Padre Davide Esupério Fontana, 80 anos, nasceu em Passo Fundo (RS). É o 17º filho de Amábile e Giácomo “Jacó” Fontana, que tiveram 18 filhos – 10 mulheres e 8 homens. O sacerdote diz que entrou cedo no seminário. Desde criança ele gostava de acompanhar seu pai, a cavalo, nas incursões pelo interior, levando tropas de animais entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Nos primeiros anos de vida religiosa, ele integrou a Congregação dos Padres Carlistas. Atuou em Porto Alegre e Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, e em Campos Novos, em Santa Catarina. Há 42 anos recebeu o convite para atuar em Nova Prata do Iguaçu, na época distrito de Salto do Lontra. Veio, gostou do lugar e permanece até hoje.
Por seu engajamento pelas causas e pela gente de Nova Prata, o nome de Davide Fontana já entrou para a história do município como um dos mais importantes. Em entrevista ao Paraná Sudoeste, que durou aproximadamente 1h30, ele falou sobre sua vida, obras e sua personalidade forte e a influência perante as autoridades.
Confira parte das informações na sequência.
JdeB – Vamos voltar pro seu tempo de garoto, quando era madrinheiro de tropa.
Davide – Madrinheiro de tropa, o pai era vinhateiro e também tinha tropa, naquele tempo não tinha ônibus.
JdeB- Vinhateiro?
Davide – Fazia vinho, tinha parreirais, até hoje temos as pipas, e a gente se criou, eu pra dizer a verdade sempre tenho na minha expressão, eu sempre falo, viver com o bandido, não é se tornar nem ser um bandido, nunca; eu vivi junto com o filho do Marco Bandeira, duas palavras mandava matar, vivi junto com eles, naquelas praças todo mundo armado, com 9 ou 10 anos, só o que vale, criatura, é família, é o altar do joelho de uma mãe. Eu recebi essa educação, e a minha viagem de deixar pai, mãe, os companheiros de briga, de bola e tudo, foi um grito de um sacerdote chamado padre Júlio Marin, todo mundo armado de cacete, mas tudo piazada de 18, 16, 15, 14, brigando, ele chegou lá e falou “tropa de vagabundos, mando tudo pro seminário, lá vocês não brigam mais!” E eu tomei a sério, e por causa disso fui pro seminário, por causa de uma briga que o padre foi lá, começou assim, era o pior da casa, o mais bagunceiro, e os outros não foram, eu fui pra estudar, e cheguei a ser padre, era pra ser médico, mais quatro meus colegas saíram médicos.
JdeB – O senhor podia detalhar mais daquele garotinho que saía na garupa do cavalo.
Davide – Eu vou contar então. O pai, ele transportava em tropas, ele me levava junto em cima daquela mula velha, mas ele não me dava a mula, dava a mula e uma carregada pra não perder tempo, nós saíamos de Vacaria para Passo Fundo, frio, só campo cheio de avestruzes, então dizia assim: “Ô compadre aonde é que vai faia hoje à noite? Hoje à tarde?” “Áh, vô lá na cruz de ferro”. E se encontravam todos lá, era relincho de égua, cavalo, mula, um ajudava a descarregar porque descarregava e pousava lá, depois da cruz de ferro que ficava perto de Água Santa, Lagoa Vermelha, e ia pernoitar em Passo Fundo. Passo Fundo tem um sentido assim, hoje tem um supermercado, tem um rio e tem uma valada, ali descia e subia, ali perto o gado tomava água, e depois levava de volta, uns 100 metros, 200. No acampamento era gaita, mentira, contava que a mula tinha caído, era até duas da madrugada, ficar perto do fogo, e eu ficava ali escutando aquelas conversas, então eu me acostumei com a vida de campo, por isso eu rezo aquelas missas crioulas que os outros padres não sabem o que significa. Quando fui padre, eu fui celebrar missa nos galpões, junto com o padre Ari (Harry Van Briel, de Francisco Beltrão) eu ia rezar missa em Vacaria. Eu desde criança fui levado pra frente com os costumes sadios daqueles homens que eram o coração do Brasil, que transportavam a cavalo. A minha infância ocorreu assim até a idade de 13, 14, 15 anos, aí fui pro colégio.
