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Francisco Beltrão
domingo, 29 de junho de 2025

Edição 8.235

28/06/2025

O triste fim do Alfredo

Imagem gerada por IA.
Imagem gerada por IA.

Da Vila Paraíso ao trevo do Alto Alegre/Ouro Verde, ele conhecia as duas margens da rodovia PR 281 como a palma das próprias mãos. Desde quando o trajeto era apenas uma picada no meio da mata densa de araucárias – pinheiros; pouco tempo depois, uma larga estrada de terra batida, escorregadia e barrenta em dias de chuva, e poeirenta em dias de sol.

Esse tempo durou pouco, pois a voracidade do homem predador encarregou-se da derrubada sem piedade. O sertão transformou-se rapidamente em lavoura cultivada por fortes braços humanos que roçavam, capinavam e revolviam a terra com arados puxados por bois de canga, até que apareceu o trator de esteira arrastando os troncos enraizados das árvores arrancadas a foice, machados e serras manuais. Aí tudo ficou fácil, pois as máquinas aliviaram os trabalhos braçais.

O agricultor Alfredo Bregherolli – um italiano boa gente, honesto e trabalhador incansável até a idade sexagenária – acompanhou e vivenciou todos os perigos e dificuldades dessa época. Destemido, enfrentou cobras venenosas e lagartos do papo amarelo, onças, tigres e jaguatiricas; enfim, armado de espingarda, facão na cinta e botas de couro nos pés, conquistou seu espaço e construiu a sua morada. Só não passou sede de água porque água havia em abundância, mas fome…

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O Alfredo morava no meio do caminho entre a Vila Paraíso e a localidade Alto Alegre. Às vezes num, às vezes noutro desses dois lugares ele ia, sempre a pé, saciar a sede perene de uma “marvada” que o viciara lá no início da vida nos idos.

Enquanto os veículos ficavam atolados nas valetas em dias de muita chuva, o Alfredo, com o trançante cacho-de-aguardente, seguia, a passos lentos e cambaleantes, o caminho de casa. Chegava sempre… molhado. Um dia, depois de anos de rotina, ele não chegou.

Após ter tomado umas e outras na bodega do Alto Alegre, saiu pelo rumo certo da estrada que o ‘levaria’ de volta, sem pressa, naquela noite chuvosa e relampejante. Só nunca mais chegou.

Na manhã do dia seguinte, um motorista de caminhão avisou ao bodegueiro que, não muito distante dali, havia um homem caído na beira do asfalto.

Era o Alfredo, resistindo à morte… agonizante. Sobrevivera ainda por dias numa cama de hospital, sem abrir os olhos nem a boca para nada mais falar. Não conseguiu balbuciar uma palavra sequer sobre o acidente, mas um prosaico vestígio denunciou que o suposto autor do atropelamento criminoso, que mais tarde confirmar-se-ia.

Um vizinho, inconformado com a falta de socorro e com o sofrimento do amigo, foi até o local do acidente. Encontrou lá um pedaço de pintura azul de um automóvel qualquer. Guardou-o no bolso da calça e passou a investigar por conta própria.

Não demorou muito para localizar, na mesma vila, um veículo – fusca – exatamente daquela cor, amassado no lado dianteiro com o para-brisa quebrado. “É coincidência demais”, pensou.

Procurou pelo proprietário e acabou descobrindo que o filho dele havia pedido o carro emprestado naquela noite para ir a um baile. Denunciado, deu a sua versão em depoimento: “Chovia muito e a visibilidade era pouca, não houve como evitar o acidente”.

Compreende-se com facilidade, a dificuldade está em entender a omissão de socorro. E são tantos os casos!

Culpa de quem? Da nossa (falta de) cultura ou da impunidade? Enquanto a minha dúvida persiste, o trânsito continua matando diariamente e os maus motoristas achando que fugir é a melhor saída. Como se a consciência não cobrasse depois!

Também não se pode generalizar. Nem sempre é o motorista o culpado, às vezes é o pedestre, mas é dever de consciência acolher a vítima atropelada. Neste caso, é possível que Alfredo tivesse se salvado. Infelizmente…

*José Antônio Rezzardi hoje é radialista em São João. É o dono da tarde com seu programa Mistura Fina, na Rádio São João. Esta crônica foi publicada há exatos 22 anos, dia 9 de maio de 2003, no Jornal de Pato Branco.

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