Porco Zio
Essa semana fez quatro anos que cheguei na casa do nono Paulo e encontrei o portão cadeado. Não era praxe daquele velho sexagenário trancar sua chacrinha lá na Linha Gaúcha. Sempre gostou de visitas e sempre recepcionou tanto os íntimos como os desconhecidos de forma bastante simpática, com seu vocábulo incrementado de blasfêmias mal ditas, ato que lhe era mais uma demonstração de amizade que de antipatia. Quem dera tivesse o nono vivido em outras épocas seria conhecido por Paulo, O Blasfemador. Inloquiçado, caquedo, imundícia, diabedo, e outros adjetivos que a moral restringe eram constantes em seu léxico campeiro.
O festival de ditos indecorosos só terminou quando um enfarte pegou de surpresa o velho Paulo, que pelas condições sinalizava mais várias luas de vida. E que “porco zio” é a morte, diria ele; ainda mais se ela chega logo no início da manhã, quando ainda está na primeira cuia de chimarrão e se tem um dia todo planejado. É sacanagem da grossa. Você planta o feijão, mas não pode capinar e nem colhê-lo, alimenta diariamente os leitões, mas não irá carneá-los, não poderá tragar o paiêro recém-feito e nem verá a classificação final do Colorado no Brasileirão. E a lenha rachada na frente da casa? Quem irá recolher se ameaçar chuva?
Ela, a morte, deixa pendências à vida.
Adepto do eucentrismo, fazia questão de exaltar as qualidades dos frutos de seu trabalho. Suas mandiocas eram as mais viçosas, seus cachorros os mais bravos, sua chácara a mais cuidada e seus leitões – um batizado de Chico Bento – de melhor qualidade que os dos vizinhos.
Era um dos raros tipos que ainda habitam a Terra, desses que mantêm a autenticidade que falta às pessoas de hoje, principalmente aos palestrantes motivacionais. Em nada se assemelhava àquela imagem idealizada de um avô numa cadeira de balanço na sacada de casa brincando com os netos. O velho Paulo era meu parceiro de chimarrão, exímio contador de causo, conselheiro amoroso e dupla no truco. Xucro ao extremo, cavalo batizado. Achava graça nesse negócio de vasectomia, carregava a Carta Celeste num bolso, as palhas e o fumo n’outro, dormia escutando a Guaíba no rádio-relógio e me permitia vinho e salame à vontê. Fiquei órfão das conversas em roda do fogão a lenha, onde recomendava: “Nunca pechinche com mulher da vida”. Tudo isso virou só nostalgia.
Deixou de herança pouco mais que um baralho de truco engordurado, uma bíblia em russo e um exemplo, legado no sangue e na memória. Por seus vícios se equilibrarem às virtudes, talvez tenha penado no Purgatório antes de ir ao céu, ou ainda esteja no limbo. Mesmo assim, não deixe de interceder por nós aí junto do São Jorge, nono, que a coisa aqui embaixo tá preta. Porco dio, amém!