O Acordo de Limites que definiu as atuais divisas entre Paraná e Santa Catarina, assinado no Rio de Janeiro em 20 de outubro de 1916, ocorreu logo após o encerramento da Guerra que teve como palco áreas que pertenciam também a Palmas.
Entre os muitos proprietários de terras situadas na divisa do Paraná com Santa Catarina, encontramos João Osório Ribas. Ele é de uma família com longo histórico em Palmas. Seu avô, Joaquim Mariano Ribas, natural de Ponta Grossa, estabeleceu-se em Palmas no ano de 1885. Seu pai, Osório Matoso Ribas, nasceu em Palmas, no ano de 1905. E seu filho Carlos Alberto Ribas, o Carlinhos, é o proprietário da Casa do Artista, ao lado da rodovia BR 280, ao pé das usinas eólicas do Horizonte.
Pecuarista desde o nascimento, seu Joaquim se notabilizou também como historiador e é assim que as pessoas o identificam. Formado em História em União da Vitória, possui dois livros publicados, é membro e foi o primeiro presidente da Academia de Letras Vale do Iguaçu, de Palmas. Seu novo projeto de livro é sobre a história das fazendas de Palmas.
Ele também produz artigos como este que segue, sobre a Guerra do Contestado, acontecida um século atrás, mas que até hoje deixa marcas em Palmas, que naquele tempo fazia parte do contexto, pois até o Rio do Peixe era Paraná e pertencia ao município de Palmas.
O Contestado
Por Joaquim Osório Ribas*
Na opinião de pessoas mais velhas, não houve guerra, mas simplesmente uma ação armada para expulsar os antigos moradores do sertão e propiciar a entrada do capital internacional. Trata-se de fato histórico recente, e os protagonistas ainda estão presentes através de seus filhos e netos, testemunhando esse doloroso episódio.
A leitura da História do Brasil tem sido feita através do ângulo dos vencedores. Por isso sempre enaltece os heróis vinculados ao poder dominante e omite completamente o povo. Só emprestaram nomes a ruas e cidades os heróis, civis e militares, do lado do governo. Morreram na luta aproximadamente 50 militares, porém as vítimas da população sertaneja, homens, mulheres e crianças, foram milhares. Qualquer tentativa para provar que o sertanejo não era simplesmente um bandido ou jagunço, mas um pequeno agricultor inculto e abandonado pelo poder público, causa surpresa à opinião pública.
Para entender as causas da rebelião que tomou conta do sertão do Contestado, numa vasta área, de aproximadamente 30.000 km², na divisa entre o Paraná e Santa Catarina, é necessário conhecer a história da gente que ali habitava. A resistência desse povo, de 1912 a 1915, teve um saldo trágico sob o ponto de vista social e econômico. Deu-se a destruição de uma sociedade campeira forjada em mais de um século de lutas e sacrifícios num sertão isolado da civilização. Foram milhares de mortos, mutilados, prisioneiros e fugitivos, vítimas de interesses econômicos do coronelismo da República Velha, aliado do capitalismo internacional.
A região, antes da presença do homem branco, era povoada por silvícolas descendentes dos antigos guaianás, que aqui se radicaram por volta de 1646, oriundos da Redução de São Pedro, provavelmente. Esse nome era emprestado geralmente a todos os grupos desconhecidos e que não eram guaranis e, a partir de 1882, por proposição de Telêmaco Borba, passaram a chamar-se de caingangues. Habitavam a margem esquerda do Rio Iguaçu. Eram extremamente hostis ao homem branco e viviam escondidos no mato. Esse comportamento era consequência do brutal ataque feito pelos bandeirantes às reduções dos padres jesuítas, no Oeste do Paraná, para saquear as riquezas e escravizar os índios. O silvícola era um homem corajoso que, para sobreviver na mata, enfrentava toda sorte de perigos. Pegava tigre a unha, como se dizia. A região era muito rica em frutas silvestres de excelente sabor, como o pinhão, guavirova, goiaba, araçás e outras. Essas frutas alimentavam diretamente o homem e as caças que forneciam carnes saborosas.
