Cacique da aldeia de Mangueirinha diz que preservar as araucárias foi um árduo trabalho
Ângelo Kretã, cacique da reserva indígena de Mangueirinha durante seis anos, morreu em 1980, com 37 anos, em decorrência de um acidente automobilístico até hoje duvidoso. Os índios afirmavam, na época, que foi armada uma emboscada para o maior líder indígena do Sul do país. A suspeita surgiu da longa batalha entre índios e madeireiros, que queriam derrubar o pinhal. A briga durou anos.
Em 1949, o governador do Paraná Moisés Lupion fez um acordo com o governo federal, que permitia a venda de parte das terras indígenas de Mangueirinha. Em 1961, o governo devolveu as terras aos índios, mas mutiladas de nove mil hectares, que foram vendidos a um grupo de madeireiros. Dois anos depois, a empresa Slaviero comprou esta área. Muitos kaingangs foram expulsos destas terras e suas casas foram destruídas. Em 1973, a Funai entrou na justiça para reaver as terras indígenas.
Os antepassados dos índios que hoje moram na aldeia compraram essa terra em troca de mão-de-obra. Eles abriram as primeiras estradas da localidade.
E, para contar um pouco sobre a conservação da floresta de araucárias da reserva, a maior herança deixada por Ângelo Kretã, o JdeB entrevistou o atual cacique, Valdir Kokoj dos Santos, que lidera a aldeia desde 1998. A localidade possui mais de 150 mil pinheiros, o que representa a maior floresta de araucárias nativas do planeta.
JdeB – Qual é o cuidado que a aldeia tem com a reserva das araucárias?
Valdir – Quem deixou essa reserva para nós foram nossos avós, tataravós. Eles ganharam essa terra e cuidavam bastante, pois não queriam que ela terminasse. Na época deles, tinha invasão de madeireiros, de grileiros de terras, que queriam derrubar as árvores. Então a gente toma esse cuidado. Como hoje eu estou na liderança como cacique, sigo aquele mesmo ritmo deles, porque acho que o índio sem a floresta é difícil viver. Na cidade se pode morar, mas não é como se fosse aqui, que a gente vive num lugar livre. Aqui não tem perigo nenhum por parte das famílias, das crianças. Então, apesar da degradação que houve no passado, por madeireiros, arrendatários, que entravam e não saíam mais da aldeia, ainda temos a maior reserva de araucárias nativas do planeta. Nossos antepassados pensaram em nós, sabendo que a gente ficaria no lugar deles. Da mesma forma nós pensamos no futuro das crianças, para que elas ainda conheçam nossa terra, conheçam a araucária.
JdeB – O senhor, inclusive, expulsou algumas famílias indígenas que estavam vendendo araucárias nativas, em 2005. Como foi isso?
Valdir – Essas famílias, na verdade, não eram nascidas aqui. Vieram, de outras terras, do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, de outras aldeias. Eles moravam aqui há mais de 20 anos e aí partiram para esse lado de venda de madeiras nativas. E a gente sabe que isso é ilegal em terra indígena, pois essa terra, a madeira, não são nossas. E foi uma questão muito difícil para nós. Passamos dois anos lutando na justiça, na procuradoria, Polícia Federal, Funai e Ibama fizeram vistoria na aldeia onde estava havendo a derrubada de pinheiro. Mas como essas entidades não tinham muito o que fazer, se passaram dois anos e eu lutando pela melhor forma de resolver, para que não houvesse um conflito, pois os índios naturais daqui, de Mangueirinha mesmo, não aceitavam o que tava acontecendo. Eles diziam: “Vamos, nós temos que tomar uma providência, a araucária vai se acabar!” Muitas vezes a justiça foi deixando de lado e a comunidade teve que expulsar as famílias, praticamente à força, porque nem à Policia Federal eles obedeciam. Assumiram vários compromissos, com procurador, com Funai, com Polícia Federal, com delegado federal, dizendo que haveria a parada, mas chegavam na aldeia e continuavam, os pinheiros estavam sendo tombados. Ficou grande parte dos pinheiros derrubado no mato, apodrecendo. E aí os nativos mesmo tomaram a iniciativa. Mais de 300 famílias se uniram e expulsaram essas outras 22 famílias. Tinha índios na outra aldeia da frente que só pensavam em vender madeira. Era um dinheiro mais fácil, e os madeireiros também chegavam, ofereciam. A necessidade do índio na época era grande, por isso acabaram entrando na jogada, vendendo um patrimônio natural. Depois foi feito um documento com o Conselho Indígena de Caciques e a Polícia Federal, decretando que as famílias expulsas deveriam ser levadas para outras terras. E, de 2005 pra cá, não houve mais a retirada, não houve venda. Hoje, os índios estão trabalhando. Alguns na agricultura, outros como professores, empregados em indústrias. As prefeituras começaram a investir mais em estrutura. Então facilitou mais, hoje não tem mais esse problema de passar necessidade.
JdeB – Mas houve embate direto com essas famílias?
Valdir – Houve até lesão corporal, tanto do lado deles quanto do nosso. Só que a gente era maioria. Fomos pro embate, foi na pancada, na paulada. Eles foram amarrados com cordas e mandados embora. As mudanças foram mandadas depois, a Funai apoiou com o transporte de mobília de casa. Tiveram que sair, porque não era certo não cuidar no futuro. Se não preservarmos, meus netos e tataranetos não vão conhecer o que é um pinhão, que hoje eu conheço.
JdeB – Como eram os conflitos que os seus antepassados tinham com as madeireiras?
