Médico veterinário como profissão, filho de agricultor quando garoto, sempre lidou também com animais. E ainda teve o tempo que foi carteiro e enfrentou cachorro dos grandes, em Curitiba. Sem falar da política, onde a disputa também é ferrenha.
Valmor Vanderlinde, prefeito de Eneas Marques, nasceu em Rio D’Oeste (SC), dia 1º de janeiro de 1955. É o segundo dos nove filhos de Humberto Vanderlinde (de origem holandesa) e Hilda Eller (de origem alemã). Quando cursou medicina veterinária em Pelotas (RS), sua família já residia em Salto do Lontra.
Como funcionário público estadual, foi chefe do Núcleo Regional da Seab em Francisco Beltrão. Na vida política, foi vereador por Salto do Lontra e prefeito de Eneas Marques.
Valmor é casado com Dalva Bonetti e tem três filhos: Tales (casado com Andressa Júlio Vanderlinde), Alana (casada com Leonardo Berkembrok, uma filha, Isabela – primeira neta de Valmor e Dalva) e Maria Eloísa.
Vida de prefeito é agitada. Mas Valmor desligou-se do presente, por algumas horas, para contar aos leitores do Jornal de Beltrão um pouco de sua vida, desde o tempo de garoto. Segue parte da entrevista.
JdeB – Em 1960 sua família trocou Rio D’Oeste pelo Rio Gavião, em Eneas Marques. O que motivou a vinda pra cá?
Valmor – Bom, era um pouco de moda também, era um modismo vir pro Paraná, nós fazia parte daquela leva de catarinenses que vieram ocupar o Sudoeste do Paraná, como muitos gaúchos também vieram pra cá. Era uma fronteira agrícola importante que, difundida naquela região de Santa Catarina que atendia, digamos assim, davam uma esperança, uma expectativa de vida melhor para os pequenos agricultores, e nessa onda meu pai também entrou, vendeu o terreno dele, vendeu os animais que tinha e (ele e outros vizinhos) botaram a mudança três, quatro famílias em cima de um caminhão e vieram para o Paraná em busca de melhores condições, terra dobrada que era terra boa, tinha bastante mato, a expectativa era que aqui pudesse ser melhor do que aquelas de Santa Catarina.
JdeB – E como foi a chegada do garotinho Valmor, de 5 anos?
Valmor – Primeira coisa que eu fiz foi me entrever lá no meio do mato. Meu pai me mandou ir lá na casa de um conhecido e eu, em vez de pegar um rumo, peguei o rumo ao contrário. Quando vi, imagina, no meio do mato e tal, mas foi tudo bem, não teve problema nenhum, a gente conseguiu encontrar novamente a casa, uma casa de chão batido. Veja bem, eu tinha cinco irmãos e mais quatro nasceram no Paraná, um total de nove, e a gente vinha com muita esperança de melhores condições, de produzir milho, feijão, criar porco, enfim, e aí a gente tão rapidamente mudou essa situação, da pequena propriedade, daquela coisa de produzir milho pra vender, isso de 1960, até 80, e em 20 anos mudou tudo, veio a mecanização, o processo agrícola diferente, os agrotóxicos, o adubo, a terra que se queimava duas ou três vezes já não produzia bem, houve uma mudança pra todas as pequenas propriedades.
JdeB – Começou no Paraná se perdendo no mato?
Valmor – Você imagina, 5 anos de idade no meio do mato, as estradas eram um trilho, eram de um jeito estranho, de tudo quanto é lado, mas eu, sei lá, segundo meu pai e minha mãe, eu mantive a calma, e andei bastante, enfim, segui um carreiro no meio do mato e depois, como eu andei muito, eu não me recordo se eu falei com algumas pessoas ou, enfim, que tipo de informação que eu tive. E como não tinha alcançado o objetivo de ter chegado na casa que meu pai tinha me mandado, eu decidi voltar e nesse retorno nós nos encontramos. Na época era bem interessante, as famílias eram todas enormes, como eu era o piá mais velho da família, quando meu pai precisava de alguma coisa, não tinha outra pessoa pra mandar, ele tinha que mandar quem conseguisse andar, então essa foi a primeira experiência aqui no Paraná.
JdeB – Chegou a também pegar na enxada pra ajudar o pai?
