Adão tinha terra em Chopim Dois, mas foi trabalhar na construção da usina de Salto Osório porque pagavam bem. Todo dia ele atravessava o Iguaçu de lancha. Na primeira vez que usou a balsa, houve a tragédia. E ele está entre os poucos que sobreviveram.

no dia desta entrevista.
Adão não fala “tchê”, mas é gaúcho de Passo Fundo. Filho de Atílio Alves dos Santos e Rosa Maria de Mello, nascido em 29 de agosto de 1945, mudou para o Paraná, em 1956, junto com os pais e seus oito irmãos. Trabalhavam na agricultura.
A família se estabeleceu em Pinhalzinho, hoje pertencente a Eneas Marques. Naquele tempo pertencia a Francisco Beltrão.
Em 1964, Adão casou com Vanilda Ribeiro e foi morar numa propriedade que adquiriu em Chopim Dois – naquele tempo, era interior de Dois Vizinhos.
Quando começou a construção da barragem da Usina de Salto Osório, no outro lado do rio, ele deixou a roça para trabalhar lá, de carpinteiro – o salário era bom. Todo dia atravessava a ponte, até que uma enchente a levou embora. Foi reconstruída, mas nova enchente levou a ponte outra vez.
Aí os empregados da usina eram transportados todos os dias de lancha. E naquele fatídico 19 de setembro de 1973, Adão resolveu aproveitar a balsa, que voltou a atravessar o rio após alguns dias parada, iria chegar em casa mais cedo. E quase não chegou, porque a balsa afundou e poucos se salvaram. Ele foi um desses poucos.
Anos depois, Adão retornou a Bela União, Eneas Marques, e comprou um sítio de 8,5 alqueires onde vive até hoje. Ele separou de Vanilda, a mãe de seus cinco filhos – Pedro, Vera Lúcia, Cleuza, Cleunice e Juarez – que já lhe deram nove netos.
Hoje aposentado, arrendou terras de lavoura e convive com Fredolina do Rosário Neves. Em sua casa ele, recebeu o Jornal de Beltrão para esta entrevista.
JdeB – Seu Adão, o que o senhor lembra daquele dia?
Adão – Foi uma tragédia muito chocante que a gente nem esperava. Estávamos dentro da balsa lotada de gente, carros. Quando vimos, foi aquele tumulto, as pessoas gritando ‘está afundando a balsa’, e despencou, tinha em torno de seis conduções em cima, acho que tinha mais de 150 pessoas. Quando mexeram a balsa do barranco, a água veio e foi enchendo as canoas, não deu tempo pra nada. Só via aquele desespero do povo, naquilo ela afundou e virou, e despejou aqueles carros, aquele pessoal lá embaixo da água. Eu fiquei meio por cima, e vindo um corcel, eu achei que não ia afundar, me agarrei no para-choque, mas logo o carro encheu e afundou, aí eu larguei ele, consegui subir na balsa de novo, porque ela virou de lado e eu saí por ali e pulei no barranco. Já fazia oito dias que a balsa estava parada, o rio estava muito cheio, quando eu saí no barranco, eu vi uma mulher que morava no Chopim, ela e a irmãzinha dela de 10 anos, os lancheiros viram ela em cima de umas caçambas e conseguiram pegar ela pelos cabelos, a irmãzinha dela agarrada na mão, sobreviveram as duas. Sobreviventes que eu conheci são cinco.
Então a maior parte que se afundou na balsa não se salvou?
Eu acho que, depois que ela afundou, foram poucos que se salvaram.
O senhor tem ideia de quantas pessoas morreram?
Olha, pelo movimento de gente que tinha em cima da balsa, morreu de 80 pessoas pra mais.
O senhor chegou a ver o que fez a balsa afundar?
Eu acredito que tinha muita condução, muito peso em cima, e eu acredito que devia de ter um pouco de água nas canoas. Eles apoiam no barranco pra saída, e aí o excesso de peso era muito, eles não conseguiram tirar ela do barranco, foi onde colocaram os carros mais pra frente, e aí quando ela baixou na água, a água subiu e entrou nas canoas. A água invadiu e eu estava na frente e já fui indo pra trás, e já encheu e baixou.
E o senhor acompanhou o resgate?
No outro dia de manhã a gente voltou na beira do rio, era um desespero, tinha o pessoal que vinha de longe, naquele tempo recebiam a notícia por onda de rádio, vinham pra saber de parentes, eu senti uma emoção no outro dia que cheguei lá, que eu vi o perigo que eu passei. Era um tumulto, um desespero, mas tinha um isolamento, pra evitar o povo cair dentro da água, era uma multidão de gente à procura dos parentes.
