Beltrão

Também gaúcho formado em Canoas, Vicente De Carli chegou em Francisco Beltrão no ano de 1971, mas seu tempo de irmão lassalista foi em Minas Gerais. Aqui foi professor e presidente da Cooperativa Mista Francisco Beltrão (Comfrabel). Quem conta um pouco de sua história é a filha jornalista Viviane de Carli.
O professor Vicente De Carli veio para Francisco Beltrão em fevereiro de 1971 com a esposa, Élide Maria Baú (ex-freira). Aqui na cidade residiu por 36 anos, até sua morte, em 24 de setembro de 2008 (viveu 66 anos). Teve 5 filhos e deixou 6 netos e um legado no cooperativismo agrícola e também na educação de Francisco Beltrão.
O professor Vicente De Carli nasceu dia 4 de março de 1942, na comunidade rural do Rocinha, na cidade gaúcha de Três de Maio.
Na época, nem todos conseguiam estudar. Mas o Vicente sempre demonstrou interesse em seguir a carreira dos estudos. Iniciou no Rio Grande do Sul, em Canoas, cursou o Normal. Em 1963, seguiu para Machado (MG), onde fez o Escolasticado (período de formação dos Irmãos que correspondia à formação espiritual de La Salle e ao mesmo tempo cursava o segundo grau, naquele tempo chamado Colegiado). Depois, ao deixar a Congregação Lassalista, casou-se no Rio Grande do Sul e veio em seguida para o Paraná, onde fixou residência em Francisco Beltrão, no ano de 1971. Vicente De Carli era formado bacharel em Língua Portuguesa/Literatura, pela faculdade de Bagé, Rio Grande do Sul.
Durante todo o tempo em que Vicente lecionou, sempre trabalhou Língua Portuguesa. Lá em Machado, esteve no Ginásio São José dos Irmãos Lassalistas. Ele foi coordenador do Ginásio e possuía muita habilidade para lidar com os alunos e toda a dinâmica da educação. Por exemplo, com um estalar de dedos obtinha o silêncio da turma toda. Um estilo que o acompanhou durante toda a sua carreira.
Também era um grande líder e suas ações o destacavam. No internato onde lecionava, cada turma tinha um Irmão responsável chamado “prefeito” e Vicente era o prefeito dos alunos das classes menores.
Vicente era um homem simples que amava a educação. Assim que tomou o hábito (batina), havia a opção de trocar de nome, mas ele optou por permanecer com o nome de Irmão Vicente. Além de aulas e do período do internato, o professor Vicente também se dedicava a esportes: ele era o técnico de times de futebol de salão. Viajava pelas cidades vizinhas e combinava jogos. Como técnico, acumulou várias vitórias para os times da cidade.
Gostava de ousar em suas habilidades e uma curiosidade, inclusive compartilhada com a família e seus filhos, era a de que ele sempre participava de campeonatos de sinônimos. Ele realmente era bom com as palavras. Amava quando era questionado sobre os diferentes significados de uma palavra e, por conta disso, acumulou, quando jovem, vários troféus dos concursos da época de sinônimos.
Além das aulas, todos os Irmãos Escolásticos tinham um serviço para a coletividade: limpeza de banheiros, de salas, lavar louça, descascar legumes, cuidar das orquídeas, dos apiários… Vicente trabalhava como encadernador: os livros da biblioteca que apresentassem avarias passavam por esse setor para serem recuperados.
Histórias do Irmão Vicente
Entre as inúmeras histórias que Vicente sempre gostava de compartilhar, ele contava que, ao viajar a Machado, chegou em Poços de Caldas e não havia ônibus (apenas aquele estilo jardineira, em que as pessoas transportavam também porcos, galinhas…), porque era período de chuva e os ônibus não conseguiam passar pela estrada de terra. Então, o irmão diretor do Ginásio São José mandou um motorista com um Jeep buscá-lo em Poços de Caldas. Eis que estava ele de batina, muito magro, uma única mala com uma troca de roupa. Quando o motorista pegou a mala, achando-a muito leve, falou bem alto: “Irmão, te assaltaram! Não há nada nesta mala”. E sorria, ao lembrar de um tempo em que sua saúde era um pouco comprometida.
Outra história que sempre ouvíamos dele era de que, ao chegar em Machado, no Ginásio São José, foi-lhe indicado um quarto junto aos dos outros irmãos. Certo dia, teria pousado um urubu na janela. Aí ele protestou: “Tô magro, mas não morto!”, e contava mais uma história com bom humor, sempre transformando as experiências da vida em motivação para seguir em frente.
Durante o ano de 1964 (o do Golpe Militar), foi o primeiro ano de magistério do Vicente e até 1966 permaneceu como Irmão Lassalista. No início de 1967, haveria um retiro (período de recolhimento espiritual) e no final dele, se continuasse como Irmão Lassalista, teria que fazer a Profissão de Votos (acho que perpétuos).
Vicente era jovem e, como havia muita desorientação, pois havia terminado o Concílio Vaticano II, resolveu não renovar os votos e saiu da congregação. Mas, na ocasião, os irmãos da congregação pediram para que ele e outros dois colegas continuassem a lecionar no Ginásio São José sem dar publicidade do desligamento da irmandade. Por conta desse pedido, o professor Vicente permaneceu em Machado.
E como em 1967 havia só uma turma de alunos internos e o professor Vicente era o prefeito, foi neste período que começou a cursar a faculdade de Letras em Guaxupé, a uns 150 km de Machado. A viagem era feita de Kombi, saindo ao meio-dia para chegar em Guaxupé de tardezinha para as aulas. Assistia às aulas sexta-feira de noite e sábado de manhã e de tarde. Chegava de volta quase meia-noite. Mas Vicente só concluiu o curso de Letras em Bagé (RS), durante as férias escolares, isso depois de casado, em 1971, quando já morava em Beltrão.
Professor cativante
Durante todo o trabalho como professor, que teve início em Machado, o meu pai sempre manteve um estilo de lecionar que cativava alunos, pais e toda a comunidade.
O professor Vicente sempre teve um jeito absolutamente democrático para lidar com a educação. Ele passava confiança, mantinha sempre um processo educativo de olho no olho com o aluno. E os alunos internos, que tinham as famílias longe, buscavam no professor Vicente a referência de um pai. Ele era exigente, mas compreensivo. Também sempre valorizou e respeitou as manifestações da arte: poesia, música, dança e canto, e o esporte.
Guardo na memória de filha a figura de um pai incrível, um homem que em sua trajetória alcançou vidas e ensinou com muita inspiração gerações a escreverem sua própria história. Um homem que deixou o legado da resistência, da luta, do caráter, do amor e da fé.