Vilmar – Muito, muito. Olha, nós era tudo mais ou menos da mesma faixa etária, e as primeiras poucas famílias vieram em 56, 58, mas 60 foi a grande leva, 59, 60, 61 e nós ajudava, a piazada que pudesse carregar uma chaleira de água, uma vasilha de água, levar um lanche pra quem tava trabalhando no trecho, ou uma pequena enxada, já tava junto, porque não tinha outra alternativa, muitas vezes até os pais tinham que levar os filhos junto, porque não tinha onde deixar. E eles trabalhavam, nossa, eu me recordo que trabalhei na roça junto com meu pai desde muito cedo, desde 7, 8 anos. Meu pai me deu um pedacinho de terra pra fazer uma escola no nosso sítio, as famílias se reuniram, pagavam o professor pra nós poder estudar. Meio dia nós ficava nessa escolinha e o outro meio dia nós ajudava a trabalhar, e a primeira tarefa que a criança fazia era levar o lanche na roça pros pais, se imagina uma roça de mil metros, um quilômetro de distância, você tinha que levar lanche. Era bem complicado, mas assim que funcionavam as famílias da época. A mãe tava em casa, fazia um lanche, trabalhando, às vezes a mãe também ia pra roça, e o filho tinha que ir junto. Eu me recordo desse tempo como um tempo bem interessante, todo dia era uma experiência nova, que tinha que sobreviver naquelas condições. E mais tarde, por exemplo, na nossa linha, do braço esquerdo do Rio Gavião que tinha mais ou menos 25 a 30 famílias, dava umas 300 pessoas, eu era o vinheiro da linha, sabe. Meu pai tinha uma junta de bois e tal, ou de charrete ou a cavalo. E quando eu ia no moinho ou Salto do Lontra que dava uns 18 quilômetros, ou aqui em Eneas Marques, um tal de Rio Gamela, Moinho Preto que chamavam, as distâncias eram de 15, 18 quilômetros para ir lá fazer uma farinha de milho, uma farinha de trigo, então intermediava com os vizinhos, quando eu ia com carro de boi, às vezes levava bastante mercadoria, eu chegava lá no moinho, o moinheiro ajudava a trocar o entrevero, eu não conseguia nem tirar os bois da canga, eu era muito pequeno, eles ajudavam, descarregava, trocava farinha, produzia farinha, botava em cima; saía de madrugada de casa e voltava na madrugada seguinte.
JdeB – Fazia isso com que idade?
Valmor – De 8 a 10 anos eu fazia isso.
JdeB – E tinha coragem pra encarar?
Valmor – Minha mãe só dizia “quando você encontrar uma pessoa, seja qual for a cara que ela tenha, diga bom dia, boa tarde”. Mas não tinha medo não, e o pai tinha que trabalhar. Eu tinha um irmão, que era bem certinho três anos mais novo que eu, nós dois ia, minha mãe fazia um lanche reforçado, nós levava em cima do carro de boi e com paciência fazia 18 quilômetros. E nós fazia com autoridade isso, sabendo que era importante fazer, porque a família precisava se alimentar, e nessa leva nós aproveitava pra comprar trigo, comprar açúcar, café, coisas que precisava na casa, então, tipo, eu era um mercadinho ambulante, e ia pra cidade uma vez a cada 60 dias pra buscar essas mercadorias.
JdeB – E além de levar um cereal e trazer a farinha, que outras atividades na propriedade fazia?
Valmor – Bom, eu era o parceiro do meu pai pra derrubar mato, eu com 8, 9 anos de idade, eu deixei de ir um ano na escola primária pra ajudar meu pai a derrubar mato. Primeiro que era difícil de arrumar gente pra trabalhar, e o meu pai, como era um pequeno proprietário, não tinha dinheiro pra pagar peão. Uma vez nós derrubamos dois alqueires de mata verde, era muito mato fechado, tinha tora lá de um metro, um metro e meio de grossura. Eu me recordo uma vez, eu e meu pai demoramos um dia inteiro pra derrubar um pé, com machado primeiro, fazendo a “barriga” que diziam, e depois com o serrote, e eu era o parceiro do meu pai pra serrar, trabalhava o dia inteiro. Mas trabalhava em condições normais, eu não me sentia escravo deste trabalho, hoje tem toda uma legislação aí, que diz que não pode trabalhar, e eu era o parceiro dele. A gente tinha que produzir, tinha que fazer. Minha mãe fazia outro serviço, eu ajudava meu pai derrubar mato, roçar mato, colher a produção, depois tinha que plantar o feijão, plantar o milho, depois de queimado, e nós fazia tudo normalmente, a minha irmã mais velha também ajudava. Eu, meu pai e minha irmã, nós éramos os três que estávamos permanente na roça, e eventualmente minha mãe ajudava também. Nós colhemos, uma vez, mais de 100 sacas de feijão dessa forma, carregando um carro de boi, malhando o feijão, batendo manualmente, e depois tirava aqueles morro todo, era muito trabalho, muito trabalho, assim que a gente se criou.
JdeB – Tinha tempo pra brincar com os amiguinhos, com os irmãos?
Valmor – Nós brincava muito, sabe, nós, você imagina, sábado e domingo. A minha mãe, sábado até a comida era diferente. Nós tinha expectativa, segunda, terça, quarta, quinta e sexta nós comia polenta, pão de milho, leite, essas coisas, qualhada, era uma comida bem natural, daí no sábado e no domingo minha mãe fazia um bolo, até hoje, com 80 anos, ela faz o mesmo bolo, da mesma forma. No domingo ela fazia também pão branco, rosca, muita rosca, nós era em 11 na família, uma loucura aquilo. Era tudo diferente, chegava em casa, até o cheirinho do pão era diferente, o bolo e tal. E nós ia na doutrina todo o sábado, meu pai não abria mão disso, e no domingo nós jogava bola, ia de manhã pro culto e de tarde jogava a tarde inteira. Pra ter uma ideia, nós tinha um campinho no potreiro do meu pai, próximo à escola, reunia 100 piás, dava cinco times de futebol, era uma pauleira, e aquilo era uma festa sabe, todo mundo, numa linha de 25, 30 famílias, reunia muita gente sabe, muita gente. Meu pai no domingo, antes de jogar bola, ele fazia nós ler a Bíblia uma hora, aí que o bicho pegava. Nós só tinha a Bíblia pra ler como livro, além dos cadernos de escola. Meu pai fazia nós ler a Bíblia, depois tava liberado pra ir jogar bola, então duas da tarde por aí e voltava umas sete da noite.