O senhor casou aqui em Eneas Marques, o que foi fazer lá em Chopim II?
Eu comprei um terreno lá, morava no sítio, aí na época da usina eu mudei pro Chopim pra trabalhar na barragem, quando afundou a balsa eu trabalhava na barragem, trabalhava de carpinteiro.
Trabalhou muito tempo?
Dois anos.
O senhor passava todo dia na balsa?
Antes tinha a ponte, aí o pessoal do Chopim ia de caminhão, aí deu uma enchente, caiu a ponte, ergueram de novo uma mais alta, deu enchente e caiu novamente, aí eles não quiseram mais levantar a ponte e foi onde colocaram esta balsa.
Por que a balsa estava parada há muitos dias?
Havia tido uma enchente, aí o nível da água estava muito alto, mas quando a balsa afundou já fazia tempo que a ponte tinha caído.
Quando o rio estava cheio, como é que o senhor passava pro lado de lá?
Tinha três lanchas para nós atravessar, na verdade na balsa era proibido, só que o pessoal teimava, eu, inclusive, nunca tinha passado na balsa, foi coincidência.
Foi a primeira vez que o senhor atravessou de balsa?
Sim, foi um dia que eu passei na balsa pra adiantar pra vim pra casa. A gente não abusava, porque o regulamento era a lancha, mas aquele dia não sei o que me deu.
Quais eram os carros que estavam na balsa?
Tinha um ônibus da Cattani, tinha um caminhão do Nodari, de Dois Vizinhos, um táxi de Quedas, duas caçambas do Teixeirinha, ela estava bem carregada. Se ela entra um pouco mais no rio, não ia atravessar, porque o peso era demais, aí ia ser pior.
No outro dia o senhor voltou de lancha?
Não, porque eu morava do lado de cá, mas pra passar pro outro lado tinha que justificar, e no outro dia eles fecharam o transporte das lanchas. Até tinha um irmão meu que trabalhava e morava no Salto Osório, quando ele soube da tragédia, foi muito difícil ele conseguir notícias minhas.
Naquela noite o senhor não foi pra casa?
Eu fui pra casa, porque eu morava no Chopim, aí eu passei na lancha e fui pra casa.
O senhor recebia por mês ou por dia?
Era por mês. O ganho era bom naquela época.
O senhor saiu do seu sítio pra ir trabalhar lá porque ganhava mais?
Sim, ganhava mais.
O senhor já tinha filhos naquele tempo?
Tinha dois filhos. A esposa ficava em casa.
E o senhor conheceu famílias que perderam gente?
Sim, tinha um vizinho meu que morava bem pertinho, que estava do meu lado, foi vítima no acidente, o caixão dele veio na casa, mas veio lacrado, eu fui no velório.
Os corpos apareceram todos depois?
Olha, isso eu não sei dizer, porque tinha comentários que acharam 18, depois diziam 30, 40, mas isso aí era boato que a gente escutava.
Diz que apareciam boiando rio abaixo?
Sim.
E isso já passa de 40 anos?
Foi em 19 de setembro de 1973.
E esse acontecimento deixou algum trauma no senhor?
Ficou bastante, porque eu continuei trabalhando lá, mas logo eu desisti, por causa do rio. Eu quis voltar pro sítio, mas o serviço continuou, foi longe pra eles terminarem aquela barragem. E daí de lá eu troquei por esse sítio aqui.
E a usina de Chopim II já estava funcionando?
Sim, já funcionava, mas na época que teve a do Caxias foi desativada a do Chopim II.
E, voltando pra Eneas Marques, parecia tudo calmo até que apareceu o Palito. O que o pessoal falava do Palito?
Alguns falavam que não gostavam dele, mas pra mim, pro meu pai, pra minha família ele era bom, o meu pai era muito amigo dele. Bom… tem uma história que aconteceu aqui na nossa comunidade, tinha uma festa de igreja, eu já estava saindo quando escutei o tumulto, aí voltei, quando cheguei lá, estava aquele movimento, o pessoal lá fora.
E os Pires eram perigosos?
Eram amigos da gente, mas cada festa que saía eles tomavam conta.
E qual foi a briga com os Pires?
Eles já tinham uma rixa antiga com o Palito. Morreram dois irmãos da família dos Pires, o Adolfo e o Tonhaco, aqui na Bela União, e foram sepultados no Rio Bocó.
