“Nunca, de fato, a política de saúde mental foi efetivada no País”, diz a psicóloga Tatiane Pecoraro.

A declaração é de Tatiane Pecoraro, doutora em Psicologia e Sociedade pela Unesp, psicóloga, professora e pesquisadora da Unipar. A proposta de alteração nas políticas de saúde mental ainda não veio como uma portaria oficial. Há muitas notícias falsas circulando, mas a única certeza é que a saúde mental carece de atenção.
Apesar dos problemas de investimento nacionais, Tatiane comenta que no Sudoeste existe uma preocupação não só com a saúde mental, mas com a saúde de modo geral. “A gente tem índices de aplicação que são bons, comparados a outros lugares.”
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) foram construídos com o intuito de diminuir os internamentos e fechar os leitos de hospitais psiquiátricos. Uma das alterações é quanto à função do Caps, que passaria a ser um centro de reabilitação. Para Tatiane, isso seria um retrocesso de mais de 20 anos. Confira a entrevista.
JdeB – Como está a questão da saúde mental no Brasil hoje?
Tatiane Pecoraro: É difícil falar da questão da saúde mental no Brasil de uma forma geral, porque o nosso País é muito grande e tem muitas diferenças na atenção à saúde conforme as regiões. Mas, a partir da Lei nº 10.216/2001, que foi aprovada em 2001, ou seja, 11 anos depois da implantação do SUS, a gente entrou no processo de reduzir os leitos psiquiátricos e construir uma rede substitutiva, que tem como uma das principais instituições atuantes o Caps, que é o Centro de Atenção Psicossocial.
O Caps é configurado de diversos modos: Caps 1, Caps 2, Caps 3, Caps Infantil, divididos em Caps Álcool e Drogas, Caps de Transtorno Mental, de acordo com a realidade e o número de habitantes de cada região.
É importante lembrar que nunca, de fato, a política de saúde mental foi efetivada no País, a gente teve alguns problemas, como a demora da construção dos Caps, a relação com a equipe — muitas equipes eram contratadas de modo terceirizado, então não se fazia um concurso público que garantisse uma continuidade no trabalho —, entre outras dificuldades que são apresentadas, de gestão, por exemplo, e interferência de grupos de uma psiquiatria medicalizante.
Por isso, é muito difícil avaliar a política de um modo geral. Aqui no Sudoeste, existe uma preocupação de muitos gestores, não só com a saúde mental, mas com a saúde de modo geral. Então, a gente tem índices de aplicação e desenvolvimento das políticas de saúde que são bons, se comparados a outros lugares.
Quais serviços estão ameaçados?
A proposta ainda não veio como uma portaria oficial de mudança. Foi apresentada ao Conselho Nacional dos Secretários de Saúde e essa proposta previa algumas mudanças, como alteração da função do Caps, que passaria a ser um centro de reabilitação.
Isso é um retrocesso gigante, porque, na verdade, é comprometer a política pública de saúde mental como um todo se o Caps passar a ser apenas um serviço de reabilitação.
Hoje, os Caps têm uma função importante na recuperação, na estabilização de quadros graves, de transtornos mentais graves ou de uso de álcool e drogas graves, com um papel importante de auxílio matricial às equipes da atenção básica para adequar e melhorar o serviço.
O Caps seria o grande prejudicado, e é a base da nossa política de saúde mental. Mas existem outras políticas ameaçadas, algumas delas não se aplicam a nossa realidade pro número de habitantes, mas, por exemplo, as residências terapêuticas e os consultórios de rua, que estão sendo atacados.
Junto com essa portaria, vem a facilitação da internação compulsória, quando a pessoa não aceita ser internada. Então, é uma abertura para mobilizar um aumento do número de internações psiquiátricas e o retorno do hospital psiquiátrico, o antigo manicômio, como um atuante importante dentro dessa política.
Quais alterações poderiam causar esses danos?