JdeB – E em que momento você disse não, peraí, eu quero estudar, quero ir pra Beltrão?
Valmor – Meu pai dizia sempre “olha piazada, vocês têm que estudar”. E mesmo sabendo da condição da família, que não tinha como pagar pra estudar, ele tinha uma visão, assim, que o mundo ia mudar, meu pai e minha mãe, inclusive eles tinham algum conhecimento de alemão, tinham a Bíblia em alemão, falavam em alemão. E eu vou dizer uma coisa, eu perdi uma grande oportunidade de emprego quando me formei em medicina veterinária, se eu soubesse falar alemão como meu pai falava, eu tinha feito uma pós, um doutorado na Alemanha. Toda vez que eles iam falar alguma coisa, pra nós não entender, eles falavam em alemão, e aquilo incomodava nós, dava impressão que eles foram afastando nós da língua. Se nós tivesse consciência que era importante aprender o alemão, quem sabe nós teria aprendido isso em casa. Ele sempre incentivava, tem que estudar e tal, e eu fui o primeiro. Um dia que surgiu, inclusive o pessoal tava fazendo o levantamento da região do Rio Gavião de quem queria estudar no Seminário São José em Beltrão, e eu dei o nome. Daí eu cheguei e falei pra mãe, “óh, eu dei o nome lá, eu quero ir”. Um dia desses vieram lá, perguntar se queria e tal, daí eu convenci o pai e a mãe pra estudar em Beltrão, daí em 69 eu fui estudar lá.
JdeB – E chegando lá, viu gente de vários municípios da região, e como foi essa adaptação?
Valmor – Veja bem, nós era em mais de 80 no seminário, tinha gente de todos os municípios do Sudoeste. Dalto Coelho era nosso colega, o Getulio Saggin, o Agenor Girardi que hoje é bispo, era da nossa época. E lá se tornou uma escola muito interessante pra estudar. O seminário tinha os padres belgas, o padre Valério, o padre Wilians, estudiosos da teologia e da filosofia, eles vieram pra uma região que tinha que fazer tudo, e nós aproveitamos essa leva. Você imagina um seminário interno com mais de 80 alunos, nós jogava muita bola, nós trabalhava, nós estudava, nós fazia confusão, fazia de tudo, e era um ambiente muito agradável, hoje eu só agradeço aquela oportunidade. No seminário tinha uma biblioteca fantástica. Eu, se não fosse o seminário, não teria condições de estudar e lá eu recebia a melhor orientação possível que tinha. Eu só agradeço, foi uma coisa interessante, e imagina você sair lá do Gavião, com poucos acessos à informação, a tudo. Eu me recordo de uma coisa que me chamou a atenção, em 1970 eu assisti a Copa do Mundo, nós tínhamos uma televisão bem pequenininha que o padre Ari arrumou pra nós, mas pra nós aquilo era um estádio na sala, eu acho que nós fazia o aquecimento melhor do que os jogadores que estavam lá no México, nós ficava concentrado pra ver o jogo, e após o Brasil ser campeão, saíamos de carreata por Beltrão, porque o padre era muito aberto a esse sentimento nacional, brasileiro, que era o futebol.
JdeB – Depois do seminário, foi pra Curitiba?
Valmor – Sim, eu saí do seminário e fui morar em Beltrão e comecei o segundo grau, daí fiz o concurso do correio pra carteiro, daí abriu umas vagas pra carteiro em Beltrão na ECT (Empresa de Correios e Telegrafos), daí eu comecei a trabalhar como carteiro, então eu já falei pro gerente “olha, se surgir uma vaga em Curitiba, eu quero ir pra Curitiba”, e um dia desses veio os boletins diários da empresa e tinha vaga pra tal função, daí já veio o convite, eu fui pra Curitiba. Não conhecia Curitiba. Transferi a escola também e comecei a trabalhar como carteiro em Curitiba. Fiquei mais ou menos um ano como carteiro lá, estudava de noite, trabalhava de dia, daí depois eu fiz o concurso interno do Correio e passei pra monitor postal e fui trabalhar interno na área de valores, no tempo em que as pessoas mandavam dinheiro dentro de uma carta pros parentes. Eu trabalhei um ano e oito meses nessa seção, eu trabalhava das 23 horas até as 6 da manhã, nesse período eu estudava de dia e trabalhava de noite, e assim terminei o segundo grau, depois resolvi fazer a faculdade.