Geral

No sábado à tarde, a gente fugia para o Rio Gaiovicz. Tínhamos que abrir uma porteira velha para entrar. Eu sempre tinha medo que alguém nos pegasse. Preferia pular a cerca. Mas os piá, não. Felipe era o mais corajoso. Interrompia o padre, no meio da missa, pra dizer que o horário da próxima ia ser muito cedo. Saltávamos dos balanços naquelas águas repletas de meninos magrelos e faceiros. Hoje, quase todos casados e barrigudos. Às vezes, as meninas iam também e a alegria era outra.
Algumas vezes subíamos pelo rio até a Mata Nativa. Era a maior aventura de todos os tempos. Caminhávamos nas pedras quando a água era baixa, nadávamos onde a água era mais funda e caminhávamos pelos barrancos. Às vezes, com um caiaque emprestado sem o dono saber. Ninguém mandou ele deixar na beira do rio com uma corrente tão fraca. Quando ainda era cedo, do dia, subíamos até o angicão. Um galho que ficava quase no meio do rio e que era o lugar mais alto para pular, a gente pulava umas mil vezes. Lembro do dia que serraram o angicão. Por coincidência quis o destino que eu estivesse no rio naquele dia. Senti uma dor no peito. Uma tristeza. É como se serrassem uma parte da infância, da vida, da memória, da paisagem, daquilo que era nosso.
Quando algum pai levava, íamos até o Passo da Sepultura. Era acima do angicão, não dava pra ir pelo rio. Aí, dava medo. Histórias, estórias, aparições, vozes, cavalo sobre as águas. Lembro até hoje a primeira vez que atravessei e vi aquela cruz no meio do mato. Outro dia fui lá. O medo foi quase o mesmo. Na adolescência, já íamos sozinhos. Assávamos carne espetada na varinha feita de galho de árvore e a churrasqueira com pedras amontoadas, era a melhor carne do mundo. Temperada com sal comíamos sem acompanhamentos na mão suja de terra. O facão cortava um pedaço para cada um. Depois que conheci o Gordo descobri que atravessando o Passo da Sepultura e caminhando na trilha, podíamos achar pinhão nas terras do Dalla Costa. Eu fui uma vez, apenas. Eles se criaram por ali. Acontece que a gente cresce. Sinto vontade de ir à Mata Nativa na quarta-feira, à tarde, e dar um mergulho sozinho. Mas não vou. Até o horário de verão que permitia esses passeios tardios ainda com a luz do sol, não existe mais. Parece que tiraram justamente para não irmos. É engraçado. Acontece que tudo muda. O mundo. Acontece que o Rio Gaiovicz não é mais frequentado por ninguém. O angicão não é conhecido para quem nasceu no século 21. Não pegamos mais o caiaque emprestado sem o dono saber. O rio deve ter saudades dos meninos magrelos e faceiros.
Acontece que tudo muda e, ao mesmo tempo, fica aqui. Na memória. Naquilo que é a única coisa eterna nesta vida até o coração parar de bater. Depois disso, nada. O pó. O vazio. Essas palavras. 60 anos Marmeleiro! Nos 29 últimos, eu estive aqui. Eu estou aqui. As memórias são lindas.
Nostalgia pensar em tudo isso numa quinta-feira, à noite, com o Nereu pedindo o texto até na sexta. Mas foi tão bom lembrar. Com tantas histórias. Nós. O município. O mundo. Essas terras. Somos feitos de histórias. Que venham muitas tantas. Muitas outras. Que possamos contar. Histórias curam. São o bálsamo do espírito. A alegria da alma. A cor do mundo. Histórias.