É importante mencionar que essa não é a primeira mudança na política. No início do ano, o Governo Federal anunciou uma mudança nas formas de financiamento da atenção básica e um dos serviços que foi alterado era o Nasf-AB, que é o Núcleo de Apoio à Saúde da Família e Atenção Básica.
O Nasf tem uma configuração interdisciplinar e uma equipe que deve atuar principalmente na atenção básica, com apoio mesmo, de construção de projetos terapêuticos, de consulta compartilhada, de trabalhos em grupos para melhorar os serviços da atenção básica.
O que acontece é que esse recurso deixou de ser vinculado como um recurso próprio e passou a ser vinculado como um recurso da atenção básica, então, os municípios passam a gerir se vão montar um Nasf ou não, e qual é o perigo disso? Passa a depender da sensibilidade ou da prioridade do gestor para investir.
A maioria dos Nasf empregava profissionais de saúde mental, psicólogos, assistentes sociais, entre outros profissionais com formação em saúde mental, era um grande foco da intervenção. Esse foi o primeiro retrocesso na atenção básica.
Esses outros que se anunciam também são preocupantes, principalmente porque se cogita a extinção dos Caps voltados a usuários de álcool e drogas. Na nossa região, nós temos o Caps AD 3, que é da Associação Regional de Saúde e fica no município de Marmeleiro, mas atende a todos os municípios com serviços de acolhimento noturno, intervenções para desintoxicação, acompanhamento, reabilitação, entre outros.
Então, esse seria um dos serviços que estão cogitando ser extinto. Em Francisco Beltrão, também tem um Caps Álcool e Drogas, que dentro dessa nova política se cogita que seja extinto. Vários municípios menores têm Caps 1 próprios e tem o Caps de Transtorno Mental 2, vinculado à Associação Regional de Saúde, que sofreria muitas mudanças. Ele deixaria de prestar os serviços psiquiátricos e passaria apenas a prestar os serviços vinculados à reabilitação.
O que é um sucateamento da proposta do Caps. A nossa política de saúde mental seria duramente comprometida, porque isso não é só nossa região, mas sim para todo o País. Nós temos, hoje, mais de dois mil Caps que foram construídos com o intuito de diminuir os internamentos e fechar os leitos de hospitais psiquiátricos, que se tornavam verdadeiras cidades de esquecidos.

Quem mobiliza este debate?
Um grupo de psiquiatras, não são todos que estão favoráveis a essa mudança na política e eles estão dizendo que não têm eficácia, não há estudos para o Caps.
Tem uma quantidade gigantesca de textos e publicações que mostram a eficiência, não só quantitativa da implementação dos Caps, como também uma eficiência qualitativa, porque essas pessoas estão inseridas na comunidade, não perdem os vínculos com seus familiares.
Muitos dos pacientes que eu atendi, passado um período de atendimento no Caps, conseguiram retornar à vida, trabalhar e voltar a desempenhar as atividades cotidianas, isso é um avanço quando comparado com uma política de hospital psiquiátrico, em que a pessoa passava lá meses, algumas chegaram a passar anos, perdiam os vínculos familiares, passavam a morar dentro do hospital, o hospital em condições extremamente precárias, quem já foi a um hospital psiquiátrico sabe o quanto a realidade é difícil, e é sempre uma preocupação que a gente retorne aos abusos que foram cometidos, a gente tem aí o Hospital de Barbacena (MG), que é considerado o holocausto brasileiro, com mais de 60 mil mortos dentro de um hospital psiquiátrico.
A gente precisa olhar para o passado para não repetir os erros que já foram cometidos. Na medida que essa mudança se altera, a gente volta a ter o hospital psiquiátrico como um dos protagonistas nas intervenções, no atendimento e isso é um retrocesso de mais de 20 anos.
Nós temos que estar cientes do que isso significa, já tem vários setores da sociedade como outras frentes da psiquiatria, outros serviços de saúde se mobilizando para evitar esses retrocessos, ainda mais neste período delicado da pandemia em que se considera que a quarta onda seja relacionada aos transtornos mentais decorrentes do luto e isolamento, as pessoas precisam de condições dignas de atendimento.