Nesta segunda parte da entrevista, Padre Zeca conta como é viver “na boca” dos pandilleros, ou vizinhar com grupos armados e violentos que vivem nos bairros pobres de El Salvador (América Central), onde ele está há dois anos e pretende ficar mais dois.
.png)
Jozef Gustaav Hendrik Geeurickx, o Padre Zeca, veio da Bélgica para Francisco Beltrão em 1969. No carnaval de 1980, deixou o Sudoeste do Paraná para trabalhar por três anos como mestre de noviços em Itapetininga (SP) e depois na CNBB em Brasília. Foi superior da Regional dos missionários e diretor do Centro Cultural Missionário (CCM). Depois foi assistente geral em Roma, quando deixou de ser responsável pelo grupo “Crescer em Comunhão”.
[relacionadas]
Padre Zeca – É, depois daqui, em 93 fui pra Roma, fiquei seis anos em Roma e viajando. No conselho já era assim, digamos um terço do tempo era reuniões, cursos de formação, reuniões entre o conselho, porque ali se decide por exemplo o que vai ser medido pra ordenação de padre, lá em Roma os superiores decidiam isso. E depois um terço do tempo nós gastávamos em administração, eu era responsável, pra começar, com o site da congregação, no início da internet. Nos anos 90, era mais a parte administrativa, documentos, escrever e etc. E outro terço do tempo era viajar, assim eu viajei, fui pra Austrália, pra Índia, Indonésia, ilhas do Pacífico, fui em todos os países da América, Estados Unidos, Canadá, Guatemala, toda a parte do mundo, acho que visitei naquela época uns 40 países que pisei no chão. Durante seis anos foi assim, mas ali eu, sinceramente, não gostava mais de ficar lá em cima na cúpula, eu falei com o superior, que eu gostaria mesmo é de voltar à base, eu fui uma vez com o provincial, na Espanha, pra Santiago de Compostela, que nós tínhamos um colégio bem pertinho de lá, e por isso fomos visitar Santiago. Eu abracei a imagem de Santiago, lá na catedral, eu disse: eu gostaria que você fizesse o possível pra que eu não fosse reeleito e que eu pudesse voltar pro Brasil. E de fato ele atendeu o pedido, todos os santos ajudam quando a gente realmente tá a fim. E por isso me senti na obrigação de fazer o caminho de Santiago. Eu fui de bicicleta, desde Bruxelas, passando 2.340 quilômetros em três semanas, fui até Santiago na peregrinação. Essa viagem eu aconselho pra quem quer colocar um pouco em ordem as suas coisas, a sua vida. Eu sempre aconselho para as pessoas que estão meio perturbadas, faça o caminho de Santiago, seja caminhando, de bicicleta ou a cavalo ou até de carro, só que de carro é muito breve. Melhor fazer como uma peregrinação mesmo, melhor seria esses 820 quilômetros desde a fronteira da França até a Catedral de Santiago de Compostela. Fazer caminhando, porque aí você tem tempo de ver a natureza, pra sentir um pouco aquele caminho que marcou toda a história da Europa, a unificação da Europa, que foi pelo caminho de Santiago. Pra mim, isso foi uma experiência muito rica, além de ter deixado de fumar cachimbo, porque eu fumei cachimbo durante anos, eu era conhecido aqui no Sudoeste como Padre Zeca do cachimbo e da gaita (risos). Eu tocava gaita, eu tenho uma gaita ainda, uma sanfoninha baixa, e eu deixei de fumar o cachimbo justamente naquela peregrinação e foi bom pra mim, depois de 25 anos de padre, agradecer a Deus e ao mesmo tempo pedir a força para outros 25 anos de caminhada, de estar ao lado do povo para ajudá-lo. Então, de Roma eu fui pra Santiago. No final de setembro de 99 e comecei a Paróquia Sagrada Família em Cuiabá, foi só um ano. E voltei pro Brasil e comecei a Paróquia. Já tinha começado aqui a Paróquia da Cango em 77, só que fiquei só três anos aqui, porque em 80 já fui pra Brasília. E depois fui pra Cuiabá, só consegui construir a casa paroquial e já me chamaram de volta pra Brasília, pro conselho, pro centro cultural missionário, onde eu já tinha um pouco de experiência.
