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Francisco Beltrão
quarta-feira, 18 de junho de 2025

Edição 8.228

18/06/2025

Pedro Aleixo Felisbino: Os tempos mudam, o caboclo do Contestado não muda?

Passados 100 anos da Guerra do Contestado, muita coisa mudou. Basta citar que a agricultura está mecanizada, a mão de obra foi reduzida e a produtividade duplicou várias vezes. Mas “os caboclos de hoje, no Taquaruçu, ainda vivem tal e qual seus antecedentes: moram em pequenas casas de madeira, plantam apenas para o consumo, caçam e pescam para alimentar a família…” A observação, que está no livro “Voz de Caboclo”, é de um agricultor que vive naquela comunidade desde os anos de 1950, conheceu e entrevistou muitos sobreviventes da centenária “Guerra Santa”.

 

Pedro Aleixo Felisbino, o seu Pedrinho, é catarinense de Santo Amaro da Imperatriz, mas desde menino reside no Taquaruçu, interior de Fraiburgo (SC), onde aconteceu a Guerra do Contestado. Ele escreveu livro sobre aqueles acontecimentos.
Numa entrevista ao Jornal de Beltrão, fala do que mudou e o do que não mudou daqueles tempos.

Desde que comecei a ler e pesquisar sobre a Guerra do Contestado, ocorrida no atual Oeste catarinense de 1912 a 1916, desejei conhecer mais de perto aquela gente, não só em visitas, mas também em acompanhamento de seus eventos tradicionais, como a Festa do Senhor Bom Jesus, que é celebrada na comunidade do Taquaruçu há 148 anos, sempre no primeiro domingo de agosto.

Estive lá dia 7 deste mês, pensando em encontrar descendentes daquela gente que participou da guerra. Eu fora alertado por Pedro Aleixo Felisbino, através de seu livro “Voz de Caboclo, a saga do Contestado revivida nas lembranças dos sobreviventes do Reduto do Taquaruçu” (2002), que “os caboclos que hoje vivem no Taquruçu perderam-se no tempo, ainda vivem tal e qual seus descendentes. Moram em pequenas casas de madeira, plantam apenas para o consumo; caçam e pescam para alimentar a família; se mantêm crentes a orações, benzimentos e à imagem do monge João Maria”.

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E as festas, como esta do padroeiro Senhor Bom Jesus, como são? A sede da comunidade é igual às nossas do interior: no meio de propriedades com pastagens e lavouras está a igreja, de alvenaria, para 150 pessoas sentadas, pavilhão de festas com churrasqueiras, cemitério, árvores para sombra, um lugar bonito. O que tem de diferente das demais é um museu, com peças da guerra hoje centenária.

Pelas pessoas que vejo, o padre, a liturgia, os cânticos, a coleta durante o Ofertório, a Comunhão, me senti em casa. Será que aqueles caboclos se adaptaram aos costumes dos colonizadores que chegaram lá a partir dos anos de 1940 e hoje são todos iguais?

Dei sorte de encontrar, na festa, o “seu Pedrinho” (Pedro Aleixo Felisbino) e ele me confirmou que as diferenças permanecem, até nas celebrações. Numa entrevista gravada, confirmou o que disse no livro publicado 14 anos atrás. Os descendentes dos primitivos moradores não estavam na festa. Mais de metade era de visitantes de outras comunidades.

Catarinense de Santo Amaro da Imperatriz, Pedro Aleixo Felisbino está de aniversário, 72 anos, neste sábado (boa coincidência). Ele nasceu em 27 de agosto de 1944. Mudou com sua família para o Taquaruçu, hoje pertencente ao municípo de Fraiburgo, no fim dos anos de 1940. Agricultor, adquiriu vários sítios, hoje possui 100 hectares, metade arrendados para lavouras e metade para bovinos que ele cuida. Depois de adulto e com a família encaminhada, voltou a estudar, formou-se em História. Junto com a filha Eliane, publicou o livro “Voz de Caboclo”.

Pedro Aleixo Felisbino é casado com Lora de Lorenzi (ela foi professora no Taquaruçu por 26 anos) e tem cinco filhas: Alice, Eliane, Célia, Cláudia e Indaiana.

Pedro Aleixo Felisbino em frente à Igreja do Senhor Bom Jesus, no dia da festa do padroeiro.

 

 

De 1916 a 1948, como foi esse tempo aqui?

Esses 30 e poucos anos era tudo terra de direito de posse e também ninguém de fora se meteu, já que o caboclo reagiu até ao Exército Brasileiro. Ninguém se envolveu mais, por isso que ficou até 48. Dia 8 de fevereiro (de 1915), quando bombardearam Taquaruçu, mataram três ou quatro mil pessoas, eles viram “pôta, duas vezes eles resistiram às tropas”. Tomaram tudo os mosquetão, tomaram todo o armamento e comida do Exército, e já que dia 8 de fevereiro eles conseguiram chegar aqui e não atacaram na estrada, eles disseram “nós vamos dar no pé porque podemos ser abatidos de novo”. Então eles fugiram pra Serra da Esperança, Timbó Grande, Caçador. Por isso que a guerra foi pro norte de Santa Catarina.