Mas dizem que, onde o Palito ia, aparecia briga.
Pra mim ele era gente boa, na época o meu pai era inspetor municipal.
E o que contaram pro senhor sobre a morte do Palito?
O que contam aqui é que ele morreu em um acidente de carreta.
Teve outras brigas aqui?
Teve, naquela época, em uma bodega, que um sobrinho matou o tio. Inclusive, nós estávamos sem delegado e sem Polícia fazia uns 30 dias. Eles estavam jogando entre eles e tomando cachaça, aí não sei se eles tinham alguma rixa de antes.
E quando o senhor chegou aqui, em 1956, com 11 anos, tinha muito mato?
Fui morar no Pinhalzinho, nessa região por aqui era quase tudo mato, chegamos a Beltrão, à noite pousamos lá com a mudança, e no outro dia chegamos de meio-dia no Pinhalzinho, que hoje faz o trajeto em meia hora. Porque, quando nós estávamos vindo, cada pouco tinha que parar porque estavam reformando as estradas. Quando chegamos ao terreno que o meu pai comprou lá, era tudo mato, derrubamos algum do mato à base de foice e machado.
Ele comprou uma área grande?
Era uma área grande, 22 alqueires de terra. Hoje ainda tem três irmãos que moram em alguns pedaços da terra, ele dividiu antes de falecer e a maioria vendeu.
E no tempo da revolta de 57 teve algum movimento aqui?
Ali onde nós estávamos, no Pinhal, passava um jipão por lá, mas com a gente ninguém nunca mexeu. Eles até prenderam um morador antigo de lá, o seu Volpato.
Ele era um colono, era contra, ele falava que a companhia não tinha direito, ele comentava isso porque escutava no rádio, mas aí logo o liberaram. Até o meu pai foi um deles, que foi lá e fez um requerimento pra um alqueire de terra. Fazia tipo um contrato e daí assinava umas duplicatas pra pagar depois, mas logo naquele período deu a revolta, foi eliminado tudo aqueles papéis.
E o seu pai teve a terra registrada depois pelo Getsop, pelo doutor Deni?
Sim, isso mesmo. Na revolta o meu pai foi também, ele ficou lá uns três dias, na primeira revolta ele enfrentou junto.
E ele foi armado?
Naquela época, quem não tinha revólver ia de faca, facão, foice, dizem que eles iam com tudo, nessa que o meu pai acompanhou. Já na segunda o Exército tomou conta, aí os colonos não participaram, porque dizem que os da revolta estavam tudo armado com metralhadora e tal, e os colonos só com espingarda.
E o senhor teve arma?
Eu tive uma vez, usava um revólver em casa, lá no Iguaçu, mas foi pouco tempo.
Fazia caçada por lá?
Caçava veado, paca, cutia, naquele tempo era liberado.
Aproveitavam o couro?
Naquele tempo vendiam. Inclusive, nesta época que eu morava lá no Iguaçu, eu e um tio da minha esposa caçamos um tigrinho pequeno e vendemos o couro por 200 mil réis, pra um cara do Paraguai.
Quando o senhor chegou aqui, que bicho tinha?
Aqui quase não tinha mais caça, porque o pessoal caçava demais, quando cheguei ainda tinha jacu, veado nem via mais.
Hoje tem mais?
Hoje tem mais de que na época que eu cheguei. O pessoal parou de caçar, agora tem bem mais bichos que na época que eu vim. Até porque hoje tem que preservar.
E cobra tinha muito?
Cobra tinha bastante. Na Aparecida do Oeste morreu um rapaz que era cunhado de um irmão meu, que foi mordido por uma cobra em uma colheita de feijão.
No tempo de tropear porco, o senhor participou de alguma tropeada?
Fizemos uma lá do Jaracatiá. Naquela época era carreiro, ia fazendo volta, acho que dava uns 25 quilômetros. Levamos o dia todo, saímos de lá de manhã cedo.
Era porcada grande?
Era uns 40, 50, porque era coisa pouca, nós levamos todos tocados e trouxemos tocados.
E o senhor fazia o quê?
Eu ajudava, eu era moleque, tinha uns 13 anos. Inclusive, um dia eu pousei sozinho em um paiol tudo aberto, feito de vara, e dormi em cima de uma tarimba pra cuidar os porcos.
E como era a tarimba?
Fincava no chão uma vara de forquilha, era de vara, não tinha tábua, e a forração era de pelegos.