E o senhor achou que o seu santo já tinha fraquejado um pouco (risos):
Não, eu fiquei quatro anos. Eu tava no Brasil, era o que eu queria. E aí fiquei quatro anos lá, quando meus colegas da Austrália e do Japão me pediram pra ter algum dos nossos, daqui, que fosse ajudar os imigrantes brasileiros lá no Japão. Porque desde os anos 90 havia muita imigração pro Japão, de descendentes de japoneses, que foram lá pra trabalhar pra ganhar dinheiro. Eu me lembro que em 2007 havia 320 mil brasileiros no Japão, trabalhando. A grande maioria pra trabalho pesado, trabalho repetitivo, que os japoneses já não queriam mais fazer, então chamaram os descendentes de japonês aqui do Brasil pra trabalhar lá. Pediram alguém daqui, dos nossos, pra ajudar lá nas paróquias, em várias cidades, várias paróquias dos Missionários do Sagrado Coração, onde havia as comunidades de brasileiros que queriam que alguém os assistisse, alguém os ajudasse. Eu fiquei lá, cinco anos no Japão, pertinho da grande fábrica da Toyota, um grande porto. Tem a Sony, a Mitsubishi, todas essas grandes marcas estão lá concentradas ao redor de Osaka.
Daí que vem o El Salvador?
Acontece o seguinte, depois de Cuiabá, disseram pra mim – eu também percebi isso – que depois de sete anos, depois de eu voltar do Japão eu estava a fim de voltar pra lá depois de interromper um pouco, mas os colegas falaram “não, agora você vai ter que ficar aqui porque estamos com falta de gente; você toparia ir para Cuiabá? Naquela Paróquia que você começou dez anos atrás?” Eu disse “tudo bem, vamos lá”. Então a partir de 2010, voltando do Japão com um pequeno intervalo em Curitiba, eu fui para a Paróquia Sagrada Família no Carambé em Cuiabá. Fiquei lá sete anos, até final de 2017 e ali então você sabe que quando a gente está numa Paróquia nova, que você chega e tudo vai bem, e você tem muita coisa para contribuir, entra pouco a pouco em uma rotina e o problema é que a vez que você entra na rotina depois de três, quatro, cinco anos, a rotina começa fazer com que a gente não seja mais maleável. Eu acho que depois de seis anos é melhor eu deixar a Paróquia pra outros e que eu vá para outro destino. Eu pedi para o superior, depois de sete anos acho que já está bom, vamos deixar a Paróquia para os novos tocar e ali veio aquele pedido de El Salvador para ser conformador, ou seja, junto com outros conformadores, responsável pelo Teologado Latino-Americano dos Missionários do Sagrado Coração, por que ali tem gente do Brasil. Agora vão dois brasileiros pra lá, um de Salgado Filho e outro de Joinville, tem paraguaio, tem colombiano, tem venezuelano, tem nicaraguense, tem salvadorenho, tem mexicano, tem dois haitianos, tem dois da República Dominicana, e tem um da Bélgica que sou eu, então é um público internacional. Graças Deus eu tenho um pouco de experiência de viver com várias culturas, sempre vivi com várias culturas, comunidades de culturas distintas e ali, então, a primeira responsabilidade é essa, ajudar na formação desses que estão fazendo a Teologia na Universidade. Foi marcada com um drama, não sei se você se lembra que foi marcado por 20 anos de guerra civil, muitíssima gente morreu, um deles o mártir Santo Oscar Romero, que foi no ano de 80, que ele foi assassinado lá, enquanto estava celebrando a missa e anos depois a guerra não tinha terminado. Todos os que estavam lutando pelo espírito da Teologia da Libertação, por mais justiça, por uma paz verdadeira, o Exército já desconfiava e ali por isso eles mataram seis dos professores. Um era o reitor da Universidade Jesuíta, também mataram a cozinheira deles e a filha da cozinheira que por acaso estava lá naquela manhã. E o Exército matou seis jesuítas e as duas