JdeB – O senhor chegou a pegar em armas nessa idade?
Davide – Faca, todo mundo tinha faca, canivete pra furar bola, e se precisava a gente se machuca também, hoje eu penso como é que pôde me tirar de lá e me fazer um padre? Eu me considero um padre bom, faz 42 anos que eu tô aqui, fui caluniado, maltratado e muito espezinhado, mas eu desafio publicamente que alguém possa dizer: eu não mexi com aquela mulher, eu me comportei como um cristão. Poderia ser médico, escolhi ser padre, sou padre, o homem tem que ser assim, tem que assumir e fazer a sua propaganda pelo seus atos, não adianta você botar na rádio que você é padre, que você é médico, você tem que provar, sem isso você não é nada.
JdeB – Quando era criança, ia a cavalo sentado no meio de duas bruacas, é isso?
Davide – Bruaca é feita de couro, coberta, fechada em cima pra não chover dentro, pra não molhar, era cheia de açúcar mascavo, cachaça, mandioca feita, vinho. Você me invoca um fato quando nós paramos um dia e meio, é uma zona de conflito, distrito de Gaza, eu vi coisas ali, que eu amadureci na pobreza, vi, vivi, gente rica miserável, e vi gente miserável rica. Por exemplo, a gente em um hotel cinco estrelas, viajando, fora daquele hotel mães com quatro, cinco filhos, com caneca na mão feita de couro, esperando os camelos que vinham trazer água com mais de 30 quilômetros, vinha a criançada pedir um dólar, a mãe via um dólar pra quem gasta um monte em ir pra lá, e ele pegava aquele mosquetão, lá tinha oito, dez em volta do hotel, porque lá é perigoso, enfiava e derrubava a mãe no chão, e proibia pegar, o policial. Água eles corriam pra ganhar um caneco de água, era trazido em couro de camelo. Nós estamos no meio da riqueza.
JdeB – O policial não deixava ela pegar o dinheiro?
Davide – Não, não, era proibido falar com estrangeiro, esta é a vida lá. Ficamos 23 dias lá, meu sacerdócio é amadurecido com essa gente, saber não significa ser bom, saber a linguagem do pobre, do humilde, do simples, senão não amadurece, fala por cima das nuvens, em baixo ficam os coitados, a minha vida foi essa.
JdeB – E como foi o surgimento da missa crioula, é através do senhor e do padre Paulo Ari?
Davide – Vou contar uma que é engraçada. O padre Júlio vinha de Passo Fundo, ficava uma semana, antes de vir pra Água Santa, porque de santa tem pouco, mas é Água Santa, ele vinha de Passo Fundo rezando missa nas estradas, batizando, ficava em Nova Prata, ele me botava em cima de um cavalo velho, eu e ele, depois um carro velho, íamos nas fazendas rezar missa nos paióis, daí fomos em um tal de fazendeiro, era o Bulemarque mesmo, aquele que faleceu em Passo Fundo, tinha uma mulher devota, ele pegou e disse assim “Ô, seu padre Júlio, tá vendo essa mulata aí? Amanhã eu vou pra Passo Fundo, vou fazer meu transporte”. E ela respondeu: “Tu vai se Deus quiser, viu marido”. Ele falou: “Cala boca, veia! Eu não vou a cavalo de Deus, vou a cavalo do meu burrão preto”. Eu que era piá, “pelo amor de Deus”, dizia a mulher, “não bota reparo que meu marido é loco”. Ali que a missa crioula surge, na humildade. Tem um artigo escrito, o que é uma missa crioula. Porque eu sou correspondente do nosso jornal aqui, a missa crioula ela tem base na gruta de Belém, uma manjedoura, e nós temos que cultivar isso porque a partir do momento que acabarem as missas crioulas, agora tem só o cheiro do cavalo, antes tinha aquele sabor de oferecer um pelego na hora do ofertório e você pega o microfone e moe em cima do pelego, um laço, pega o laço na mão, mas tem que ter fibra e botar espiritualidade naquele laço. Quando eu rezo a missa crioula, eu boto a mística nos traços mais esquisitos, até na espora, você pode fazer a espora te dar uma mensagem sagrada, a missa crioula é assim, nasceu do fogo do chão, da humildade das casas, dos humildes para cima até esses torneios que tem, essas coisas bonitas.