 

Aqui ficou abandonado?

Ficou abandonado os ranchos tudo, ih, o quanto que morreu. Eles ficaram lá, mas quando viram que o Exército mudou pra lá, atacando, voltaram 90 e poucos moradores de Taquaruçu, fora os que morreram, e recomeçaram.

 

Eles voltaram, mas as terras não foram regularizadas?

Não, ficou a mesma coisa, aquele direito de posse, um vendia um alqueire pra um, outro vendia um pedaço pro outro. Nós tínhamos o Carlos dos Santos Vieira, ele nasceu em 1870, fazia um registro nuns papéis, ele listava “daquela imbuia grossa até na sanga é de fulano de tal”. Mais tarde, em 48, a companhia Formigueri, uma imobiliária de Videira, pegou essas terras pra dividir, 50% pro caboclo que tava em cima e 50% vendeu pros imigrantes, onde que nós viemos. As nossas raízes vieram trabalhar nas estradas de ferro de Porto União a Rio Grande e eles conheciam o trecho, porque de Curitibanos a Videira eles faziam a pé. Quando surgiu a terra, lá embaixo já tava pouca, todos vieram pra cá. Mas o governo adquiriu, atropelou os caboclos ali de 15.500 hectares e formou o núcleo Tetrícula, já nos anos 60 e poucos fez mais o núcleo Celso Ramos, comprou outra área e anexou, onde trouxe 30% japoneses e 70% povo da região.

 

O título mais antigo que tem aqui é de 1948?

É, 48, eu tenho escritura, eu comprei meu terreno nos anos 70, mas as antigas são de 48.

 

O seu pai foi assentado aqui e o seu sogro também?

O meu pai morou no núcleo Tetrícula, que fica dois quilômetros daqui, o Rio Taquaruçuzinho faz a fronteira e esses terrenos ali eram do meu sogro, mas o Antônio de Lorenzi, que é o pai do meu sogro, que foi o patriarca, o Luiz Bogo, a família Mazuco, os patriarcas que trouxeram os italianos pra cá, os Alberton, eles venderam os terrenos, compraram aqui e já outros foram criando coragem, porque deu muita rivalidade, a família Bogo andou se matando com esses jagunços, descendentes de caboclos, outros foram fugidos. O caboclo tinha uma cultura, o italiano tinha outra e deram de topo, deu briga.

 

Teve morte dos dois lados?

É, a gente quase não pode provar, porque ainda a justiça corre atrás disso, mas houve bastante acidente.

 

Por causa da disputa das terras?

Rivalidade, porque o italiano tinha aquela cultura, vieram pra cá, eliminaram os índios, “já que eliminaram os índios, vamos eliminar os caboclos também, são descendentes”. Aqui tinha uma grande quantidade de oca índia e tudo, o índio também foi vítima dessas causas.

 

O sistema de trabalhar do caboclo e do italiano era diferente?

Ainda hoje é, o caboclo só trabalha pra sobreviver, hoje estão trabalhando de diária com nós, temos aproximadamente 40, 50 famílias caboclas que sobrevivem quase do nada.

 

O senhor ficou com a propriedade que era do seu pai?

Não, tudo propriedade comprada do caboclo, que o caboclo se apurava e ia vendendo. Eu tenho terreno dos líderes da Guerra do Contestado, eles moravam no meu terreno, tá lá o escavado da casa deles. O seu Inácio Palhano era um dos Inácios que foram os líderes da guerra.

 

O que ficou de mais marcante em Taquaruçu?

Sabe, o que eu sinto é que a gente não pode falar a verdade, a gente cria rivalidade, porque o caboclo ainda hoje está passando pela Guerra do Contestado, o caboclo é o dono daqui, mas não se vê um caboclo na nossa festa. Eles não querem ser discriminados, preferem ficar no rancho, sentados perto do fogo, onde se sentem à vontade.

 

Até hoje continua o mesmo sistema?

Ah, continua! A igreja antes foi só mandada pelos caboclos, antes o caboclo fazia uma festa comunitária, todo mundo trabalhava, todo mundo comia, todo mundo se divertia. Aí o italiano chegou e tomou peito, por isso que deu rivalidade.

Os caboclos não têm as igrejas deles?

Não têm, porque são muito acomodados, eles até vieram fazer uma oração, mas aquela herança deles não pode ser mostrada; pode mostrar, mas não é valorizado.

 

Hoje a igreja estava lotada, mas muita gente não veio?

Não, 60 ou 80% era de visitantes, da nossa comunidade tinha bem pouca gente, as 50 famílias de caboclos não tavam aqui.

 

Pra mudar a cultura deles é difícil?

