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sábado, 31 de maio de 2025

Edição 8.216

31/05/2025

Quando queima de taquaral se transforma em tiroteio

Um agosto de 63 anos atrás

 

Por IvoPegoraro

Vejo semelhanças no clima deste mês de agosto com aquele de 1957: chuva, dias de sol, frio.

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O ano de 1957 foi diferente por causa da Revolta dos Posseiros; este ano de 2020 está sendo diferente por causa da pandemia do coronavírus.

Este texto – que escrevi nos anos 90 – classifiquei como conto. É baseado em fatos reais.  

Seu Ari Farofa foi vizinho de minha família, em Verê. Saudade dele. Aquele “se existia boa gente, era ele” eu acrescentei agora.

Estou revisando contos que escrevi. Ao revisar este, percebi as semelhanças. Se alguém quiser uma leitura diferente para o domingo, aí está. É coisa nossa. Vai lá:

 

Um tiro, como um beijo, tem repercussão bem maior que o efeito do momento. O beijo pode ser o início de um romance, que a sociedade acompanha apenas enquanto é novidade. O tiro é, muitas vezes, o desfecho de uma rixa, individual ou coletiva, que nunca mais se esquece. O beijo, essa bela satisfação de amor, fica no íntimo de cada um e acaba se misturando e se perdendo no turbilhão de acontecimentos que envolvem as pessoas. O tiro, aquele instante fatal, é recordado até a morte e sua história contada e recontada, chegando a passar de geração a geração.

Você sabe como foi o primeiro beijo que o avô deu na avó? Não? Mas se, por acaso, ele levou um tiro, mesmo que no tempo de mocinho, aposto que esse fato não só você, mas toda a família conhece.

São, ambos, acontecimentos marcantes, mas a diferença talvez esteja no fato de que, em vida, nem todos possam falar de seu “primeiro tiro”.

 

Se o estampido de um tiro pode ser inesquecível, quanto mais um tiroteio; e as consequências vão de uma grande insegurança à alucinação e ao desespero.

 

Foi o que aconteceu aos agricultores que participaram da luta aramada contra os jagunços e da Companhia de Terras Comercial, em Verê, dia 2 de agosto de 1957.

 

Durante a marcha, os colonos bravateavam coragem, mas foi só detonar o primeiro tiro que a maioria debandou. Teve quem chegou em casa antes do combate terminar. Mas uns ficaram. E atiraram e causaram sérias baixas aos inimigos, aqueles “baianos” mal-encarados, homens venais, sem escrúpulos.

 

Se antes os jagunços invadiam os lares e ameaçavam de morte os homens e desrespeitavam mulheres e moças, quanto mais agora, depois que o sangue escorreu e combatentes tombaram mortos.

 

A Linha dos Lageanos (mais tarde denominada União da Barra) localiza-se no primeiro vale após a vila do então distrito de Pato Branco, na direção de São João, o primitivo Guabiroba. Estende-se do alto do morro até às margens dos rios Santana e Chopim.

 

Os colonizadores daquele vale, como a maioria da região, também eram gaúchos, mas durante a migração tinham residido alguns anos na região de Lages, Santa Catarina. Daí serem conhecidos por lageanos.

 

Os lageanos estavam entre os que comandaram a tropa de colonos que, marchando na direção Norte-Sul (ao contrário da tropa que chegou antes e pelejou e que seguiu para Barra do Santana na direção Leste-Oeste), não chegou a participar do combate. Os homens desta tropa, todavia, ouviram de perto todo o tiroteio e, de lá, regressaram apavorados, imaginando até coisas que não chegaram a acontecer.

 

Os lageanos não teriam mais sossego. Rápido, juntaram algumas tralhas e, levando mulheres e filhos, vararam o Rio Santana e amoitaram-se no mato, como bichos. Nas moradas só ficaram o gado, as aves e um ou outro peão. Estes, que não tinham posses e não temiam perseguições, passaram por corajosos.

Ari Farofa, outro gaúcho, era morador da mesma linha, mas não fazia parte do grupo dos lageanos; não tinha nada contra eles, mas tampouco eram íntimos amigos. Basta lembrar que ele integrou a tropa de Barra do Santana e participou diretamente do combate. Sua espingarda, de cano duplo, calibre 20, lançou chumbo grosso duas vezes. E só não cuspiu mais fogo porque era de carregar pelo cano, do tipo “espera um pouco”. Os jagunços é que não iriam esperar que os colonos recarregassem suas armas. As metralhadoras cortavam buva à meia altura: levantar-se do chão seria pular para a morte e, abaixado, não dava para manusear a vareta, para socar a pólvora, as buchas e os baletões.

