Geral
O romance Mitos, publicado pelo jornalista Ivo Pegoraro em 1996, dedica o 33º de seus 40 capítulos ao naufrágio da balsa do Rio Iguaçu em Chopim Dois dia 19 de setembro de 1973, exatos 47 anos atrás.
Estamos chegando em Chopim Dois, todo mundo desembarca — ordena o motorista do ônibus —, a passagem do Iguaçu é de balsa.
Os passageiros “marcam” suas poltronas com blusas, sacolas ou pacotes, desembarcam apressados e vão descendo pelos lados da estrada, espavoridos, maravilhados, de olhos cravados no rio. O Iguaçu, que é imenso e milenar, segue seu leito indiferente à curiosidade das pessoas. Os jovens jogam pedras para ver até onde alcançam e os homens fazem apostas sobre a largura e a profundidade; as mulheres, dando a mão às crianças ou carregando-as no colo, chegam à margem por último, mas não com menos curiosidade.
Um homem de chapéu cinza, de pano, japona de gabardini dobrada no braço e botas rotas de bico fino, havia convidado um companheiro de viagem, que carregava uma pasta escura e usava chapéu preto de aba abaixada na frente.
— Sobe esse barranco que vê melhor. Olha lá em cima, chegue mais aqui, aquelas pontinhas lá, nessa vereda aqui, não avistou ainda? Se desse pra subir nesse rabo-de-bugio dava pra ver melhor, tá enxergando?
— Pra baixo daquela forquilha? — pergunta o segundo.
— Isso. Tá vendo? Aqueles são os pilares da ponte que o rio levou na enchente do ano passado.
— Vai me dizer que chegou até lá!
—Se não chegasse, não teria levado a ponte. E era de material! Imagine o que deu de água, me acuda San Genaro. Aqui onde nós estamos deve ter virado uma correnteza.
— Então foi água, hêm.
O homem de chapéu preto olha admirado aquele imenso vale. A expressão de seu rosto parece não admitir que um rio, mesmo sendo o Iguaçu, possa crescer tanto, ao ponto de colher uma ponte de alvenaria na ponta dos pilares, altos como troncos de peroba.
— Nem dá pra acreditar. Ala puxa!
— É o que eu estava lhe contando na viagem. Isso aqui virou um mar. Lá em casa tenho fotografias da enchente, vou lhe mostrar depois. Mostra o lado de lá. Deus que atáie, aquilo era um dilúvio, homem.
— Hoje o rio está normal?
— Normal, claro. Veja lá embaixo onde fica a água. Mas vamos descendo, o ônibus já subiu na balsa, se a gente não se aligeirar, fica a pé.
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Depois do rio cheio que o homem do chapéu preto imaginou, o Iguaçu do momento, visto àquela distância, lhe parece um riacho.
— Pelo que já deu de água nesse rio, hoje dá pra atravessar a vau, não dá? Se a balsa deixar nós neste lado, varamos no pique da bota, garanto que molha só o cano— diz, brincando, o homem de chapéu preto, que caminha de cabeça baixa, para desviar as pedras do cascalho duro que ficou naqueles 30 metros de acesso à balsa.
— O rio tá baixo, mas com o Iguaçu não se brinca. Eu tô cum mau pressentimento, não sei o que é.
— Peraí, se estiver com algum mau agouro, tem que espantar. Vamos subir com o pé direito.
Um espera o outro e os dois, rindo como garotos, põe juntos, num passo de balé, seus pés direitos sobre a balsa. Os balseiros já começam a desamarrar as cordas.
O Iguaçu parece manso e inofensivo. As águas estão turvas, mas resplandecem ligeiramente numa faixa estreita e comprida, onde, por uns instantes, espiou uma réstia de sol. Lá no meio, que não fica assim tão perto como representa à primeira vista, pescadores buscam mistura para a polenta de seus filhos, pescando pintados e surubis.
No barranco há linhas armadas para peixes grandes. Próximo às linhas, garotos pescam lambaris e saicangas. Uma libélula teima em pousar na ponta dos caniços, irritando os garotos: “Sai daí, piçudo do diabo”.
Certamente já houve dias de São Januário mais bonitos que esta quarta-feira cinzenta. O sol agora sumiu definitivamente. Talvez volte a garoar. Não há problema de tráfego, daqui em diante a estrada é boa, mas um entardecer de tempo nebuloso sempre traz melancolia, mesmo sendo no desabrochar da Primavera.
— Puxa! É mais largo do que eu pensava. Falavam num canalão, mas já vi que é quase igual a Marmelândia.
— O canalão é lá em cima, onde tinha a ponte.
— Será que não estão carregando demais essa balsa?
— Que nada. Eles costumam encher o que dá. São gente de muita prática.
— O meu medo é que encalhe.
— Encalhá? Não tem perigo. A fundura, neste ponto, é coisa muito séria. E também tem uma, quem não sabe nadar, se cair aí tá morto.
— Nem me fale, eu nem sei como se “puxa água”.
O homem de chapéu preto está preocupado, vê a balsa muito carregada. Tem o ônibus, dois caminhões basculantes (transportam operários da Usina de Salto Osório), um caminhão de bebidas e lá atrás deixaram subir mais um táxi.
— Pelo jeito, assiste luta livre.
— É, de vez em quando, se a televisão pega bem. Lá em casa os guris não perdem um telequete.