O Tratado de Madri, de 1750, anulou o Tratado de Tordesilhas, na demarcação entre a América Portuguesa e a Espanhola. Estabeleceu o direito “Uti Possidetis”, que definia a fronteira racial, isto é, seria de Portugal a terra ocupada por portugueses e pertenceria à Espanha onde a presença fosse de espanhóis. O ministro do Reino de Portugal, Marques de Pombal, homem de extraordinária visão geopolítica, percebeu a necessidade urgente de ocupar o Sul do Brasil, região disputada com a Espanha. Nesse afã, deslocou grande parte da população do Arquipélago de Açores e da Ilha da Madeira para preencher o espaço vazio do Brasil Meridional. Assim estava configurada a posse lusitana em terras disputadas com espanhóis.
Nossos ancestrais foram o marco vivo dessa ocupação. Como se viram isolados de qualquer centro urbano e sem meios de comunicação, valeram-se da cultura indígena para aqui construírem sua nova pátria. Os que dispunham de algum capital ocuparam os campos nativos e aí fundaram fazendas. Os menos favorecidos pela sorte foram se estabelecer debaixo da mata, em malocas, convivendo com os índios, onde se deu a miscigenação originando o tipo humano chamado de caboclo.
Os fazendeiros, detentores de grandes áreas de terra, enobreceram-se com os títulos do Império e posteriormente com o coronelismo da República Velha. A fazenda ocupava-se com a criação de gado bovino e porco, mantendo sob sua dependência o sertanejo na condição de agregado. Era um regime quase feudal.
A importância econômica da floresta estava na criação de porcos debaixo dos pinheirais e na extração da erva-mate. Essas duas atividades eram as principais fontes de renda da gente mais humilde. O fazendeiro obtinha rendimento com o comércio de gado e com a atividade tropeira.
Na segunda metade do século 19, estudos realizados a mando da Corte de Portugal concluíram que a madeira de araucária era de excelente qualidade, para construção civil e naval. A região do Contestado era coberta por exuberantes pinheirais até então intocados. O pinheiro era a árvore da vida do sertanejo. Fornecia alimento para as pessoas e animais, material para construção de habitações, galpões e currais, além de assegurar a biodiversidade da flora e da fauna.
Já no ocaso do Império, o governo central foi convencido da necessidade urgente da ligação do Sul com o restante do País. A construção da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, num traçado de 1.400 km, entre Itararé (SP) e Santa Maria (RS), tornou-se a grande prioridade. O projeto foi iniciado pelo engenheiro Teixeira Soares, em 1890, e, por falta de recursos financeiros, teve continuidade pela Brazil Railway Company, empresa do empreendedor americano, Percival Farquhar.
Uma das cláusulas contratuais estabelecia a concessão de extensas áreas florestais em favor da empresa construtora da ferrovia. Assentados os trilhos da estrada de ferro, a subsidiária do grupo, Lumber Colonization, iniciou o corte das árvores, instalando duas grandes serrarias, uma em Calmon e outra em Três Barras. Utilizou a força, através de agentes fortemente armados, para promover a imediata desocupação dos terrenos onde residiam sertanejos. Essa gente ali estava através de sucessivas gerações e nunca se preocupara com a documentação da posse da terra. Eram extrativistas e tinham na terra sua fonte de subsistência. Analfabetos e desinformados, desconheciam a nova lei das terras, que exigia a demarcação e registro das propriedades rurais. Essa situação justificou a ação violenta dos novos proprietários, alegando que eram intrusos qualificados como jagunços.
Os fazendeiros, proprietários das áreas de campos com pastagens naturais, não foram atingidos pela política de expulsão do homem que vivia debaixo da floresta, pois na fazenda não existiam grandes pinhais e os pinheiros que nasciam no campo não tinham valor comercial.
Os posseiros, desesperados com a ação do Grupo Farqhuar e em seguida das polícias militares dos dois estados, Paraná e Santa Catarina, recorreram aos coronéis, seus protetores, porém, estes, por interesses financeiros, aliaram-se ao capital internacional, deixando-os relegados à própria sorte. Aí surgiu a necessidade de se agruparem para a defesa. Seguiram a experiência dos índios, que diante da ameaça dos bandeirantes formaram as reduções. Essa nova realidade deu origem a dezenas de agrupamentos que se espalharam pelo sertão, conhecidos como redutos.