Cessado o combate, Ari Farofa foi esgueirando-se entre os arbustos, depois rastejou até um tronco de pinheiro e dali subiu o morro. Lá no alto, fora do alcance de qualquer bala perdida, sentou-se muito calmamente num tronco de angico para fazer um cigarro, daqueles bem caprichados.

Um grupo de jovens passou por ali, procurando briga. Ele aconselhou que retomassem pelo mesmo caminho, pois descer ao povoado, àquela hora, seria zombar do perigo.

Cigarro aceso, foi voltando para casa, pelo mato e picadas, contornando os morros. A mulher, Julieta, que ficara rezando, veio recebê-lo ansiada; ficou mais tranquila ao vê-lo salvo e inteiro e foi chamar os três filhos menores.

— Nerso, ô Nersinho, podem sair daí do quarto! Chame a Gessi e o Adelino debaixo da cama, venham dá a bênção pro pai.

Enquanto contava o acontecido, recarregou a espingarda e colocou-a sobre um pé de cedro, nos fundos da morada. “Se os jagunços aparecerem, fujo pro lado da arma”, planejou.

Ari Farofa, que participou da briga, devia ter mais motivos que os lageanos para fugir, mas não fugiu. Embora sempre atento para qualquer movimento na estrada e o acôo da cachorrada, foi retomando sua rotina. Todas as tardes passava pelas casas abandonadas — e isso já estava fora de sua rotina— e ajudava os peões a tratar as criações.

Do alto do morro, onde morava, o calmo e atencioso Ari – se existia boa gente, era ele – observava tudo atentamente. Eram dias frios e de muita chuva, os rios encheram. O povão tinha perdido a vontade de trabalhar. Só se falava em trocar de sítio, vender, se possível, e ir embora.

A vida seguia e já a Primavera queria despontar, seria o tempo de preparar as roças, queimadas, em grande parte, para o plantio.

O Adão Soares, vizinho lá de baixo que também não tinha se envolvido nas lutas (comentavam que ele assinou contrato, por isso estava sossegado), começou cedo as roçadas. Chuva, garoa, chuva, mas, de repente, dois dias de sol… Ele resolveu deitar fogo numa roçada de taquaral.

Assim que ouviu os primeiros estalos, lá do alto do morro o Ari Farofa pressentiu: “Isso não vai dar certo. Os lageanos estão escaldados, desconfiados como o caboclo que acha cobra no carpido: mata a bichinha, mas depois, é só o capim estalar, com o vento, ele pensa que é outra cobra e salta, defendendo-se com a enxada. Assim estão os lageanos, com medo de tiros. O Soares queima a roça, nem que avise antes, eles não se controlam mais, vai espantar co’a lageanada.”

Pedra cantada: aconteceu bem assim. Foi começar o estalo das taquaras, debandaram numa disparada igual à de boi novo atacado por vespeira. Alguns perceberam o engano e retornaram a seus acampamentos, mas dois deles ninguém pôde segurar. Raimundo de Souza era o velho, pai de família numerosa; com ele levou o filho José.

— É, a pessoa assustada perde o rumo— comentavam os que ficaram.

Partindo quase da confluência do Santana com o Chopim, os dois lageanos foram atorando mato até o anoitecer. A salvação deles foi terem encontrado nós-de-pinho, para a fogueira. Não fosse o fogo, poderiam ter morrido, nem tanto pelas feras como pelo frio, pois o dia amanheceu coberto de geada. O velho ainda era doente. No dia seguinte prosseguiram a fuga para, numa caminhada sem descanso, alcançar a casa de um conhecido— Estêvão—, em Palmas.

Raimundo e José voltaram de Palmas somente quando os jagunços tinham erguido seus acampamentos e a paz voltara ao meio rural; suas mulheres e filhas já estavam em casa.

Tudo não passou de um susto, levado a tais consequências, mas o clima de alucinação não mais os abandonou. Em poucos anos, não havia mais nenhum lageano naquele lugar. Um por um, venderam a terras e foram todos embora.

Rio Santana em União da Barra, divisa de Verê com Itapejara D’Oeste.

 

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