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Francisco Beltrão
sábado, 07 de junho de 2025

Edição 8.221

07/06/2025

320 pessoas que esperam por transplante podem ter deixado de receber um rim este ano

Só no Paraná, 160 famílias se recusaram a doar os órgãos de entes que tiveram morte cerebral. Fila de espera para este e outros órgãos e tecidos ultrapassa 2 mil pessoas no Estado.

 

 

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A beltronense Camila Fernandes, 25, nasceu com apenas um rim “bom”. Até aí, tudo normal, como acontece com a maioria das pessoas que tem apenas um rim e consegue manter uma rotina saudável. Mas foi em 2009 que a vida deu uma daquelas reviravoltas em que a pessoa começa a duvidar até mesmo da própria fé. “Descobri uma doença renal crônica chamada glomérulo esclerose focal e segmentar, e fiquei sabendo que precisaria de transplante”, rememora.
Após testes de compatibilidade, Reinoldo Fernandes da Silva, pai de Camila, se tornou um fio de esperança de que o problema terminasse logo em agosto de 2010, quando aconteceu o transplante. Mas o corpo de Camila rejeitou o enxerto doado pelo pai três meses depois, dando início a um período bastante conturbado para ela e a família.
“Minhas chances de conseguir um doador compatível eram de 0,04%, pois já tinha passado por um transplante, rejeição, tratamentos, precisei de transfusões de sangue… coisas que fizeram meus anticorpos se prepararem para rejeitar qualquer corpo estranho no meu organismo. Me colocaram como prioridade na fila e, quando isso aconteceu, pensei que seria mais fácil, mas acabou que foi muito estressante. Pensei em desistir muitas vezes, cansei, deixei e voltei a ter fé. A última vez que desisti foi quando concorri a cinco rins em dois dias e não aconteceu. Foi um desânimo total”, conta.
A espera acabou no último dia 29 de outubro. Mesmo tendo caído para a segunda posição na fila de espera, Camila recebeu uma ligação ordenando-a que ficasse em jejum até o resultado dos exames de compatibilidade de um novo doador. “Como eles queriam que eu acreditasse que seria a minha vez?”, questionava-se. “Mas segui certinho e no outro dia, às 7 horas, minha médica, que a propósito nasceu em Beltrão, me ligou muito animada e disse: ‘Tá preparada pra receber a melhor notícia da sua vida?’. Quase não acreditei!”
Embora mais definitivo, o transplante pode não ser suficiente para o resto da vida. Nos próximos meses, Camila vai precisar usar máscara, nunca atrasar os imunossupressores, cuidar bem da alimentação, tomar muita água e recuperar o peso ganho em líquidos durante o tratamento pré-transplante. “No dia do segundo transplante ganhei 20 quilos, chegando a 77 kg, mas vou voltar ao peso normal, por volta dos 55 kg”, diz ela, que foi tratada, entre outros, pelos médicos beltronenses Roberto Pécoits Filho e Fabíola Pedron.

Mais de 2 mil esperam transplante no PR
A doação de órgãos ou tecidos pode acontecer em vida ou após a morte. Em vida, uma pessoa pode doar um dos rins, medula óssea (obtida por meio da aspiração óssea direta ou pela coleta de sangue), fígado ou pulmão (partes destes órgãos) – e ainda manter uma vida normal. Após a morte, podem ser doados também as córneas, coração, pâncreas e ossos.
Camila deixou uma lista de espera por doação de rim que, só no Paraná, tem 1.511 pessoas, de acordo com dados da Central Estadual de Transplantes (CET). É o órgão ou tecido mais aguardado por pessoas que passam diariamente por angústia semelhante à da beltronense. Em seguida vêm as córneas (380 pessoas), fígado (96), coração (46), rim/pâncreas (33) e pâncreas (15). No total, são 2.081 pessoas esperando por um transplante no Estado.
Esse número seria muito menor se mais famílias seguissem o exemplo da família Marafon, de Ampere. Eles decidiram doar os órgãos de dona Nair, 61 anos, que teve morte encefálica após um acidente vascular cerebral na última semana. A família escolheu o aproveitamento dos órgãos e o fígado foi levado a uma mulher de 38 anos em Brasília; o rim direito para uma mulher de 33 anos de Curitiba; e o rim esquerdo para um homem de 62 anos, também da capital do Estado.