Valdir – Isso aí já vem de tempos atrás, a invasão de terras, não só em Mangueirinha, mas em várias aldeias. Eram pessoas que queriam plantar na aldeia e tirar madeira. Antigamente, na época do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e Funai tinham serraria dentro das aldeias, que foram devastadas. Hoje todas as aldeias ao redor não existe floresta igual a nossa. É mais capinzal. Está se fazendo de novo e isso aí vai levar mais de 50 anos. Aqui ainda nós tivemos a sorte de ter o cacique Ângelo Cretã, que morreu em 1980. Ele foi um cacique que debateu essa questão, retirou a serraria que existia na aldeia. Conforme a história que minhas tias, meus avôs, meus pais contavam, eles tiraram a serraria daqui porque eles serravam a madeira e não viam retorno. E o Ângelo, como cacique, foi uma pessoa muito importante nessa época. Ele deu um prazo para a Funai sair, porque nem casa pros índios eles faziam. A madeira era toda vendida. E todo o recurso ia pra Brasília e, de lá, não retornava. O Ângelo era uma pessoa muito inteligente, ele tomou posição e expulsou as serrarias.
JdeB – Caciques sempre tiveram ofertas tentadoras para vender madeira ilegalmente?
Valdir – Uma reserva indígena não é diferente da sociedade, não. É como um prefeito, um deputado, que pode se trocar por dinheiro. Alguns caciques faziam isso. O madeireiro vinha na casa, ele ofertava uma quantia, os caciques acabavam caindo e começavam a vender madeira. Então sempre houve esse tipo de coisa. Quando eu assumi, em 1998, houve várias propostas, mas como eu pensava no futuro dessa reserva, a situação dos meus parentes, então não parti para a venda de madeira e arrendamento de terra. O dinheiro que vem fácil ele é fácil de ser gastado. Eu queria uma ajuda da prefeitura, do governo estadual, até mesmo da Funai, que tem muito pouco recurso, mas eu batalhava em cima para que não fosse preciso destruir. E graças a Deus a gente foi feliz e conseguiu que as famílias conseguissem produzir uma agricultura com recursos que vieram do Estado. Pela proteção das araucárias, a gente recebe um recurso, que vem via prefeitura.
JdeB – Em relação à agricultura, como que funciona o sistema do plantio que vocês fazem?
Valdir – A gente tem uma associação de produtores que coordena uma quantia de lavoura de 32 alqueires. Essa terra é usada para manter a nossa estrutura. Então, quando eu assumi, não tinha mais que 15 alqueires de lavoura na aldeia. Hoje nós já temos 300 alqueires de lavoura, a maioria dessa área é familiar. Desde que as famílias queiram, tenham vontade de trabalhar, a gente dá total apoio, temos um equipamento de um milhão de reais, entre trator, pulverizador e plantadeira. Tem cinco tratores na aldeia e todos eles com equipamento. Então a pessoa que quer, a gente consegue ajudar para que ela produza. E uma boa parte, que não quer a lavoura, é funcionário de empresas. Ainda é pouco recurso que a gente tem, eu gostaria que o governo investisse mais para dar o atendimento que a gente quer. A gente recebe o ICMS Ecológico, através da prefeitura, que não dá pra atender todas as famílias, mas a gente tem a lavoura, que consegue manter a estrutura. E outra, o índio não paga nada pra ele plantar. Ele consegue é a semente e o adubo, o restante é por conta da associação. O índio vai pegar o dinheiro na hora da colheita e fazer o que ele quiser.
JdeB – Como é a divisão? Por exemplo: se há dez índios que querem produzir, vocês dividem a terra em partes iguais?
Valdir – Boa parte dos índios já tem o sítio. E um respeita a divisa do outro. Não tem marca, não tem nada. A gente sabe isso aqui é meu, pra lá é teu. Desde a época dos nossos antepassados.
JdeB – E, se chega um índio de outra aldeia e quer produzir. Mesmo não tendo terra, ele pode plantar?
Valdir – Nós, graças a Deus, temos terra de sobra. Desde que o novo índio respeite as nossas normas, é aceito como qualquer um, porque toda aldeia é da gente. Se eu for morar em Laranjeiras, desde que eu respeite as normas de lá, posso viver como se fosse aqui. E aí o cacique vai dizer: ?Lá tem um lugar que você pode plantar?.
JdeB – Mas essas terras não podem ser comercializadas? Nem entre índios?
Valdir – Não podemos vender, não podemos arrendar terra, é ilegal. Se um dia eu não quiser mais ocupar meu sítio, cedo pra outro e ele vai plantar. Dá continuidade da forma que ele puder.
JdeB – No começo do ano foi feito um manifesto em relação à regional da Funai, que foi transferido para Chapecó (SC). Vocês estão otimistas em relação à criação ou à reativação da regional no Paraná?
Valdir – Nós estamos. A gente fica com uma certa dúvida, porque o governo que passou, como vocês acompanharam, soltou um decreto sem consultar os povos indígenas. Eu estive em vários encontros, representando a aldeia, para discutir essa questão. Cheguei a ficar 22 dias em Brasília, acampado em frente aos ministérios. Numa hora lá, fechamos o Lula no Ministério da Justiça. Pressionamos para que ele nos recebesse, mas não conseguimos. Eles usaram a Força Nacional para nos afastar. Mas não paramos por ali, batalhamos sempre, fazendo reuniões de lideranças. Num encontro, em Ponta Grossa, veio um representante da Funai, que assinou um documento, deixando um prazo de 90 dias para discutir onde seria a nossa sede da regional. Então acho que vamos conseguir. Apesar que está num final de governo, a gente não sabe como é que vai ficar a partir do dia 31, que é eleição. No Governo do Estado também vamos pressionar. O Beto Richa se comprometeu de nos ajudar, tenho foto registrando tudo. Mas acho que ele vai sentar e discutir com a gente o que vai ser melhor para a reserva indígena de Mangueirinha. Tudo se resolve.