Por Julia Helena Rathier – Dia desses, enquanto arrumava o lixo pra levar pra fora, uma garrafa se quebrou. Aproximei cuidadosamente todos os cacos da pá com os movimentos da vassoura, já lembrando que o próximo passo era separar aqueles cacos numa só sacola, e nomear “Vidro quebrado”, pra evitar que alguém se machucasse.
A próxima coisa que me ocorreu foi a lembrança de que minha mãe havia me ensinado a fazer isso, quando eu ainda era criança e estava aprendendo sobre a reciclagem do lixo na escola.
Nesse momento, me perguntei se havia alguém que determinou que coisas básicas no mundo- como se preocupar com o outro- ganhariam o nome de gentileza e não de obrigação. Afinal, não é incomum que haja gente que as confunda.
Me perguntei também desde quando havia ficado tão caro refletir, uma vez que o preço de estar atento pra alguns tem sido motivo de uma coleção de tristezas enquanto pra outros é de uma preguiça inegociável ou falta de consciência.
Pensei que essas tristezas que vêm estampadas com consciência de classe jamais serão tão caras a quem separa o lixo de dentro de uma casa e não tem medo da chuva, como são para alguém que além de não saber se irá comer no dia seguinte, tem esses tipos de preocupação.
Me ocorreu rapidamente o desconforto de lembrar que algumas confusões são estapafúrdias. Como a de confundir a obrigação, o mínimo e o respeito com a gentileza.
Pensei que algumas delas acontecem por escolha, principalmente no momento em que alguém decide não reconhecer seus privilégios e esquecer de certos abismos no sistema.
Por fim, pensei na empatia. Lembrei que a maioria das coisas só deveria ser realizável a partir da consciência de onde vieram e de onde estão. Que o que separa o conforto do confronto são duas letras e que ninguém perde tempo ao lembrar que não vive ilhado.
O vidro me desbloqueou algumas coisas. Deve ser porque ele é translúcido. De certa maneira, eu já sabia que a maior gentileza que alguém pode oferecer é aquela que ninguém pediu. Também sabia que consciência de classe, empatia, educação e respeito não são coisas inatas e que é tendo essa percepção que a gente se dá a oportunidade de não confundir obrigação com gentileza.
O que eu espero continuar aprendendo é que algumas obrigações simplesmente não podem ser chamadas de gentileza. Essencialmente quando revelam dores e sintomas sociais.
Psicóloga Julia Helena Rathier
CRP 08/31830