoativas, distúrbio neurológico ou alteração de estrutura e função em áreas cerebrais: frontal, temporal e límbica; perturbação no neurodesenvolvimento na vida intrauterina; menores taxas de testosterona; transmissibilidade familiar; ter sido vítima de abuso sexual na infância; e geralmente tem QI mais baixo, menores pontuações de memória, maiores taxas de reprovação escolar, menor estatura física e maior índice de ferimentos na cabeça na infância.
Portanto, esses indivíduos, independente das questões penais, necessitam de auxílio de profissionais da saúde mental. Na Alemanha há uma década existe o Projeto Dunkelfeld – que significa ‘campo escuro’, que é financiado pelo Ministério da Justiça e da Família “já que o objetivo principal é proteger as crianças”. Propiciam tratamento confidencial e terapia, com abordagens que busca autogestão da libido.
E estudos no Brasil e no mundo indicam que a maioria dos agressores sexuais contra crianças não são pedófilos. Inclusive existe a estimativa, através de pesquisa com sentenciados por crimes sexuais, que somente 20% dos ofensores sexuais de crianças preenchiam os requisitos para diagnóstico de transtorno parafílico em adultos. E em adolescentes, o número foi menor, de 5%. Os demais são ofensores sexuais que praticam o estupro, armazenamento/troca de imagens com conteúdo de pornografia infantil, não se limitando apenas a isso, e agem de maneira deliberada e planejada.
Raquel Simone Varaschin
psicóloga, neuropsicóloga, terapeuta sexual e de casal CRP 08/02043