JdeB – Como era na época aqui quando o senhor chegou?
Davide – Aqui era praticamente um fim de mundo, um deserto, houve um padre que não aguentou três anos aqui, porque, claro, o senhor sabe que nós devemos saber lidar com o povo, se você não senta com todo tipo de gente, você não conquista ninguém, e aqui, como em Campos Novos, fiquei nove anos lá, que era o tempo de 60 e 58, 59, 60, matava dois por semana, três. Eu era amigo de todos, também dos bandidos, sem ser bandido, se você não fizer assim, você não conquista ninguém. Aqui eu fiz amizade com todo mundo e consegui trazer muita gente pro caminho certo, evitei muitas mortes, eu consegui trazer para um campo religioso e político um povo dispersado mas bom.
JdeB – O senhor sempre trabalhou junto com as administrações municipais?
Davide – Sempre, com Setembrino Tomazoni, Edgar Scotti, Jair Morgan, de vez em quando alguma briguinha, brigas de ideias, porque era pra construir tudo, era pra fazer planejamento, mas sempre nos demos bem, a política e a religião executada bem, ela toda pra frente, é um verdadeiro caminho aberto. Por exemplo, eu sou um político, e sou um religioso, mas eu atuo dentro do meu campo religioso, pra mudar o caso. O Rubem agora, como foi com os outros (prefeitos), o Jair, o Edgar, o Sadi Malacande, ele atuava na política, ele não vinha se intrometer nas minhas, e eu na dele também, só que no momento de decidir nós éramos juntos, este é o caminho do progresso de Nova Prata.
JdeB – E como é a sua orientação durante as campanhas políticas?
Davide – Participo em todos os partidos, porque eu quero homem, não quero a sigla. Eu, por exemplo, nunca dei o voto pra PT, nunca! Mas admiro os homens do PT. Eu posso dizer o nome de um que é meu amigo o (deputado federal) Assis do Couto. Eu disse pra ele “Couto, a igreja queimou, quem sabe você dá uma oferta aí, nunca dei o voto pra vocês, por causa da doutrina de dar comida para as pessoas que estão cinco anos do outro lado da ponte, e nós peleando, pra viver, e vocês dão comida pra eles”, me responde: “Doutrina fomos nós que fizemos, mas pode modificar”. A vida é assim, tem que trabalhar junto, pelear, se não tem união não tem força.
JdeB – O senhor veio pra cá em 70?
Davide – 70. Eu botei na frente uma canga, porque tinha muito gaúcho aqui, uma roda de carroça e uma guampa, botei Sinuelo da Paz o título desse centro pastoral. Sinuelo aquele que vai à frente de uma tropa xucra. Por exemplo, eu tive fazenda junto com o dr. Deni (Schwartz), meu amigo, e tem outro que é meu amigo é o Luiz Scalco. Outro é Nelson Meurer, não tenho medo de dizer. Sinuelo é assim, você pega um grupo de gado manso, e bota no xucro que tá lá no morro, que não quer descer nunca, bota lá e os outros vêm junto. Não comparando, mas aqui era tudo gado xucro, o povo não vinha, eu tentei formar um sinuelo humano, e com o sinuelo humano Nova Prata começou encaminhar para o caminho da honestidade, do respeito, do amor, e que nós fundamos essa Nova Prata que nós temos hoje, que entregamos já faz uns três anos nas mãos, mas que nós demos o início, com a humildade, com o sinuelo de bons católicos, bons cristãos, bons líderes, que levam para o caminho do entendimento e da paz.