mulheres isso foi em 89. Então, nessa Universidade, já marcada por esses traumas, digamos da perseguição e do martírio, lá os nossos estudantes estão estudando Teologia. Interessante que quando a gente pergunta a orientação da Teologia, ela não é brincadeira, não é superficial. Ao contrário, é uma Teologia muito bem elaborada e bem estudada e eles têm também a possibilidade de ter um diploma europeu, porque a Universidade Jesuíta, lá em San Salvador, tem convênio com a Universidade Jesuíta de Combilias em Madrid na Espanha. E eles podem então fazer o exame de Combílias é uma coisa muito séria, não apenas escrita mas também oral que eles têm que defender umas teses. Passando por esses exames eles recebem um diploma europeu de Teologia, você já sai com o diploma e eles podem ir para Paris, Roma… que o diploma é reconhecido por lá. Então é coisa séria não é de brincar não. E além disso ajudamos na Paróquia, uma Paróquia de periferia. É muita violência, não é por acaso que tantos salvadorenhos, hondurenhos, guatemaltecos e nicaraguenses fogem de lá naquelas caravanas passando por Guatemala e passando pelo México para entrar nos Estados Unidos. E a violência realmente marca a região de tal forma que nós estamos na periferia na capital, bom… o município é chamado Cuscatancingo e é conhecido como Mariona o bairro, tem um grande presídio. Quando se fala em Mariona muitos ficam com o pé atrás, para muitos taxistas é perigoso, normalmente não querem te levar para lá. No centro da cidade você pede um táxi para Mariona, ou quando você faz uma encomenda por exemplo, tem que comprar uma geladeira e pede para levarem para Mariona e pedem se não é perigoso porque de fato é marcado pela violência.
E o senhor vai lá?
Eu vou lá, eu até agora de fato não fui importunado em nenhum momento pela violência porque eles conhecem o trabalho da igreja, sabem que nós estamos não do lado dos bandidos mas do lado do povo, e isso eles têm certo respeito, a tal ponto a gente sabe, os policiais que estão lá todos com arma comprida na mão e os do Exército. Agora tem blitz do Exército que te param na estrada, até agora não tive nenhuma dificuldade, só mostrar os documentos, e também talvez nessa idade, notam que dificilmente seriam um desses “pandilleros” como chamam lá, esses bandidos e não tenho nenhuma tatuagem também (risos) por que isso marca. Trabalho na Paróquia, trabalho na casa de formação, trabalho também no presídio, aquele presídio de sete mil presos que é o maior de toda América Central, e também trabalho numa casa de recuperação de alcoólatras que é dos missionários do Sagrado Coração. Foi começado por um irmão nosso, espanhol, uns 30 anos atrás, e realmente está fazendo um bom trabalho de recuperar, eu não digo que 100% porque eu desconfio quando alguma dessas casas de conversão dizem que garantem a recuperação; não, impossível, e nós chegamos a recuperar uns 60%, seja 30% que recai, a realidade é essa, tem que ser realista, não dá para se imaginar.
Em Cuiabá o senhor disse que depois de sete anos entrou em uma rotina, e agora em El Salvador, não tem rotina ainda?
Não não. Os superiores fizeram tipo um contrato por quatro anos, por isso estou preparado para outra vez ir para lá por dois anos e, se for o caso, porque missionário você sabe como que é, estar pronto, o meu lema pessoal é um pouco daquilo que se dizia antigamente nas nossas constituições, que nós (frase em latim) devemos estar prontos para qualquer boa obra. Se o superior geral me pedir ou amanhã me ligar e disser “escuta, Zeca, nós precisamos uma ajuda e vamos em Namíbia”. Tudo bem, semana que vem pego a minha mala e vou à Namíbia, ou qualquer parte do mundo, ou voltar para o Japão estamos lá.
