Geral
![]() |
Baleeiro na região dos Gerais, de que falava Guimarães Rosa, cortada pelo Rio Urucuia, Noroeste de Minas Gerais (maio de l997). |
Nasci em Belém do Pará. Com 5 anos fui para Minas Gerais, onde vivi até meus 12 anos. Nunca peguei o sotaque mineiro, jamais usei “uai”. O fato de, todos os anos, entre 55 e 62, voltar a Belém por quatro meses, acho eu, impediram que assimilasse o dialeto do mineiro do povo, da gente humilde que fala comendo sílabas, estropiando o verbo, usando palavras que não existem noutros estados. O mineirês é o falar mais sui generis do Brasil. Guimarães Rosa viu isso cedo, na sua Cordisburgo, como depois o viu Mário Palmério (que passou dois anos navegando pelo Amazonas em seu barco “Frei Gaspar de Carbajal”, mas não teve a coragem de fazer literatura com o que testemunhou nos rios do Amazonas). Nada escreveu.
Lembro-me do falar bem mineiro de dona Chiquinha, tia de Zé Mariano, da Rua da Várzea. Ela dizia: minim homem, minim muié. Para criança doente, chamava de “minim perengue”. Moleque meio sapeca era “fiote de cruis credo”. A velha Lozinha, uma marmota que andava pela Lagoa Santa, simbolizava a antiga Minas, representava uma antiga prosódia e sintaxe vinda dos fundos das montanhas mineiras, perdida no isolamento de séculos, que tinha sabor seiscentista da Lagoa do Sabarabuçu, do Ribeiro do Carmo, da Vila Rica de Ouro Preto, do Arraial do Tijuco, da velhíssima Minas do ouro. Diz o mineiro capiau: entonces, pra mode, tomovi, cador de café, vosmicê. Gente chata é entojada, padre é sô vigário Belzonte. Ônibus é jardineira. Sandália de corda é urucubaca (alpargata). Soube em Minas de parentes tortos nossos, de sobrenomes Baleeiro, que deixaram nome na música caipira como Praião e Prainha. Nunca pude contatá-lo. Não sei se vivem. Seria o lado caipira de nossa família, cujas raízes brasileiras estão em Cachoeira, na Bahia, de onde Januário Coelho Baleeiro partiu para o Amazonas, região de Tefé, em l890, na busca de fortuna com a borracha.
O falar mineiro inspirou uma língua a Guimarães Rosa, verdadeiro trabalho de ourivesaria linguística. Notável poliglota, criou a língua literária do Grande Sertão: Veredas. Ninguém fala no sertão do Urucuia, em Arinos, em Unaí, nos Gerais, por onde andei, como escreve Guimarães Rosa, mas ele soube criar artisticamente uma língua única na literatura brasileira.
Um dia, lembro-me bem, passou lá por casa Zeca de dona Chica da Várzea para pedir um dinheirim pra minha mãe. Queria tomar uma pinguinha. Indagado se voltara a beber foi sintético: “Vortei pra catoca veia!”, que traduzido para bom vernáculo seria “voltei para a católica velha, para os velhos caminhos”… Da bebedeira, claro.
Seu Raimundo Litro, que passava sempre por casa para algum serviço, chamava a enxada de cacumbu e copo de “copim”. Cubu era o angu doce que comia na merenda. Como havia muito cupim pelo campo, nunca se sabia se ele queria um copo d’água ou ia tirar cupim no pasto para jogar para as galinhas. Quebrava pedações, sempre cheios de milhares de cupins, alimento apreciado pelas aves.
Mineiro é mestre em juntar as palavras, em simplificar a frase. Onde é que eu estou fica: Oncotô? Percisavinão! (Não precisa vir, não!). Semodaquimemo (Somos daqui mesmo). Semoseiscumjão (somos seis com o João). Pótiráostrensdaí! (Pode tirar as coisas daí!). Lembro-me de minha primeira viagem a Diamantina. Na visita a uma venda, num distrito, o dono da venda me disse carquediaissoquicipa: qualquer dia isso aqui emancipa. A mais célebre batatada dita por um mineiro atribui-se a Benedito Valadares, interventor no tempo de Getúlio Vargas. Num célebre discurso ele desejava dizer quiçá do Brasil, saiu cuíca do Brasil!
Minas passou séculos isolada, em meio as suas montanhas. Desenvolveu um sotaque inconfundível. Basta que um mineiro diga três palavras para que eu reconheça. Habituei meus ouvidos àquela entonação, à velocidade com que falam, aos cortes que fazem nas palavras, na frase, na conjugação do verbo. Curiosamente, JK não tinha sotaque típico de Minas. Basta ouvir gravações. Passou longas temporadas no Rio de Janeiro. Também perderam, em parte, o sotaque, o “acento”, a “tonada” mineira Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Otto Lara Rezende e Hélio Pelegrino. Mas todos sabiam o mineirês.