Recusa familiar à doação é de 40%
Até 12 de novembro, a CET registrou 637 notificações de morte cerebral no Paraná, mas em 393 (61%) a doação de órgãos não aconteceu – e, destes, 160 (40,7%) foram por recusa familiar. No restante dos casos, ou ocorreu parada cardiorrespiratória (20,9%) durante o protocolo de captação ou os órgãos não tinham condições clínicas (29%) ou sucederam outros problemas (9,4%).
Dona Nair faleceu no Hospital São Francisco, onde apenas 20% das mortes cerebrais resultaram em doação de órgãos em 2015. Os motivos apontados vão desde desinformação e preconceito até mesmo a crenças religiosas – embora nenhuma doutrina seja contrária à doação. “A morte encefálica é a interrupção irreversível das atividades cerebrais, causada normalmente por traumatismo craniano, tumor ou derrame. Como o cérebro comanda todas as atividades do corpo, quando ele morre, significa a morte do indivíduo”, explica dr. André Kaiano, médico integrante da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos (Cihdott) do hospital.
Segundo o médico, não há dúvidas no diagnóstico. A avaliação da morte encefálica é feita por dois médicos de diferentes áreas que examinam o paciente, sempre com a comprovação de exames clínicos e de um exame complementar que avaliam os reflexos, a ausência de movimento ocular e fluxo sanguíneo no cérebro (arteriografia).

Família é quem decide pela doação
Não há necessidade de qualquer documento ou registro expressando a vontade de ser doador. “Basta apenas informar a família sobre sua vontade de ser doador”, instrui dr. Kaiano.
Constatado o óbito cerebral, é a família que tem o direito de optar pela doação ou pelo desligamento dos aparelhos. “Por lei, o hospital não pode, depois da morte encefálica, manter o paciente dentro da UTI. Abordamos a opção de doação como uma maneira de ajudar o próximo numa fase irreversível. A maior dúvida nessa hora é ‘como que morreu se o coração tá batendo, se a pressão tá boa?’. É difícil entender que morte encefálica é morte, mesmo que esteja funcionando o coração”, esclarece a enfermeira Ana Carolina Bonatto, coordenadora da Cihdott.
Segundo a psicóloga Gabriela Scopel, também integrante da comissão, é preciso respeitar o tempo de luto dos familiares para que eles reflitam sobre a morte do ente. “Houve um caso que quem ia autorizar a doação era a mãe da paciente, e ela falou que Deus tinha mandado a filha dela inteira e que levaria a filha dela inteira, que ninguém ia mexer nela. A decisão da família foi essa e a gente não contesta nada, damos total liberdade a eles e não podemos de forma alguma induzi-los”, complementa.

Como ganhar na loteria
Para Ana Carolina, os órgãos captados de dona Nair serão vistos como verdadeiros “prêmios de loteria” para quem os receber. “As duas pessoas que receberam o rim, por exemplo, são duas pessoas que não precisam mais fazer hemodiálise, então é algo tocante, algo que a gente não tem nem a dimensão de como que é, mas a pessoa nasce de novo. É como levar a Mega Sena”, afirma.
A família Marafon não quis dar mais detalhes sobre o momento em que decidiu pela doação, mas considera um “ato de amor ao próximo”. Já Camila, cujas chances de conseguir um doador compatível não chegavam a meio por cento, não sabe ao certo como seria a reação ao encontrar uma família doadora. “Sei como eu reagiria: com muita gratidão. Mas não sei como eles ficarão ao saber que tem uma parte de um ente querido por perto”, pondera. “Uma só pessoa pode salvar várias vidas. Sou a prova de que a doação traz qualidade de vida, faz um doente renascer, viver de novo, ter aquela paixão pela vida mais uma vez. Não tenham medo de ajudar o próximo.” 

Saiba mais sobre a doação de órgãos

Como funciona a logística? Após ser diagnosticada a morte encefálica no hospital e a família autorizar a doação, a CET/PR é notificada pela Cihdott sobre a existência de possível doador. Com isso, a central emite por sistema informatizado a listagem de potenciais receptores e mobiliza uma equipe médica especializada para a retirada dos órgãos e tecidos. Se a retirada ocorrer em cidade diversa de onde está a equipe médica, a CET/PR entra em contato com a Casa Militar do Governo do Paraná, que prontamente organiza o transporte aéreo. Entre a retirada do órgão do doador e o transplante no paciente, como o transplante de coração, não se pode ultrapassar quatro horas.
Para quem vão os órgãos? Para pacientes que necessitam de transplante e estão aguardando em uma lista única de espera do Sistema Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde.  No Paraná, todas as ações de distribuição de órgãos e tecidos são coordenadas pela Central Estadual de Transplantes.
Após a doação o corpo fica deformado? Nunca. A retirada dos órgãos é uma cirurgia como qualquer outra. O corpo do doador fica intacto e pode ser velado normalmente.
Você está muito velho para ser um doador. Pessoas de todas as idades e históricos médicos podem ser consideradas potenciais doadoras. Sua condição médica no momento da morte determinará quais órgãos e tecidos poderão ser doados.

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