Que perspectiva o senhor vê para um povo como o de El Salvador que está tão perto de um país rico e pobreza e dificuldade?
Pois é, El Salvador, este País está marcado pela violência, não apenas dos 20 anos de guerra civil que de fato ainda tem muita tensão entre a Frente de um lado e a Arena por outro lado. Os dois partidos, de um lado a esquerda, a Frente de libertacion de El Salvador, que os guerrilheiros daquela época ocupavam uma parte do território e depois o Exército que sempre encontrou na Arena o seu apoio. Foi o Exército, pela Arena, que matou a moça e a cozinheira. Que matou os jesuítas e esta marca da violência para resolver os problemas sociais continua presente. Escondido sim, mas na realidade a gente sente isso, uma desconfiança, o medo e além disso tem a dominação dessas “pandillas”, como são chamadas. Como aqui tem o Comando Vermelho, como tem o PCC, que eu conheci lá em Cuiabá também, então lá tem essas pandillas que foram formadas nos Estados Unidos por latinos-centro-americanos, então agora estão dominando. Por exemplo, nosso bairro de Mariona, quando eu cheguei lá me disseram “aqui é a nossa rua, até 100 metros adiante pode ir tranquilo, mas é melhor não arriscar de ir mais adiante porque ali é outra pandilla que domina aquele território, e esses grupos criminosos vivem em primeiro lugar da extorsão, um pequeno comerciante, por exemplo, nessa rua eles dizem pra ele “ tudo bem, o senhor, pode ter o seu comércio aqui, só que o senhor precisa de proteção, nós garantimos que ninguém vai lhe perturbar, ninguém vai assaltar você, ninguém vai roubar nada da mercadoria, só que tem que nos ajudar a manter a proteção, então passa uns 200 dólares por mês”. Se a Prefeitura quer construir uma ponte, por exemplo, aqui em baixo querem construir uma nova ponte entre um bairro e outro. Então os dois lados têm pandillas que dominam e combinam com a empreiteira dizendo assim: “Você sabe muito bem que para a segurança da própria firma vir aqui eles não vão conseguir manter a paz e vai desaparecer material de vocês, vai desaparecer material de construção. Então é melhor que o senhor nos ajude para garantir, deste lado aqui do rio nós garantimos que não vai ser roubado nada, vocês vão poder trabalhar tranquilamente mas vão ter que combinar também com o outro lado. Então vocês nos passam tanto, arranjando uns 1.500 dólares por mês, vocês podem fazer a sua obra. São as pandilhas que dominam, e pro governo, por mais boa vontade que tenha e por mais leituras que tenha pra apoiar, mas pra desmanchar esta estrutura que tá tão corrupta da sociedade, é muito, muito difícil. O novo presidente foi eleito e tomou posse no mês de julho passado. Ele prometeu acabar com essa dominação, e se alguma coisa está melhorando, mas eu não tenho muita esperança.
Essa parte tem que entrar no orçamento da obra.
É. Ali também tem o seguinte, digamos que é a lixeira dos Estados Unidos, aquilo que já não serve mais, por exemplo: ônibus velho de 20, 30 anos, despeja tudo lá. Com motores que, quando você tá andando de bicicleta atrás desses ônibus, você tem que colocar uma máscara para se proteger daquela nuvem de fumaça, que polue uma barbaridade. As ruas cheias de lixo, garrafas por toda a parte, tanto que eu me obriguei, agora no Natal, eu tava saindo e disse “não, eu vou limpar um pouco essa rua que está tão suja, tão nojenta”. Fui limpando os 100 primeiros metros da rua nossa, em frente à casa já estava limpo, e depois falei com os lixeiros para concluir três montes, “vocês, por favor, levem esse lixo embora”, plástico, galhos e ferragem, assim, tudo aquilo que é sujeira que vem parar na rua e depois para nos rios e vai para o oceano. Eu não sei se isso vai ajudar muito, em todo caso eu tento conscientizar os nossos estudantes dessa consciência ecológica também.