Resistiram à ação dos guardas da Lumber e das polícias militares. No primeiro grande entrevero contra a polícia militar do Paraná, em 1912, na campina do Irani, contaram com a força mística do profeta José Maria, destroçando as tropas legais e matando seu comandante, coronel João Gualberto. Nas outras batalhas que se sucederam, na ausência do profeta, morto no Irani, tiveram o alento do menino deus Joaquim e das virgens Teodora e Maria Rosa e da enfermeira Chica Pelega.
Os governos estaduais, impotentes, pediram a intervenção federal para debelar a rebelião. O Exército destacou mais de dois terços de suas forças equipadas com armamentos importados, inclusive com aviões de reconhecimento. A cidade de União da Vitória, pela sua posição estratégica, serviu de quartel general para as tropas federais. O general Setembrino de Carvalho assumiu o comando geral e confiou a oficiais veteranos da Guerra de Canudos a ação militar. Setembrino, com a intenção de vencer os sertanejos pela fome e desespero, estabeleceu um “cinturão de aço” em torno da região, impedindo a entrada de recursos para reabastecimento dos rebelados.
Em 1914, deu-se o massacre de Taquaruçu, quando agricultores comandados por Eusébio Ferreira se armaram com facões de pau e outras armas leves para enfrentarem granadas explosivas, canhões e metralhadoras do Exército. Os poucos sobreviventes fugiram para o reduto de Caraguatá, onde foram reforçados com a presença de trabalhadores desempregados da estrada de ferro. Maria Rosa, comandando uma cavalaria bem treinada, tendo como tropa de elite os “Doze Pares de França”, fez ecoar no sertão o primeiro grito de vitória dos oprimidos. Entusiasmados com o sucesso, surgiram outros líderes, como o tropeiro Chico Alonso, o advogado Antônio Tavares, o ex-marinheiro alemão Henrique Wolland, o peão de tropa Adeodato Ramos, Bonifácio Papudo, capitão Aleixo Gonçalves, Konrado Gröber e outros, multiplicando o número de redutos. A partir daí, os sertanejos tomaram a iniciativa dos ataques. Incendiaram a serraria da Lumber de Calmon, queimaram o cartório de Curitibanos, sitiaram Canoinhas, arrasaram Itaiópolis e tentaram se apoderar da cidade de Lages.
O plano estratégico do general Setembrino alcançou absoluto êxito com um cerco de ferro e fogo. Venceu os sertanejos pelo desespero da fome e do cansaço. As dezenas de redutos foram se concentrando na cidade santa do vale de Santa Maria, formando um grande reduto. Em 1915 os canhões e metralhadoras do Exército bombardearam o reduto-mor, matando quase toda a população que ali se juntara, cerca de dez mil pessoas. Estava terminada a Guerra do Contestado. As terras estavam livres dos intrusos e o capital estrangeiro pôde se dedicar à derrubada de milhões de árvores. A madeira produzida era levada para o Porto de São Francisco do Sul com destino ao Hemisfério Norte.
Os remanescentes dos sertanejos foram caçados pelos vaqueanos cujo líder maior era o coronel Manuel Fabrício Vieira. Guerreiro profissional que conhecia o sertão e tinha à sua disposição cerca de 250 homens armados. Essa operação foi chamada de Operação Limpeza e as vítimas permaneciam insepultas no sertão. Na maioria das vezes eram degoladas para não gastar bala.
A região do Contestado após a guerra foi repartida entre os Estados do Paraná e Santa Catarina. A terra pertencente ao Grupo Farqhuar, depois da extração das madeiras, foi dividida em lotes de 24,2 hectares e colonizada por imigrantes, com restrição ao assentamento de elementos nacionais.
O caboclo, marco vivo da ocupação lusitana no Planalto Norte de Santa Catarina e no Sul do Paraná, teve sua autoestima destruída com a alcunha de jagunço. O homem urbano passou a vê-lo com desprezo e na face do sertanejo ficaram impressas as cicatrizes da derrota. Não teve assegurado o direito à propriedade e passou à condição de empregado rural ou trabalhador sem qualificação profissional nas serrarias. Porém, o Sudoeste do Paraná, povoado depois do acordo de Limites, teve melhor sorte com a vitória dos colonos contra o latifúndio, viu crescerem prósperas comunidades, assentadas em pequenas e médias propriedades, com melhor distribuição de renda.
*Pecuarista e historiador, membro e primeiro presidente da Academia de Letras Vale do Iguaçu, de Palmas.