É difícil. O senhor sabe que a cultura não se muda de pai pra filho, a cultura tem as suas raízes, tem o seu sistema, e essa cultura fica de geração pra geração. Nós estamos a 400 e poucos anos no Brasil, mas o caboclo foi de índio pra escravo desde o início, tudo tem uma cultura, um estudo, a cultura é manhosa. O nosso caboclo foi escravo com índio, eles vinham pra caçar boiada no meio do pinhalão, então foi mais escravo. O português ficou no litoral, a serra verde, aqui veio refugiado do Rio Grande do Sul da Guerra Farroupilha, por isso que nós temos gente bem branca, parece descendente de alemão, mas eles eram refugiados, os escravos ficavam aqui caçando boi pra depois unir nas tropas pra Sorocaba. Mas aqui já pertenceu ao Paraná, Argentina, se vai do Rio do Peixe pra Cruzeiro, Joaçaba, ali tem as pessoas com mais de 90 anos e ainda tem resquício da Argentina, eles pertenciam pra outra estância, nós aqui ficamos no meio. Depois que foram feitas as tal de travessias nas terras que vieram essas outras origens, aqui era um refúgio. Curitibanos é porque os caras iam pra lá pegar boi e já a nossa comunidade foi formada pelos refugiados da Guerra Farroupilha, eles deixavam a família aqui, inclusive a família Webber, eles saíram daqui com 50 pessoas, os primeiros moradores de Taquaruçu, e foram, antes de 1800 e pouco foram pra guerra no Rio Grande do Sul e não voltou mais ninguém.

 

Muitas pessoas têm o sobrenome de caboclo e sistema de italiano.

Essa é outra cultura, os nossos caboclos aqui não eram registrados. Pra Guerra do Contestado eles tinham que ter nome, eles se registravam com o nome dos fazendeiros onde eles foram criados. Aqui saiu algum Almeida, porque ele tinha 50 pistoleiros e eram registrados pelo nome de Almeida; Macedo, devido a isso, que tem esses nomes portugueses, porque o caboclo não tinha suas raízes.

 

Qual seria o sobrenome do caboclo?

Ah, levando o nome dos portugueses é Santos, Moreira, tudo esses nomes assim. O indígena também não tinha sobrenome. Nós tínhamos gente indígena aqui, nos anos 90 nós enterramos uma índia sem nome e nem foi velada. As nossas raízes vêm de uma coisa muito rústica, por isso que eles não têm um nome. Em 48 eles doaram 17 hectares de terra pra igreja, hoje nós estamos fazendo uso desses hectares de terra, as pessoas de origem estão plantando na terra da igreja sem pagar a renda, tem potreiro, tem gado na terra da igreja, e o caboclo tá lá sem fazer a rocinha dele pra tirar o milho pra fazer uma canjica, porque não tem o terreno, então o poder faz a lei, faz a justiça.

 

Não seria de integrar o índio e o caboclo à nossa civilização?

É difícil se integrar porque eles têm a cultura de não trabalhar, eles viviam tão bem sem trabalho, por que agora eles vão trabalhar? E trabalhar é pra quem já tem no sangue, os nossos caboclos trabalham aí por dia, trabalham mais do que nós, mas são aquelas horas, aquela empreitadinha. Eu sinto isso no sangue, a gente foi descendente de Portugal, a gente trabalhava pro segundo ano comprar um pedaço de terra, comprar um boi, uma vaca de leite, e eles não, eles tendo a comida do dia… Ali tem um que o pai dele é remanescente da guerra, ele diz “os italianos de origem trabalham pra ter um caixão bonito, nós trabalhamos pra viver”. É tão difícil, e a gente se acomoda com essas coisas, a gente até quer mudar, mas pouco se muda.

 

E o museu do Taquaruçu?

Eu me interessei de fazer o museu, de resgatar material da guerra, porque o caboclo pegava mosquetão, cortava e fazia uma garrucha pra caçar. O caboclo pegava, por exemplo, o saibro da ponta do mosquetão e fazia uma faquinha pra andar na cinta. Daí que eu me toquei, “puxa, se a gente não guardar esse material”. Foi difícil porque os caboclos destruíram isso, eles gostavam do saibro, eles tomaram muito mosquetão das tropas pra raspar o porco, já ia destemperando na água quente. O caboclo nunca preservou nada da guerra, e também ele não ia preservar o que fez a desgraça dele, isso que eles diziam. Eles caçavam com as bombas, eles desmontavam a bomba, muitas eles cortavam o estopim e usavam a pólvora pra socar na espoleta e dos perdigotos eles atiravam contra os soldados. Daquelas espingardas a gente só comprou uma ou duas. Depois da guerra a polícia pressionou pra devolver material de guerra. O caboclo, com medo, já tava ameaçado, devolvia. A gente achou mosquetão até em oco de madeira, que os caboclos escondiam, eles não tiveram coragem de deixar na casa deles. Foi uma covardia que superou a guerra.

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