JdeB – Na criação do município, em 82, como foi a sua participação?
Davide – Olha, essa caneta, eu recebi das mãos do governador do Estado, passou pro Arnaldo Busato, passava por mim, essa que escreveu a emancipação política, mas ela tá muito velha, mais é uma caneta que eu não dou por dinheiro nenhum! Porque essa daqui que escreveu, eu tenho aqui, por exemplo, o que marcou a minha contribuição para Nova Prata, 1° eu fundei líderes sobre os quais poderia confiar e depositar o município junto, eu me orgulho de ser membro de todos os movimentos políticos aqui dentro, a emancipação, a luz elétrica, banco do Estado, água encanada, localização e legalização do Ginásio Cristo Redentor que eu sofri e quase fui preso, porque a planta não era legalizada o construtor vinha do Rio de Janeiro, o assessor tinha uma maneira de conduzir que dava a impressão que tava se criando um grupo de fanáticos, mas não era, e deu lá no Exército de Francisco Beltrão que eu tava apoiando um secreto formação de líderes, “cheguevarianos” para lutar aqui no Sudoeste, para mim provar isto, eu fui 47 vezes no Exército pra aprovar aquele ginásio, então o Ginásio Cristo Redentor eu ajudei a formar, o telefone não tinha, vinda do asfalto em Nova Prata fomos nós com a comissão várias vezes para Curitiba para conseguir o asfalto aqui pra nós, e assim por diante, eu me sinto orgulhoso, porque fizemos 12 viagens para Curitiba sobre isto, eu sempre fui junto, me diziam “o senhor não é padre?” Sou padre mas o altar e o povo tem que estar juntos porque se Cristo não quisesse que o povo não tivesse junto, pegava uma melancia pra fazer a primeira missa, mas ele pegou o vinho e o pão porque tem a raiz na terra e é da terra que se extrai, então eu considero o meu trabalho como sacerdote, um trabalho místico, solidifica, orienta, ajuda a política, e a política ajuda a mim, porque juntos formamos essa Nova Prata que temos hoje, graças a Deus com um povo ordeiro, com uma terra que chamou a atenção de muita gente, e só não foram bons aqueles que não quiseram trabalhar e saíram daqui contra a minha vontade, e foram acampar e se deram mal, estão lá em baixo de lona até hoje.
JdeB – O senhor teve fazenda, o senhor chegou a pegar no arado, no trator? Como que era?
Davide – Os meus estudos eu paguei com uma horta, uma máquina fotográfica, sábado todo mundo ia a passeio, eu ia vender hortaliça na cidade de Guaporé porque o pai tinha 18 filhos pra dar de comer, e nos ajudávamos o pai e aprendemos a trabalhar, e os meus estudos foram ganhos assim. Vou te mostrar esses livros, são feios mais não dou por 100 mil, esse é o dicionário, o primeiro dicionário que eu tive quando tava no colégio, eu guardo, hoje é diferente né, mas eu comprei esse aqui com cebolas, cenouras, que eu ia vender em Guaporé, por isso eu sei valorizar o que eu sou, por isso quem ganha de graça não sabe valorizar, esses cavalos de pau que dão essas piazadas é porque não sabem quanto custa um carro, eu sou amigo de todos, os mais bagunceiros são meu amigos, aqui, Realeza, Santa Izabel, eu queria fazer a missa dos malandros, se o bispo deixa eu faço, garanto que eu reúno mais de 200 rapazes, aqueles que são bons mais que tem uma linguagem diferente, a linguagem de quebra, só que se você senta com eles, você ouve a linguagem deles você cai esmorecido, eu faço, por isso eu não condeno tanto eles, condeno uma sociedade pervertida, e muitas vezes a família que não oferece joelhos nem abraço de um pai.