O rio é fundo, mas a balsa, depois de carregada, custa a soltar-se da cabeceira. Por mais que faça força, a lancha não consegue arrancar. O jeito é apelar para a tática de sempre: um caminhão acelera firme e dá uma brecada seca no final da balsa. A freada faz a balsa baixar na proa, levantando a popa, momento em que a lancha puxa e pronto. Inicia-se mais uma travessia do Iguaçu. E vamos depressa que tem mais carros esperando!
Um balseiro orienta o motorista. “Quando chegar aqui, junte no freio, entendeu?” “Pode deixar comigo.” O caminhão ronca alto, arranca firme e frrrrrammmm! Os pneus deixam uma nova marca de borracha sobre a prancha. A freada se dá no ponto certo. A balsa inclina-se para a frente, bruscamente, mas depois continua inclinando-se, inclinando-se, inclinando-se; a popa solta-se da cabeceira com tal ímpeto que começa a erguer-se da água, e continua erguendo-se, erguendo-se, erguendo-se. E a ponta da frente baixando, baixando sempre mais. Santo Deus, desse jeito os carros vão acabar deslizando sobre as pranchas! Estala a faísca de um princípio de pânico. Lá na barranca alguém grita: “Cuidado! Essa tralha vai afundar.”
Várias pessoas ainda conseguem saltar para a terra. As que ficam sentem o drama de um desastre. Aos gritos, procuram segurar-se umas nas outras. Seus corpos, que estavam perpendiculares ao assoalho, continuam eretos, mas aquele ângulo de 90 graus vai diminuindo para 80, 60, 50 graus. É o caos. Nada segura mais nada, ninguém segura mais ninguém. Salve-se quem puder!
Segurem-se! Um caminhão desliza e beija a água de bico. O motorista nem tem tempo de abrir a porta e some no fundo da água. Que horror! Atrás do primeiro, mergulha outro caminhão, e — Segurem-se! Alguém acuda! — mais outro, e o ônibus e o táxi, junto com seus motoristas. Eu não sei nadar! E muitas pessoas caem juntas. Cena terrível! As que estavam soltas no meio da balsa descem para a água como espigas de milho jogadas na boca da trilhadeira. Muitos ainda conseguem agarrar-se às cercas laterais — Óh, meu Deus, obrigado por me dar um santo tão forte! — mas é uma esperança de salvação que dura pouco, porque em alguns instantes a própria balsa, que havia empinado a popa, acaba sendo inteira tragada pelo Iguaçu, com lancha e tudo. Os corpos se chocam uns contra os outros. E batem na balsa e nos carros e na água. Jorra sangue que o Iguaçu bebe como um vampiro gigante com apetite insaciável. Não adianta beliscar o braço, acredite, é verdade, ainda está acontecendo.
Em poucos segundos, aquele turbilhão infernal de corpos e carros batendo-se e sendo engolfados pela água se acalma. Na margem, estão todos aterrorizados. Mãe! Maaaaaãe onde você está? Gritos, urros, berros. O olhar de cada um, mesmo entre as crianças que ainda seguram seus caniços de pescaria, é de incredulidade.
Inacreditável, a balsa mergulhou, desapareceu por completo. Forma-se um gigantesco remoinho, que vai descendo o rio com certa velocidade, igual a um dedo de morte que risca sem piedade o local da tragédia. Mas em seguida —olha lá um, corram! — começam a surgir, mais para baixo, braços encamisados que dão braçadas incertas e tresloucadas, bocas que cospem água e gritam suplicando ajuda. Socorro! Socorro! Quem está na barranca corre para acudir. Jogam-se cordas, empurram-se caícos. Braços são esticados. Eu aqui! Gargantas escancaram-se em desesperados pedidos de ajuda.
Garotos vestidos somente com um calção querem jogar-se na água, mas seus pais os contêm. Um homem gordo, que veio nadando, volta repentinamente a mergulhar e consegue salvar um amigo magro que não sabia nadar. Obrigado – vomita água —, você me salvou. Uma vozearia geral tumultua toda a margem, mas o rio volta ao normal rápido demais. Cessam de aparecer nadadores e sobre as águas turvas do Iguaçu restam somente alguns chapéus e várias dezenas de capacetes brancos que estavam nas cabeças dos operários de Salto Osório.
— Meu Deus! — exclama uma mulher — será que tão pouca gente sabia nadar! Os outros não vão vir? Alguém precisa mergulhar, tem muito mais gente pra salvar.
— Onde está meu marido?
— Cadê a minha mãe?
— Salvem meu irmão!
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No dia seguinte, a Copel mandou guindastes de 65 toneladas para içar os veículos e a balsa. Somente lá pela meia-tarde chegaram os homens-rã para retirar os corpos. Grande multidão observava, nos dois lados do rio.
Um sobrevivente, ainda em estado de choque, fazia o seu relato: “Eu tentei pular fora da balsa, mas não deu tempo. Quando vi, tava no fundo. E levei muita sorte, caí livre, porque outros foram esmagados entre os carros e as pedras. Eu queria sair de lá, mas uma mulher com uma criança se agarrava em mim. Senti que íamos morrer os três, a correnteza nos levava para o fundo. Só lembro que dei um empurrão para desgrudar a mulher, daí consegui subir, respirar e me salvar. Já tinha tomado muita água. Nadei para a margem e alguém me ajudou a sair da água. Não vi mais aquela mulher nem a criança. Procurei a noite inteira, não estão aqui, devem ter se afogado. Agi errado, agora vou morrer de remorso. Ai, meu Deus, eu não consigo me conformar”.
O homem chorava igual uma criança.
(Obs.: quem lê todo o romance Mitos fica sabendo que, entre os mortos no naufrágio da balsa do Iguaçu, estava o pai de Odete, que não queria o namoro dela com Renato)