Moradores lembram do percurso para a formação da comunidade, desde o processo de negociação com a Eletrosul até os primeiros dias da instalação em Marmeleiro.

Por Lucas Carniel
Em 1989, começou a chegar em Marmeleiro a primeira leva de produtores rurais do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina para formar uma comunidade de reassentamento de terra no interior do município. Eram agricultores oriundos de regiões que seriam completamente alagadas poucos anos depois em virtude das operações da Usina Hidrelétrica do Itá, no Rio Uruguai. Esses produtores – eram 32 famílias – formaram a comunidade da Linha Itaíba, uma junção dos nomes das duas cidades que foram alagadas por conta da usina: Itá, em Santa Catarina, e Aratiba, no Rio Grande do Sul. Eles formaram o primeiro reassentamento de atingidos por barragens do Brasil.
Hoje, a comunidade possui 57 famílias que vivem principalmente da produção de leite, fumo e soja. De lá, saíram lideranças comunitárias de expressão, como presidentes de sindicatos, associações e até da Cresol. A localidade também se destaca no esporte, com títulos no futebol e no futsal. Mas quem passa pela PR 280 no sentido a Renascença, nas proximidades da Queijos Venetto, não imagina o quanto esses moradores tiveram de reivindicar para conseguir aquele pedaço de chão.
De acordo com a agricultora Claides Helga Kohwald, foram anos de negociação e greves até que a Eletrosul, empresa responsável pela construção da usina, adquirisse as propriedades para serem destinadas aos atingidos pela barragem.
“Na época, existia um projeto de 25 barragens no Rio Uruguai, mas ninguém chegou para os moradores e avisou que aquilo lá seria alagado. Quem descobriu foi um professor da URI, de Erechim [Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões]. Daí um padre da Igreja Católica e um pastor da Luterana começaram um trabalho de informação pra gente, porque até então não sabíamos de nada”, comenta a agricultora, que na época morava na comunidade de Água Verde, em Marcelino Ramos (RS).
“Podem indenizar tudo, menos nossos sentimentos”
A partir disso, os moradores das regiões que seriam atingidas iniciaram um processo de organização para tratar com a empresa da indenização das propriedades. Claídes lembra que o reassentamento daqueles moradores só foi possível graças a muito empenho e negociação com os executivos da Eletrosul. Essa organização deu origem ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entidade que existe até hoje.
“Fizemos a Comissão Regional dos Atingidos por Barragens, que na época tinha o nome de Crab, para realizarmos os encontros e acompanhar todo o procedimento. Nós que dissemos como queríamos as propriedades, qual o local mais adequado. Na época, até falávamos que podiam indenizar tudo, menos nossos sentimentos, porque em pouco tempo aquilo tudo ficaria embaixo da água, então queríamos viver e trabalhar num lugar que fosse semelhante”, afirma a agricultora, que era a única mulher no meio de 120 homens nas negociações com a estatal.
O documento, assinado em 27 de outubro de 1987, garantindo que os moradores seriam indenizados pelas obras realizadas no rio, é utilizado como modelo até hoje, tendo em vista que não existe uma política nacional assegurando os direitos de atingidos por barragens.
Acertados os valores e demais questões legais, a comissão dos atingidos pela barragem e a Eletrosul decidiram para onde eles seriam reassentados. Como a região Sudoeste possui características geográficas, culturais e econômicas muito parecidas às das regiões Extremo-Oeste catarinense e Norte gaúcho, optou-se por áreas de terra localizadas em Marmeleiro e Mangueirinha.
Naquele tempo, havia um medo muito grande dos moradores de serem reassentados em regiões muito distantes. “Enfrentei esse problema na minha família”, explica o morador Lorimar Berticelli, uma das lideranças da comunidade. “Na década de 1970, a Cotrel [cooperativa de crédito com sede em Erechim] levou muita gente para o Mato Grosso. Muita gente foi e famílias inteiras morriam por conta da malária ou até de fome. Quando chegou a nossa vez de sair de lá teve essa preocupação de ir pra outro lugar e termos esses mesmos problemas”, complementa.
“Decidi que seria Marmeleiro e fim de papo”
Muito por conta dessas experiências mal-sucedidas, quem estava no processo de ser reassentado era desencorajado por amigos e familiares. “Foi muito difícil vir pra cá, porque colocavam ‘minhoca’ na nossa cabeça. Eu era o braço direito do meu tio na fazenda, fazia de tudo, plantava, limpava, colhia. Quando foi pra vir pra Marmeleiro ele dizia que eu tava cometendo o pior erro da minha vida, dizia que aqui era igual barba de bode, ou seja, não dava nada. Dizia que iriam jogar a gente embaixo de um barraco de lona e deixariam que a gente ficasse por conta, sem nem ter o que comer”, afirma Alcides Canzi, o primeiro morador do reassentamento.
Quando ele veio conhecer a fazenda que seria transformada na comunidade da Itaíba, logo se sentiu em casa. “Na primeira viagem, vim conhecer o lote e disse ‘vai ser aqui mesmo’. Conversei com o capataz da fazenda, o Antoninho, e ele me disse que aqui era terra fértil, que dava de tudo, não tinha nada de barba de bode. No mesmo dia decidi que seria Marmeleiro e fim de papo”.
Os primeiros anos em Marmeleiro
Os primeiros anos morando no novo município não foram dos mais fáceis. Os moradores contam que no começo havia preconceito pelo fato de viverem em uma comunidade de reassentamento. “Foi difícil no começo porque a gente não conhecia ninguém e ninguém conhecia a gente também. Mas estávamos muito felizes porque viemos morar onde éramos os donos. Viver como vivíamos lá, como arrendatário, era muito complicado. Aqui a gente se sentiu bem desde o começo, porque já era uma cidade muito bem estruturada”, explica Alcides.
Aquela dificuldade inicial foi se dissipando com o tempo e hoje a Itaíba virou exemplo de organização. “Antes tudo isso era uma fazenda, depois chegaram 32 famílias que produziam e consumiam no município, fizeram a economia se aquecer ainda mais. A nossa comunidade é nova, tem só 30 anos, mas temos muito do que se orgulhar da nossa trajetória, porque daqui saiu presidente da Assesoar [Associação de Estudos Orientação e Assistência Rural]; da Cresol, além de um presidente ter sido daqui, éramos também a comunidade que mais tinha sócios dentro da cooperativa. Então a Itaíba tem um destaque muito grande nessa questão de organização e companheirismo”, destacou o presidente da associação de moradores, Sidney Kohwald.