
No Rio Grande do Sul, talvez por haver uma tradição mais consolidada do que no nosso Paraná, ‘terra de todas as gentes’, a fidalguia é mais reconhecida. Mas na Europa a diferença entre fidalgos ou nobres e burgueses tem uma longa trajetória histórica.
Marx acreditou que a burguesia acabaria com a aristocracia e depois o proletariado acabaria com ela, mas deu errado, ainda que sua análise não deixe de ter valor ainda hoje. O fidalgo, diferentemente do burguês, não fala ou não se preocupa com dinheiro, mas sim com arte (inclusive da guerra), política, diplomacia, cultura, bons modos, etc. Mas com a ascensão da burguesia aconteceu que a aristocracia se viu em “maus lençóis”, pois foi economicamente arruinada.
Daí a importância dos casamentos “arranjados” para enobrecer a família burguesa de um lado e do outro, salvar economicamente o nobre decaído.
No fim do século 19, o avô do meu avô tornou-se um grão burguês, investindo em ferrovias e no comércio exterior. Mas não teve sorte com os quatro filhos: apenas uma casou com um conde, mas dado ao jogo de apostas, uma outra ficou freira, uma outra casou com meu bisavô, um aventureiro, e, por fim, o único filho homem virou boêmio que, para se sustentar, vendia promissórias “para descontar quando papai morrer…”.
O resultado foi que, amargurado, redigiu seu testamento pelo qual – descontada a parte legal – sua fortuna ficaria com o município de Florença, com a finalidade de fazer a fachada da histórica Basílica de São Lourenço. Por que ele não entregou diretamente para a Igreja? Porque, como bom burguês, ele era o que na Itália se chama de “laico”, ou seja, contra a hierarquia da Igreja e o poder papal. Sim, um liberal.
Mas a Prefeitura não cumpriu com o testamento do falecido, e até hoje a Basílica continua com a fachada por fazer! (olhe no Google). Meu avô, que foi um homem pobre, não conseguiu acionar a justiça para reverter o legado, de modo que a fortuna foi dilapidada. Sim, aquela filha que casou com um conde teve cinco filhos, que não deixaram herdeiros.
Minha avó perguntava para meu avô, “para quem teus primos vão deixar a Villa (palácio no meio rural)?”. E ele respondia, ironicamente: “Aquilo vai acabar virando um manicômio criminal do Estado”. Não errou por muito, pois tudo aquilo acabou nas mãos do município.
Mas vejam, com toda a histórica tradição cívica de um município como Florença, terra de Maquiavel, com uma cultura cidadã muito acima da nossa, e ainda assim, os governos locais desconhecem direitos e cuidam mal do patrimônio histórico. O que se pode esperar, então, aqui dos nossos governos locais?
Para um município ser próspero não precisa ser grande e nem muito rico, basta ser articulado e conectado com o mundo. Muita riqueza sempre leva ao desperdiço. O investimento em cultura e na participação popular, nas suas mais diferentes formas, sempre torna um município melhor. Mas o mundo burguês, muito rico, dispõe proporcionalmente de menos dinheiro para a arte e a cultura do que no tempo em que o poder econômico não tinha tanta força.
Florença, uma das cidades com maior turismo do mundo, “não tem” dinheiro para fazer a fachada de uma das suas basílicas. Talvez seja sorte nossa, não ter grandes obras de arte para preservar e assim podermos cuidar melhor da nossa qualidade de vida.